INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO:
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- Júlia Cortês Castilhos
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1 BRUNO FREIRE DE CARVALHO CALABRICH INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: FUNDAMENTOS E LIMITES CONSTITUCIONAIS Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Direito. Orientador: Professor Doutor Carlos Henrique Bezerra Leite Vitória 2006
2 Calabrich, Bruno Freire de Carvalho. Título: Investigação criminal pelo Ministério Público: fundamentos e limites constitucionais. n de folhas: 236. Orientador: Carlos Henrique Bezerra Leite. Dissertação (mestrado) Faculdade Direito de Vitória 1. Direito. Ministério Público. Investigação criminal. Direitos e garantias fundamentais. I Leite, Carlos Henrique Bezerra. II - Faculdade Direito de Vitória. III Título
3 BRUNO FREIRE DE CARVALHO CALABRICH INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: FUNDAMENTOS E LIMITES CONSTITUCIONAIS BANCA EXAMINADORA Professor Doutor Carlos Henrique Bezerra Leite Orientador Professor(a) Doutor(a) Professor(a) Doutor(a) Vitória, de de 2006.
4 Aos amigos promotores, advogados, juízes e delegados que, apesar dos dissabores, não perderam a capacidade de se indignar; a minhas irmãs, Aknar e Carolina, pelo amor; e a meus pais, Lia e Jorge, a quem devo tudo, dedico este trabalho.
5 A todos os Procuradores da República, servidores e estagiários com quem tive e tenho a honra de trabalhar na Procuradoria da República no Estado do Espírito Santo, pelas lições de profissão e de vida; ao Doutor Carlos Henrique Bezerra Leite, orientador desta monografia, exemplo de professor e de membro do Ministério Público; e à comunidade brasileira de software livre, pela disponibilização da ferramenta BrOffice.org, com a qual foi redigida a presente dissertação, meus sinceros agradecimentos.
6 Uma vida sem investigação não é digna de ser vivida. Platão, Apologia de Sócrates, 38a.
7 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar a compatibilidade entre as funções e a natureza do Ministério Público com a atividade da investigação criminal, conforme o modelo processual penal brasileiro, e identificar os limites constitucionalmente impostos a essa atividade. Assentado no aporte teórico do garantismo de Luigi Ferrajoli, o estudo desenvolvido emprega o método hipotético-dedutivo e, como técnica, a pesquisa bibliográfica e documental, com destacada atenção a decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas desde 1988 referentes às nominadas cláusulas de reserva jurisdicional. Nesta dissertação são apresentados os princípios norteadores e principais características dos sistemas acusatório, misto e inquisitivo, para em seguida ser estudada a investigação criminal, apontando seu conceito, sua finalidade, seus destinatários e suas espécies. Discorre-se sobre a investigação criminal no Brasil, examinando o papel das polícias e de outros órgãos do Estado e expondo, na mesma esteira, os argumentos favoráveis e contrários à investigação criminal pelo Ministério Público. Após um estudo sobre os direitos e garantias fundamentais incidentes na investigação criminal, procura-se estabelecer a real função do Juiz em tal atividade, confrontando-a com a função a ser desempenhada pelo Ministério Público. Ao cabo, conclui-se pela possibilidade da investigação criminal direta pelo Ministério Público, sendo essa atribuição limitada abstratamente pelas cláusulas de reserva jurisdicional e, concretamente, pelos princípios da legalidade, da eficiência, da fundamentação, da proporcionalidade e do promotor natural. Em arremate, fazse um sinóptico apanhado das medidas investigatórias em espécie e sua execução pelo Ministério Público, cotejando-as com os limites constitucionais antes analisados. Palavras-chave: Ministério Público; persecução penal; investigação criminal; instrução preliminar; cláusulas de reserva jurisdicional; direitos e garantias fundamentais.
