Uma cidade renascente

Transcrição

1 Uma cidade renascente MONTEVIDÉU, no URUGUAI, após tantos anos eclipsada por sua sensual vizinha, Buenos Aires, na Argentina agora é um destino turístico que brilha com luz própria. De pé na varanda de meu quarto de hotel em Montevidéu, Uruguai, uma noite cálida, de brisa, eu desarrolhei uma garrafa de brut proveniente de um dos muitos vinhedos do país e fiquei a contemplar a paisagem noturna. Por vários quilômetros, as luzes dos veículos desenhavam a curva de avenida costeira, acompanhando o Rio da Prata, enquanto hotéis, restaurantes e torres de apartamentos iluminados se eriçavam perante o céu escuro. Julgando pela agitação constante, eu não era o único que pensava que a noite ainda era uma criança, embora fosse meia-noite. Para mim não era difícil ver a energia da cidade como parte de uma era vigorosa e otimista. Nos quatro dias que estive com a minha família na capital uruguaia, eu vi e senti, experimentei e absorvi a sensação de que esse era o momento de Montevidéu. A cidade estava renascendo após décadas de ser considerada uma ideia tardia entre cidades sulamericanas um ponto encontrado a caminho das requintadas praias de Punta del Este, no Uruguai ; a monótona e respeitável irmã menor da sensual e extravagante Buenos Aires, na Argentina, do outro lado do Prata. Possuidora de uma deslumbrante orla e uma população talentosa e educada, de repente, Montevidéu tornouse moda, ganhou inúmeros boutique hotéis, restaurantes gourmet, galerias de arte e cafeterias.

2 De cima para baixo, em sentido horário: centro de Montevidéu, capital e porto principal do Uruguai; 62 Bar; Punta Ballena; Francis, um dos mais aplaudidos restaurantes da cidade; guitarristas no exterior do Mercado del Puerto; quitanda na rua Pérez Castellanos, no bairro Ciudad Vieja. Eu devo admitir ter certa afinidade pré-incorporada pelo Uruguai. O punhado de meus parentes maternos que escaparam da Polônia antes do Holocausto foi acolhido pelo Uruguai quando praticamente todos os restantes países do hemisfério ocidental tinham fechado suas portas. No entanto, sou um jornalista e viajante experiente, portanto, quando visitei Montevidéu pela primeira vez, em 2003 pesquisando sobre minha mãe e sua família para um livro compreendi que a cidade estava submersa em profunda

3 depressão. A crise financeira da Argentina tinha arrastado a nação menor, sua vizinha. Parentes e amigos falavam de quem tinha abandonado o país recentemente em direção à Europa, Israel ou Estados Unidos. Percebia-se um constrangimento quase palpável despertado pelo mendigo que se encontrava ocasionalmente na avenida costeira. Após quase uma década, Montevidéu parece ter renascido. No apogeu da economia, há empregos em software, telecomunicações, tecnologia da informação e comércio exterior. A estabilidade política chamou a atenção de investidores, muitos deles da indústria turística. As falidas economias dos Estados Unidos e a União Europeia têm levado muitos dos espertos jovens expatriados a voltarem para casa. Ao retornarem, trouxeram junto ideias cosmopolitas sobre cozinha, arte, compras e hospedagem. Durante minha estadia em Montevidéu, desfrutei dessa emoção vaidosa de qualquer turista: acreditei ter encontrado uma joia de lugar antes que as massas. Temos estado fora do radar a maior parte de nossas vidas, diz Francisco Ravecca, um uruguaio formado em Harvard que hoje se desempenha como diretor executivo da zona franca Aguada Park. Você falava do Uruguai para as pessoas e ninguém sabia do que você falava. Mas agora que as pessoas vêm até aqui e vivenciam isso por si próprias, o boca a boca está funcionando. Não lembro da última vez que o país esteve assim, se é que alguma vez esteve. Tal como muitas pessoas que visitam Montevidéu, eu combinei minha visita com uma estadia em Buenos Aires e alguns dias de praia em Punta del Este. Nossos quatro dias em Montevidéu, sem pressa mas sem pausa, foram a justa medida. Chegamos de Buenos Aires no Buquebus, após uma serena viagem de três horas através do Rio da Prata, que mais parece baía do que rio. Partimos pelo requintado novo aeroporto internacional de Montevidéu, mais uma mostra da decolagem econômica do país. Durante muitos anos, Montevidéu tem tido hotéis de confiança gerenciados por redes

