Arranjo dos traços da flexão verbal no português
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- Elisa Barateiro Sanches
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1 Arranjo dos traços da flexão verbal no português Raquel Meister Ko. Freitag 1 1 Centro de Comunicação e Expressão - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Av. João Orestes de Araújo, Garopaba SC Brasil rmkf@terra.com.br Abstract. I present a feature-geometric analysis of verbal inflection in Portuguese, taking as a starting point the work of Cowper (2003a,2003b), Cowper assumes that the syntax and the semantics of tense, mood and aspect are based on a small set of component features that combine to give the complex tense forms of any given language. Keywords. Verbal inflection; feature-geometric analysis; morfology. Resumo. Apresento uma análises da geometria dos traços da flexão verbal do portugês, tomando por base o trabalho de Cowper (2003a, 2003b).Cowper parte do pressuposto que a sintaxe e a semântica de tempo, modo e aspecto fundamentam-se em um pequeno número de traços que combinam-se entre si para manifestar toda a complexidade de formas temporais flexionais de uma dada língua. Palavras-chave. Flexâo verbal; análise da geometria dos traços; morfologia. 1. Introdução As formas verbais das línguas costumam codificar tempo, aspecto e modalidade, conteúdos codifícáveis em termos de traços. Cowper (2003a) considera o complexo flexional do verbo constituinte de traços arranjáveis: traços aspectuais, temporais e modais combinam-se entre si e codificam toda a diversidade de formas verbais que as línguas possuem. Tais traços são, por hipótese, componentes da Gramática Universal (GU). Verifico a aplicabilidade desta proposta ao português, testando a relação entre os traços universais e a morfologia verbal do português. 2. Geometria dos Traços do Complexo Verbal Para Cowper (2003a), flexão é meramente um rótulo convencionado para o feixe de traços do complexo flexional do verbo. Respaldada em Chomsky (2000), a hipótese de Cowper é que os traços os complexo flexional do verbo são componentes da GU: A GU torna possível um conjunto F de traços (propriedades lingüísticas) e de operações C HL (componente computacional da linguagem humana) que acessam F para gerar expressões. A língua L mapeia F de um conjunto particular de expressões Exp. As complexidades operacionais são reduzidas se L fizer uma única seleção de um subconjunto [F] de F, dispensando acessos posteriores. A complexidade se reduz ainda Estudos Lingüísticos XXXIV, p , [ 421 / 426 ]
2 mais se L realiza uma única operação, que reune elementos de [F] com um léxico Lex, sem que nenhuma outra operação seja processada. Nesta concepção, adquirir uma língua significa, em suma, a seleção de traços [F], a construção de itens lexicais Lex e o refinamento de CHL em um dos dois meios possíveis de configuração de parâmetros. (Chomsky, 2000, p. 100, tradução minha) O arranjo dos traços de Flexão na GU proposto por Cowper (2003a) está na figura 1. g g FLEXÃO qgp Proposição Precedência Evento Finitude Inteireza Intervalo Dêixis Irrealis Figura 1. Configuração de flexão na GU Da direita para a esqueda, o primeiro nódulo da tripartição de flexão se refere ao conteúdo aspectual; o nódulo do meio se refere ao conteúdo temporal; e o último se refere ao conteúdo modal. Os traços são monovalentes, com conteúdo sintático ou semântico, correspondentes a um caso particular de morfema flexional. A distinção entre evento ou estado, por exemplo, é dada pela presença ou ausência do traço [Evento] e não pelo contraste [+ evento]/[- evento]. Cada traço é resposável pela expressão de um significado específico. O traço [Evento] distingue eventos de todo o tipo de estados. O traço [Intervalo] distingue eventos internamente subdivididos em fases (imperfectivos). O traço [Precedência] estabelece relação (que pode ser de simultaneidade ou inclusão) entre uma sentença e sua