8 ABSTRACT The goal of the present work is to analyse the compatibility between the functions and nature of the public prosecution service and the practice of criminal investigation, according to the Brazilian criminal procedure model, and identify the constitutionally imposed limits to this practice. Established on the theoretical basis of Luigi Ferrajoli s guarantism, the developed study applies the hypothetical-deductive method and, as a technique, the bibliographical and documental research, devoting special attention to the Brazilian's Supreme Court decisions pronounced since 1988 referring to the nominated clauses of jurisdictional reserve. This essay presents the principles and main characteristics of the accusatory, hybrid and inquisitive criminal procedure models, so that the criminal investigation can be studied, indicating its concept, its purpose, its addressees and its types. It discourses about the criminal investigation in Brazil, examining the role of the police and other agencies of the State and exposing the favorable and discordant arguments to the criminal investigation by the public prosecution service. After a study about the rights and fundamental guarantees incident on the criminal investigation, it's possible to establish the real duty of the Judge on that activity, confronting it with the function to be fulfilled by the public prosecutors. It is concluded to the possibility of the direct criminal investigation performed by the public prosecution service, being that attribution limited by the clauses of jurisdictional reserve and, substantially, by the principles of legality, efficiency, grounding, proportionality and natural prosecutor. Lastly, it is presented a summary of investigational acts and its execution by the public prosecution service, under the approach of the constitutional limits analysed before. Keywords: public prosecution service; prosecution; criminal investigation; preliminary instruction; clauses of jurisdictional reserve; rights and fundamental guarantees.
9 SUMÁRIO RESUMO...07 ABSTRACT...08 INTRODUÇÃO OS MODELOS PROCESSUAIS PENAIS BREVE ESCORÇO HISTÓRICO PRINCÍPIOS E SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS MODELO INQUISITIVO MODELO ACUSATÓRIO MODELO MISTO DISTINÇÃO ENTRE OS MODELOS ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E OS MODELOS PROCESSUAIS PENAIS INVESTIGAÇÃO CONCEITO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL FINALIDADE E DESTINATÁRIOS DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL INVESTIGAÇÕES ESTATAIS E PRIVADAS INVESTIGAÇÕES ESTATAIS DIRETAS E INDIRETAS (OU INCIDENTAIS) A INVESTIGAÇÃO EM CADA MODELO PROCESSUAL PENAL A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM OUTROS PAÍSES DO RETORNO AO MODELO ACUSATÓRIO E DA INVESTIGAÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO TENDÊNCIAS DO PROCESSO PENAL O MODELO INVESTIGATÓRIO BRASILEIRO E A INVESTIGAÇÃO
10 PELO MINISTÉRIO PÚBLICO O MODELO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO E A INVESTIGAÇÃO PELA POLÍCIA VANTAGENS E DESVANTAGENS DA INVESTIGAÇÃO PELA POLÍCIA A INEXISTÊNCIA DE MONOPÓLIO DA POLÍCIA PARA A REALIZAÇÃO DE INVESTIGAÇÕES A INVESTIGAÇÃO POR ÓRGÃOS DIVERSOS DA POLÍCIA A ATRIBUIÇÃO INVESTIGATÓRIA COMO DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE A ATRIBUIÇÃO INVESTIGATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO Outros argumentos favoráveis e contrários à investigação pelo Ministério Público no Brasil Vantagens e desvantagens da investigação direta pelo Ministério Público no Brasil GARANTISMO E INVESTIGAÇÃO CRIMINAL O GARANTISMO DE LUIGI FERRAJOLI DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL A POSIÇÃO DO JUIZ NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL O distanciamento do Juiz e imparcialidade O distanciamento do Juiz e a função de garante OPORTUNIDADE E INSTRUMENTOS DE CONTROLE JUDICIAL DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL AS CLÁUSULAS DE RESERVA JURISDICIONAL POSIÇÃO DA DOUTRINA POSIÇÃO DO STF ABRANGÊNCIA DA RESERVA JURISDICIONAL NO BRASIL...151
11 5.4 FUNDAMENTOS AXIOLÓGICOS DAS CLÁUSULAS DE RESERVA JURISDICIONAL Interceptação de comunicações telefônicas Busca e apreensão domiciliar Prisões Medidas cautelares em geral LIMITES CONSTITUCIONAIS AOS PODERES INVESTIGATÓRIOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ADMINISTRATIVA E AS CLÁUSULAS DE RESERVA DE JURISDIÇÃO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA PRINCÍPIO DA FUNDAMENTAÇÃO PRINCÍPIO OU MÁXIMA DA PROPORCIONALIDADE PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA (EM RELAÇÃO ÀS NORMAS DE DIREITO PENAL E DE PROCESSO PENAL) SÍNTESE DOS LIMITES AOS PODERES INVESTIGATÓRIOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DAS MEDIDAS INVESTIGATÓRIAS EM ESPÉCIE E SUA COMPATIBILIDADE COM A INVESTIGAÇÃO DIRETA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DEPOIMENTOS PESSOAIS ACAREAÇÕES E RECONHECIMENTO DE COISAS E PESSOAS REQUISIÇÃO DE INFORMAÇÕES, DOCUMENTOS E PERÍCIAS DADOS SIGILOSOS E SUA REQUISIÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO Dados fiscais Dados bancários ou financeiros...187