4 internacionais, como o Radisson e o Sheraton, mas hoje também há inúmeros boutique hotéis mais personalizados e modernos. Nós ficamos no Cala di Volpe Boutique Hotel, um lugar cosmopolita com freguesia internacional. Com somente 11 andares e 72 acomodações incluindo suítes, o Cala di Volpe combina a privacidade com uma grande variedade de serviços e instalações, como hidromassagem no terraço e na academia, um charmoso restaurante que oferece buffet de café da manhã, e bicicletas grátis para explorar a cidade. A maior vantagem do hotel é sua localização, logo ao lado da Rambla, a avenida costeira. Na minha experiência de viagem, nenhuma cidade exceto Chicago, talvez, tem mostrado uma área costeira tão extensa e acessível quanto Montevidéu. Em harmonia com a tradição democrática e igualitária do país apesar do escuro período da ditadura militar da década de 1970 e começos de 1980, foi assumido o compromisso de manter as atraentes e valiosas terras ao longo do Rio da Prata como um recurso público. Decorrente disso, um calçadão percorre mais de 16 km do porto do Montevidéu ao bairro da periferia, Carrasco. A avenida costeira liga praias, parques, portos esportivos e monumentos públicos que homenageiam heróis internacionais da paz, como Gandhi e Kahlil Gibran. Bares e restaurantes, mais informais do que formais, colorem a rua. Desfrutei especialmente do El Viejo y el Mar cujo nome homenageia a novela de Hemingway O Velho e o Mar, pelo seu peixe local, e do Rumi Resto Pub, pela carne grelhada (o Rumi ainda tem música ao vivo aos fins de semana). Em razão de suas famosas fazendas e gauchos, o Uruguai é muito conhecido pela sua carne de boi, tanto que uma piada nacional diz que o uruguaio primeiro faz a churrasqueira e depois constrói uma casa combinando com ela. O melhor acompanhamento para o churrasco é um encorpado tannat, o vinho tinto uruguaio de produção nacional. Enquanto isso, no entanto, uma jovem geração de chefs tem estado ampliando o paladar local. O 62 Bar, localizado a aproximadamente duas quadras da Rambla, que adotou o nome de uma linha de trólebus, exibe piso de lajota, balcão de mármore e grade de latão, tirados de algum lugar de Nova Orleães. O cardápio inclui grande variedade de sushi e fartas saladas, perfeitas para um almoço tardio. Para nosso último jantar em Montevidéu, escolhemos o Francis, que por consenso é um dos melhores restaurantes da

5 cidade. Localizado num discreto canto de um bairro residencial, o Francis explora influências mediterrâneas em suas paellas artesanais, pastas e peixes (É claro que a carne vermelha também é recorrente no cardápio.) No que tange às atrações culturais, verdade seja dita, os montevideanos viajam com frequência a Buenos Aires, por valsa ou avião, para assistir à ópera ou ao teatro. Contudo, galerias de arte estão florescendo na Ciudad Vieja ao longo da área comercial para pedestres na rua Sarandí, que nasce nas lojas da Plaza Constitución e chega até a orla. Poucas quadras ao norte da rua Sarandí, encontra-se o Mercado del Puerto, um buliçoso complexo de restaurantes e lojas de artesanato. A arte mais comovente e tipicamente uruguaia está a 112 km ao leste de Montevidéu, num cabo chamado Punta Ballena. Nesse lugar, o pintor e escultor Carlos Páez Vilaró construiu um espetacular hotel, museu e ateliê denominado Casapueblo. Com suas abóbadas brancas de cumeeiras em ponta que emergem de uma escarpada ladeira, Casapueblo evoca a arquitetura de Antoni Gaudí. A influência espanhola não é casual; em tempos de juventude, o artista Vilaró conheceu e recebeu a influência de Picasso e Dalí. As vibrantes cores e os ousados desenhos de Vilaró evidenciam, ainda, que ele passou muitos anos na África, bem como entre os uruguaios descendentes de africanos, que ainda praticam os rituais religiosos do candomblé. O artista é tão valorizado no Uruguai, que a mais popular marca de água mineral escolheu as pinturas de Vilaró para decorar as garrafas comemorativas de seu 120 aniversário. Essa noite em particular, no alto do Cala di Volpe, as luzes da cidade com o passar do tempo começaram a tremeluzir e chegou a hora de dormir. No entanto, se alguma coisa continua vívida, ainda após todos esses meses, é a sensação de uma cidade que está mostrando seu verdadeiro valor. Eu vi e senti, experimentei e absorvi a sensação de que esse era o momento de Montevidéu.