O uso sustentável das águas Arley Gomes de Lagos Ferreira *

Transcrição

1 O uso sustentável das águas Arley Gomes de Lagos Ferreira * O corpo humano é constituído de 75% de água e 25 % de sólidos. A água é responsável por processos vitais sem os quais ocorre a morte do corpo. Em razão de estar intimamente ligada às funções celulares, a água pode, também, atuar como veículo de patógenos que, ao adentrarem os organismos, provocarão doenças e alterações de metabolismo que redundarão em arruinamento da qualidade de vida e problemas de saúde pública. Contaminações de águas ocorrem, principalmente, pelo despejo de fezes (esgotos domésticos). Infectadas, as águas se tornam veículo difusor de amebíase, ancilostomose, ascaridíase, cólera, disenteria bacilar, esquistossomose e outras afetações à saúde. A água é recurso finito, renovável e escasso. É elemento do ciclo hidrológico encontrado nos estados líquido, vapor (gasoso), meteórico (chuvas) e sólido (geleiras). O homem não produz água. Ela é a mesma no Planeta há milhões de anos, movimentando-se e mudando de estado físico. Em todos os estados físicos em que é encontrada, a água exerce papel fundamental para a manutenção da vida, mas é no estado líquido que melhor serve às comunidades humanas, haja vista o papel que desempenha nas funções celulares. É nesse estado que a água é mais afetada pelas atividades humanas. Nos processos produtivos modernos busca-se implantar Mecanismos de Desenvolvimento Limpo - MDL, com vistas ao desenvolvimento sustentável, que consiste em utilizar recursos ambientais preservando-os para as gerações presentes e futuras, incluindo o uso racional e a equitativa distribuição da água às diversas comunidades do Planeta. Outro ponto importante a ser analisado

2 para a racional utilização dos recursos hídricos diz respeito à heterogênea distribuição das águas no globo terrestre (Quadro 1). Os dados apontam a necessidade de reflexões quanto à quantidade de água doce disponível para uso humano. Situações de escassez são registradas em variados pontos sem previsão de medidas que, em curto prazo, solucionem os conflitos. Os recursos ambientais, incluídas as águas, são bem de uso comum, obrigando-se o Poder Público e as comunidades a protegê-los para as gerações presentes e futuras, em atenção ao conceito de desenvolvimento sustentável. Por não estar distribuída uniformemente no Planeta, a água, dotada de valor econômico e social, deve ser gerenciada por políticas públicas e estruturas de gestão que contribuam para o seu racional uso, para evitar conflitos e problemas de saúde pública, em modelo de gestão democrática e participativa, com envolvimento dos diversos atores interessados no seu uso sustentável, o que já vem ocorrendo em Minas Gerais, com o gerenciamento de uso das águas por bacia hidrográfica. O balizador de condutas sustentáveis é a lei, mas, nem sempre, ela é suficiente para produzir resultados. É necessário ir além do cumprimento da lei. A legislação ambiental brasileira tem como característica a modernidade de seus

3 textos, capazes de modificar culturas, cenários do desenvolvimento econômico sustentável e padrões de qualidade de vida das comunidades. Ainda assim, no tocante às águas, registram-se situações preocupantes como poluição, assoreamento, captações e outros usos que comprometem a sustentabilidade dos corpos hídricos. Urge adotar comportamentos individuais e coletivos que diminuam os impactos do despejo de efluentes sem tratamento diretamente nas coleções d água, para mitigar efeitos dos altos volumes de esgotos diariamente lançados. Já não é mais possível atribuir somente ao Poder Público a adoção de medidas técnicas e culturais de proteção dos recursos hídricos. O cidadão deve e pode atuar em sinergia com os esforços de gestão pública. Do ponto de vista legal, despejar efluentes prejudicando a qualidade das águas constitui crime capitulado na Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de Contudo, continuam os despejos e agressões de todas as naturezas nos corpos hídricos, em modelo de desenvolvimento criticável quanto à sustentabilidade. Paralelamente a esse quadro de agressão, o mercado oferece recursos tecnológicos mitigadores de impactos do lançamento de efluentes, principalmente esgotos domésticos, um dos responsáveis pela elevação das concentrações de fósforo e nitrogênio, causando eutrofização e diminuição da qualidade dos ecossistemas aquáticos, com visíveis impactos adversos para as espécies. Essas tecnologias ainda não são utilizadas como deveriam. As pessoas relutam em economizar nas construções para investir em conforto interno - não em meio ambiente. Diante de tal situação, indaga-se: existindo norma incriminadora relativa à poluição, e tecnologias de engenharia de saneamento disponíveis, o que o cidadão pode e deve fazer, individual e coletivamente, para diminuir impactos do despejo de efluentes domésticos nos corpos hídricos? O cidadão tem como diminuir a carga orgânica nos corpos hídricos para não incorrer em crime, mediante a instalação, em prédios residenciais e comerciais, de sistemas de transformação físico-química de esgotos - sistema de