12 7.4.3 Dados cadastrais INTERCEPTAÇÃO DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS Dados cadastrais das operadoras de telefonia Informações sobre ligações e mensagens efetuadas e recebidas ( conta reversa ) AÇÃO CONTROLADA E INFILTRAÇÃO DE AGENTES CAPTAÇÃO E INTERCEPTAÇÃO AMBIENTAL CONCLUSÃO REFERÊNCIAS...217
13 SIGLAS E ABREVIATURAS ACR Apelação criminal ADEPOL Associação dos Delegados de Polícia ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade Ag. - Agravo AJURIS Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária BACEN Banco central CF Constituição Federal CF/88 Constituição Federal de 1988 CNPJ Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas COAF Conselho de Controle de Atividades Financeiras Conjur Revista Consultor Jurídico CPI Comissão Parlamentar de Inquérito CPF Cadastro Nacional de Pessoas Físicas CPMI Comissão àrlamentar Mista de Inquérito CP Código Penal CPP Código de Processo Penal CPPP Código de Processo Penal Português CPPI Código de Processo Penal Italiano CRP Constituição da República Portuguesa CSMPF Conselho Superior do Ministério Público Federal CTN Código Tributário Nacional CVM Comissão de Valores Mobiliários DECIF Departamento de Combate a Ilícitos Cambiais e Financeiros DJ Diário da Justiça DJU Diário de Justiça da União DO Diário Oficial DOU Diário Oficial da União DPF Departamento de Polícia Federal
14 ESPEI Escritório de Pesquisa e Investigação da Receita Federal EUA Estados Unidos da América FBI Federal Bureau of Investigations HC Habeas corpus IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente IBCCRIM Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IEMA Instituto Estadual do Meio Ambiente INSS Instituto Nacional do Seguro Social Interpol International Criminal Police Organization LC Lei Complementar LOMPU Lei Orgânica do Ministério Público da União LOMAN Lei Orgãnica da Magistratura Nacional MC Medida Cautelar MJ Ministério da Justiça MP Ministério Público MPF Ministério Público Federal MPT Ministério Público do Trabalho MPU Ministério Público da União MS Mandado de segurança PF Polícia Federal PGFN Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional PGR Procuradoria-Geral da República PGT Procuradoria-Geral do Trabalho RE Recurso extraordinário RESP Recurso especial RHC Recurso ordinário em habeas corpus RT Revista dos Tribunais SERASA Centralização dos Serviços Bancários S/A SERPRO Serviço Federal de Processamento de Dados SRF Secretaria da Receita Federal SPC Serviço Nacional de Proteção ao Crédito StPO Código de Processo Penal Alemão (strasfprozeßordnung) STJ Superior Tribunal de Justiça
15 STF Supremo Tribunal Federal SUS Sistema Único de Saúde TJ Tribunal de Justiça TRF Tribunal Regional Federal v.u. - Votação unânime
16 INTRODUÇÃO A evolução da dinâmica social, no seio da qual afloram diversas formas de criminalidade, ao mesmo tempo em que demanda a eficiência da atividade persecutória penal (do ponto de vista do sancionamento dos responsáveis), demanda também um sistema de proteção efetiva dos direitos fundamentais dos investigados e acusados. Especificamente no que interessa à atividade persecutória pré-processual, que aqui se trata por instrução preliminar ou, simplesmente, investigação criminal, a criminalidade hodierna põe como um grande desafio aos estudiosos e aplicadores do direito a solução da grave tensão entre eficiência e respeito aos direitos fundamentais. Com efeito, não só a violência urbana mas, sobretudo, as novas formas de criminalidade, que se distinguem da criminalidade tradicional, entre outros aspectos, pelo uso da tecnologia, da organização empresarial com infiltração no corpo estatal e por métodos de inteligência de contra-inteligência em constante aprimoramento, demandam do Estado, por meio de seus órgãos incumbidos da segurança pública e da persecução penal, uma postura profissional e ativa, de modo a promover o justo sancionamento dos responsáveis e a coibir a prática de novos ilícitos. Ao mesmo tempo, exige-se desses órgãos o pleno respeito aos direitos fundamentais de qualquer investigado ou acusado, sem o que não se poderá falar em eficiência, mas em arbítrio. A eficiência da atividade persecutória, paralelamente ao dever de obediência aos direitos fundamentais, pressupõe a identificação dos entes que, num Estado Democrático de Direito, legitimam-se à investigação criminal. Pressupõe, também, a delimitação dos papéis a serem desempenhados por cada um desses entes ou sujeitos, a fim de que a persecução penal e o complexo de relações jurídicas que desta se originam sejam permeadas por mecanismos eficazes de controle da legalidade de todos os atos praticados. É dentro desse contexto que emerge a instituição do Ministério Público,