âncora temporal. O traço [Inteireza] requer a relação de precedência para estabelecer relação entre todos os momentos do evento e a âncora temporal. O traço [Proposição] distingue eventos e estados de suas manifestações cognitivas. O traço [Finitude], conteúdo puramente sintático, licencia caso para sujeito estrutural e concordância com os traços- com o verbo. Se uma sentença encaixada é finita, é interpretada como proposição. O traço [Dêixis] refere-se aos conjuntos de âncora temporal e/ou pessoal da sentença em relação ao centro dêitico da enunciação/discurso. As línguas podem tomar a dêixis sentencial como uma única propriedade ou dividi-la em [T-dêixis] e [P-dêixis]. O traço [Irrealis] estabelece relação entre a proposição (P) e a consciência com o centro dêitico (C). A relação default é P C (P pertence a C). As relações irrealis podem ser de dois tipos: C P (C decorre de P), realizadas pelos modais do inglês will, must; e [C P] (P é compatível com C), realizadas pelos modais do inglês can e may. Existem relações intrinsecamente estabelecidas entre os traços, no que se refere à dependência. O traço [Intervalo] é dependente de [Evento], o traço [Inteireza] é dependente de [Precedência], o traço [Irrealis] é dependente de [Dêixis]. Tome-se F (conjunto dos traços de Flexão): {[Proposição], [Finitude], [Pdêixis], [T-dêixis], [Precedência], [Inteireza], [Evento], [Intervalo]}. Diferentes línguas podem fazer diferentes subconjuntos deste conjunto, desde que respeite as relações Estudos Lingüísticos XXXIV, p , [ 422 / 426 ]
3 intrinsecamente estabelecidas. Os subconjuntos podem reunir diferentes combinações de itens lexicais, para serem inseridos no início da derivação, que resultam, por hipótese, em diferentes conjuntos de itens verbais que realizam diferentes combinações de traços ao final da derivação. 2. Morfossintaxe A forma final de flexão, tal como falantes/ouvintes percebem, é dada pelo mapeamente entre os traços do complexo flexional do verbo e as estruturas sintáticas em que eles ocorrem. Para explicar como se dá a passagem dos traços à estrutura, a proposta de Morfologia Distribuída é requisitada por Cowper (2003a, 2003b). A proposta de Morfologia Distribuída, segundo Halle & Marantz (1993), pressupõe que C HL mapeie apenas alguns traços, que são gramaticalizados nas línguas. No nível superficial, morfemas existem como nódulos de feixes de traços morfossintáticos livres de qualquer associação com traços morfológicos. No nível intermediário entre a superfície e a forma fonológica está o nível de estruturas morfológicas, que é onde se dá a inserção de itens vocabulares: morfemas abstratos requisitam à sintaxe seus traços fonológicos. E, no mapeamento do nível superficial para a estrutura morfológica, os morfemas abstratos podem sofrer vários tipos de modificações: a relação da ordem linear é introduzida a partir desse mapeamento, que pode envolver a adição de novos morfemas, a adjunção de um morfema a outro, a concatenação de dois morfemas ou ainda a divisão de um morfema em dois. 3. Traços do complexo flexional do português 3.1. Aspecto A categoria aspectual, sem um equivalente morfológico específico, pode ser traduzida em traços. Verbos costumam codificar eventos e estados. Dado que o sistema é monovalente, a presença do traço [Evento] significa que se trata de uma sentença eventiva; a sua ausência, uma sentença estativa. Vejam-se os exemplos: (1) João vestiu um uniforme escolar. (estado) (2) João vestiu um uniforme escolar duas vezes nessa semana. (evento) (3) João foi generoso. (estado) (4) João foi generoso três vezes nessa manhã. (evento) Se o traço [Evento] não é licenciado por nenhum morfema, é possível pensar que ele seja opcional em todas as sentenças, e que todas as sentenças são ambígüas entre uma interpretação eventiva ou estativa. Assumindo esse posicionamento, em princípio, qualquer sentença não-progressiva pode descrever evento ou estado, e alguns predicados ou até mesmo certos tipos de verbo podem modificar a interpretação da sentença em favor de um ou de outro. Existem dois contextos em que a leitura eventiva é a única possível (ou seja, não há ambigüidade, independentemente do tipo de verbo ou do predicado): em complemento infinitivo bare de verbos de percepção, (5), e em progresssivo, (6) e (7). (5) João viu [o policial ser polido]. Estudos Lingüísticos XXXIV, p , [ 423 / 426 ]