4 tratamento preliminar, em inquestionável demonstração de cidadania. Pelissari (1995) define cidadania como [...] a qualidade a ser cultivada, a fim de que a sociedade civil possa, organizadamente, limitar e exigir ações do Estado, de tal forma que a democracia e os direitos possam ser realizados. A atitude cidadã envolve fundamentos de ética ecológica que constitui conjunto de ideias fundadas em sentimento de fraternidade para com os semelhantes, de convivência com as outras espécies e de conservação da biodiversidade. Na medida em que as pessoas prescindem do exercício da cidadania, surgem os conflitos, principalmente quando o objeto das controvérsias recai sobre direitos patrimoniais, distribuição de riqueza e outros conteúdos promotores de exclusão social. Nos microambientes (suas casas), as pessoas cumprem e exigem rigidamente a obediência a princípios de convívio coletivo para o bem-estar da família. Na casa existe lugar apropriado para cada uma das atividades do dia-a-dia. Há lugar certo para dormir, alimentar, tomar banho, receber pessoas, defecar e urinar, depositar lixo, etc. Mesmo nas situações de extrema pobreza registra-se a vocação do ser humano em organizar seu microambiente em busca de conforto. Ao contrário, não se observam mesmos níveis de preocupação e respeito quando reportamo-nos ao macroambiente, ou seja, quando se sai da casa. Fora da casa são toleradas conspurcações como a das águas, dos ecossistemas, das paisagens, do solo, do ar, etc. O excesso de tolerância pode induzir cataclismas de grande magnitude, com elevados custos para os governos e para a sociedade. É hora de dar um basta aos cheiros pútridos que emanam de inocentes corpos d água, relutantes em existir e servir à natureza e ao homem. Sejamos limpos dentro e fora da casa! Referências Bibliográficas ALTVATER, Elmar. O Preço da Riqueza. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1995.

5 BRASIL. Lei n , de 12 de fevereiro de Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Brasília, Disponível em: < Acesso em: 10 nov DACACH, Nelson Gandur. Sistemas Urbanos de Esgoto. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois S.A., Saneamento Básico. 2 ed., Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., MACHADO, Paulo Afonso Leme. Recursos Hídricos - Direito Brasileiro e Internacional. São Paulo, Malheiros Editores, MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed., São Paulo, Editora Atlas S.A., PELISSARI, Mariá Aparecida. A Condição Cidadã. Piracicaba: Editora Unimep, ROMANO FILHO, Demóstenes; et al. Gente Cuidando das Águas. Belo Horizonte, Mazza Edições, TAMAMES, Ramón. Críticas dos Limites do Crescimento - Ecologia e Desenvolvimento. Lisboa: Publicações Dom Quixote, UNIVERSIDADE DA ÁGUA. Disponível em: < Acesso em: 2 nov * Capitão PM do quadro de oficiais da reserva da Polícia Militar de Minas Gerais. Atua hodiernamente como assessor no Instituto Estadual de Florestas - IEF. É especialista em segurança pública pela Fundação João Pinheiro e em gerenciamento municipal de recursos hídricos pelo Instituto de Ciências Biológicas - ICB da UFMG.