17 enquanto protagonista da persecutio criminis estatal. À luz de tais ponderações, o presente estudo tem por objetivo analisar a compatibilidade entre as funções e a natureza do Ministério Público e a atividade de investigação criminal, segundo o modelo adotado pela Constituição Federal de 1988, identificando os limites constitucionalmente impostos ao desempenho dessa atividade. O problema a ser enfrentado pode ser assim sintetizado: em que medida os direitos fundamentais e o modelo processual penal brasileiro limitam a atuação investigatória do Ministério Público? A hipótese básica é que, ao tempo em que prevê ao Ministério Público o exercício de poderes investigatórios, a Constituição Federal de 1988, afora as restrições formais e materiais do art. 129, IX, limita-os apenas pelas cláusulas de reserva jurisdicional, respeitado, em cada caso, com relação à investigação específica a ser produzida na situação concreta, os princípios atinentes ao processo e ao direito penal. Dentre as questões que tangenciam a hipótese traçada, tem-se a controvérsia acerca da exclusividade ou não, para as polícias, da função (poder-dever) de investigar. Com efeito, é necessário indagar se a investigação policial, de regra materializada num inquérito policial, é a única juridicamente válida e possível, ou se esta é apenas um dos instrumentos para a apuração de ilícitos penais. Essa abordagem não prescinde da demonstração de que, para determinados crimes e situações excepcionais, investigações realizadas diretamente pelo Ministério Público podem ser o meio mais hábil para o deslinde dos fatos. Sob este prisma, o reconhecimento da atribuição investigatória do Ministério Público permitiria a plena realização de sua missão constitucional: a defesa do regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da CF/88). A atualidade e a importância do tema vêm a propósito de diversas ações e
18 impugnações, perante os tribunais, acerca da validade de investigações conduzidas pelo Ministério Público, notadamente em casos de grande repercussão, o que tem fomentado intensos debates na comunidade jurídica. O interesse sobre o estudo ora apresentado também se constata pela exigência da Constituição e, no plano fático, de toda a sociedade, de que seja debelado o gravíssimo problema da impunidade em nosso país. Sobre o tema da investigação criminal pelo Ministério Público no Brasil, algumas obras já foram elaboradas, sobretudo nos últimos anos 1, e inclusive compõem o referencial deste trabalho. Em nenhuma delas, entretanto, fez-se a abordagem aqui proposta, atinente à análise das cláusulas de reserva jurisdicional enquanto limites abstratos à atribuição investigatória do Ministério Público, conjuntamente a outras limitações de ordem constitucional. O método utilizado na presente pesquisa é o hipotético-dedutivo, por meio do qual se indaga sobre os contornos do modelo constitucional processual penal brasileiro e sobre as funções outorgadas ao Ministério Público, para dessa indagação extrair sua atribuição investigatória e os limites abstratos e concretos de tal atribuição. Como técnicas, empregou-se a pesquisa bibliográfica e documental, focada, esta última, em julgados do Supremo Tribunal Federal (a partir de 1988) referentes aos poderes investigatórios do Ministério Público e, notadamente, às nominadas cláusulas de reserva jurisdicional. No primeiro capítulo, são estudados os modelos ou sistemas processuais penais, fazendo um breve histórico de sua evolução, identificando seus 1 A base de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal em Ensino Superior - CAPES, do Ministério da Educação, registra sete dissertações de mestrado, todas defendidas a partir do ano de 1999 até 2004 (último ano disponível para pesquisa), sobre o tema da investigação criminal pelo Ministério Público. O enfoque principal daqueles trabalhos, diversamente do presente, diz respeito à possibilidade e à importância da investigação criminal direta pelo Parquet, sem adentrarem em maior profundidade o tema próprio das limitações constitucionalmente impostas a essa atividade (BRASIL. Ministério da Educação. Banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal em Ensino Superior - CAPES. Disponível em: < Acesso em: 17 jun. 2006).