4 (6) João e Maria estavam brincando no parque. (7)?João estava doente. Em (7), é uma dúvida considerar a doença um evento ou um estado. Na perspectiva de Cowper (2003a), a sentença é eventiva. Porém, a interpretação mais intuitiva para o português é a estativa (note-se que nas descrições gramaticais, o verbo estar é dito um verbo de estado) Tempo O sistema temporal pode ser resumido à oposição tradicionalmente descrita como [+/- passado] e, por Cowper (2003a), implementada pelo traço monovalente [Precedência]. O traço [Precedência] significa que o IP em que o núcleo aparece é temporalmente localizado antes do que sua âncora temporal. A âncora temporal pode ser o centro temporal dêitico, ou pode ser uma expressão temporalmente indexada (comparáveis, respectivamente, ao momento de fala (MF) e ao momento de referência (MR) na teoria de Reichembach (1947)). MR MF [Precedência] Figura 2. Traço [Precedência] O traço [Precedência] é correlacionado aos morfemas de pretérito imperfeito do indicativo e do subjuntivo, pretérito perfeito e futuro do pretérito. A ausência do traço [Precedência] significa que o tempo de referência do IP deve ser interpretado como simultâneo à sua âncora temporal. Como a presença do traço [Precedência] recobre [+/- passado], a codificação de posterioridade à ancora temporal o que equivale a futuro é feita por meio dos traços de modalidade. O traço [Inteireza] refere-se a um intervalo de tempo passado. (8) João esteve doente. (9) João estava doente. O contraste entre as sentenças é devido à presença do morfema de pretérito perfeito, em (8), e de pretérito imperfeito, em (9). A distinção entre esses dois tipos de passado costuma ser relacionada com o traço aspectual de perfectividade vs. imperfectividade, mas Cowper (2003b) argumenta que, para tratar a diferença como dependente de traço temporal, o traço [Inteireza] pode ocorrer tanto em eventos quanto em estados, e o seu efeito semântico muitas vezes é semelhante ao de aspecto perfectivo Modalidade Para traduzir o conteúdo lingüístico relativo à modalidade em termos de traços é preciso identificar e definir seus aspectos morfossintáticos. O primeiro passo apontado por Cowper é a distinção entre proposição/evento bare, como exemplificado: Estudos Lingüísticos XXXIV, p , [ 424 / 426 ]
5 (10) Nós vimos que [a Maria está lendo um livro]. (11) Nós vimos [a Maria lendo um livro]. (10) é uma proposição, pois é passível de julgamento de valor de verdade, (11) é um evento bare, pois não é passivel de julgamento de valor de verdade. Na estrutura proposta para flexão, (10) contém o traço [Proposição], enquanto (11) não. Cowper (2003a) define uma proposição como uma manifestação cognitiva de um evento ou de um estado, tomando por base os estudos de Cowper e Hall (1999) e Hall (2001). O traço [Proposição] toma um evento ou um estado como seu argumento e o transforma na sua manifestação cognitiva, ligando-o à consciência. Consciência compreende o conjunto de todas proposições indexadas entre si. Se uma proposição é finita e dêitica, então a consciência a qual está indexada está no centro dêitico. (Hall, 2001). As sentenças proposicionais podem ser divididas em duas subclasses: as que têm os traços [Finitude] e [Dêixis], (12), e as que não o têm, (13). (12) Em uma conta, a metade de quatro pode ser dita [t igual a dois]. (13) Em uma conta, pode ser dito que [a metade de quatro equivale a dois]. Se o traço [Finitude] é dependente do traço [Proposição], então todas sentenças finitas são proposicionais. Este é o mesmo argumento proposto por Chomsky (1998) nos modelos de fases um T finito (contraposto a um T def ) é sempre selecionado por C (que, segundo Chomsky, é o lugar proposicional por excelência). (14) Nós vimos que as crianças estavam brincando no parque. Em (14), o verbo matriz tem uma interpretação cognitiva além da sua interpretação puramente sensorial, que não pode ser barrado pela natureza dos eventos descritos nas sentenças subordinadas. O traço [Dêixis] é dependente do traço [Finitude]. Sentenças finitas não-dêiticas são subjuntivas; sentenças finitas dêiticas são indicativas. O modo verbal está relacionado com o grau de relações temporais existentes entre as sentenças. O papel do traço [Dêixis] é codificar a consciência em que a proposição é indexada com o centro dêitico da enunciação o falante no momento da fala. O índice pode ser tanto temporal como pessoal ([T-dêixis] e [P-dêixis]). A dêixis pessoal, codificada pelo traço [Pdêixis], está relacionada com o índice pessoal da sentença e seu grau de consciência. Por fim, sentenças finitas proposicionais podem ter o traço [Irrealis]. O efeito semântico deste traço é mudar a relação entre a proposição e a consciência que lhe é indexada. Uma proposição denotada por uma sentença irrealis expressa uma das relações de modais de consciência : ou ela decorre da consciência ou ela é compatível com a consciência. O português dispõe de marcas morfológias para expressar o conteúdo do traço [Irrealis]: morfema de futuro do presente e de futuro do pretérito. 4. Considerações finais A aplicação da proposta de Cowper (2003a) ao português permite que se estabeleça correlação entre itens verbais e traços, conforme apresentado na tabela 1. Tabela 1. Relação entre traços e itens verbais Estudos Lingüísticos XXXIV, p , [ 425 / 426 ]
6 Itens verbais do inglês -ing: [Intervalo] -en: [Precedência] -ed: [Precedênce, Dêixis] -es: [Dêixis] will, can, may, shall, etc.:[irrealis] would, could, might, should,: [Irrealis, Precedência] Present subjunctive: [Finitude] Past subjunctive: [Finitude, Precedência] Infinitivo: ausência de traços Itens vebais do português Presente do Indicativo: [P-deixis] Pretérito Imp. do Ind.: [P-deixis, Precedência] Pretérito Perfeito: [P-dêixis, Inteireza] Futuro do Presente: [Irrealis] Futuro do Pretérito: [Irrealis, Precedência] Presente do Subjuntivo: [T-dêixis] Pretérito Imp. do Ind.: [T-dêixis, Inteireza] Futuro do Subjuntivo [T-dêixis, Irrealis] Infinitivo: ausência de traços Porém, os itens verbais não recobrem toda a variedade de nuanças temporais, aspectuais e modais que existem na língua. É preciso averiguar se há a necessidade de um novo traço no nódulo flexional do verbo ou se existem arranjos que recobrem nuanças expressas por categorias temporais diversas. Referências Chomsky, N. Minimalist Inquiries: The Framework. In MITWPL15. Cambridge, Massachusets: MIT, Chomsky, N. Derivation by Phase. In: M. Kenstowicz (ed.). Ken Hale: A Life in Language, Cambridge, Massachusets: MIT Press, Cowper, E. Tense, Mood and Aspect: A Feature-Geometric Approach. 2003a. Disponível em Acesso em: 21 jul Cowper, E. Parameters of INFL: English Aspect and Spanish Tense. 2003b. Disponível em Acesso em: 21 jul Cowper, E., Hall, D. The Syntactic Manifestation of Nominal Feature Geometry. In Proceedings of the Annual Conference of the Canadian Linguistic Association, Montréal: Cahiers Linguistiques de l'uqam, Halle, M. and Marantz, A.. Distributed Morphology and the Pieces of Inflection. In: K. Hale, S. Keyser (eds.). The View from Building 20: Essays in Linguistics in Honor of Sylvain Bromberger. Cambridge, Massachusets: MIT Press, p Reichenbach H. Elements of Symbolic Logic. New York: The MacMillan Company, Stowell, T. The Phrase Structure of Tense. In: Phrase Structure and the Lexicon, ed. L.Zaring and J. Rooryck, Dordrecht: Kluwer, Estudos Lingüísticos XXXIV, p , [ 426 / 426 ]
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