19 princípios norteadores e sua conformidade ou não com o Estado Democrático de Direito. No segundo capítulo, debruça-se sobre a atividade de investigação criminal, apresentando seu conceito, finalidade, destinatários e suas espécies, confrontando-as com cada modelo processual penal. Ao cabo, faz-se uma sintética apresentação da tendência quanto ao papel a ser desempenhado pelo Ministério Público na investigação criminal em outros países, pavimentando o caminho para um cotejo com o capítulo seguinte, em que se faz uma análise do modelo investigatório brasileiro. Nessa senda, enfoca-se, no terceiro capítulo, o papel da polícia dentro do modelo investigatório brasileiro, suas vantagens e desvantagens e a ausência de monopólio para a realização de investigações criminais. Prossegue-se com a apresentação de exemplos de investigações conduzidas por órgãos diversos da polícia, confirmando-os pela demonstração de que essa possibilidade é decorrência direta do princípio da legalidade. Ao fim, estuda-se a investigação direta pelo Ministério Público, apontando argumentos contrários e favoráveis, bem como suas vantagens e desvantagens. Alcançando-se o quarto capítulo, já se terá evidenciado, ao longo dos capítulos antecedentes, a matriz teórica juspositivista crítica de inspiração liberaliluminista (contraposta ao positivismo meramente formalista e legalista) que permeia todo o trabalho. Assim, principia-se-o com uma breve abordagem sobre a teoria do garantismo penal e processual penal de Luigi Ferrajoli e sua preocupação com a efetiva aplicação dos direitos fundamentais, manifestada no contraste entre efetividade e normatividade desses direitos. Discorre-se, ainda nesse quarto capítulo, sobre os direitos e garantias fundamentais na investigação criminal e, especialmente, sobre a posição do juiz nessa fase. No quinto capítulo, examinam-se as cláusulas de reserva jurisdicional segundo a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - STF, delimitando sua abrangência e seus fundamentos axiológico-constitucionais.
20 A síntese dos capítulos antecedentes conduz ao sexto capítulo, que, sem adstringir-se à reserva jurisdicional como limite abstrato à atividade persecutória pré-processual do Ministério Público, também aponta outros limites, vinculados, estes, sempre, a um confronto com o caso concreto. O sétimo capítulo prende-se à análise das medidas investigatórias em espécie e sua compatibilidade com a investigação direta pelo Ministério Público, revelando, uma a uma, de que forma e em que medida se dá a atuação do Parquet, sem olvidar dos limites apontados nos capítulos precedentes.
21 1. MODELOS PROCESSUAIS PENAIS E INVESTIGAÇÃO No fito de pavimentar a trilha que se pretende percorrer no presente trabalho, é essencial que sejam apresentados, ainda que sem a pretensão de esgotamento da matéria (dados os limites que interessam a esta dissertação), as características e os princípios conformadores dos três sistemas processuais penais adotados ao longo da história dos povos ocidentais em todo o mundo: o sistema acusatório, o sistema inquisitivo e o sistema misto. A par dessa apresentação, será possível identificar a função da atividade de investigação em cada um desses sistemas ou modelos, bem como o papel do Ministério Público (se existente) nessa atividade. 1.1 BREVE ESCORÇO HISTÓRICO Nos grupos humanos primitivos, ausente ainda a compreensão do fenômeno jurídico, regidos que estavam por regras de natureza mística, religiosa, moral ou meramente consuetudinária, preponderava, na solução dos conflitos havidos entre os homens derivados da prática de uma infração, o exercício da autotutela, consistente na proteção do interesse do próprio lesado por imposição, mediante o uso da força; quando muito, tal solução era buscada pela forma negociada da autocomposição. Com a evolução das sociedades, verificou-se a necessidade de que fossem estabelecidas regras próprias para a punição do responsável por uma infração, não só com vistas à satisfação do interesse da vítima, a ser assegurado com o restabelecimento do status quo ante, mas também para que fosse preservada a ordem e a paz no seio da comunidade. Lembra Cristiano Álvares Valadares do Lago que, nessa época, a reação punitiva era de forma diferenciada, conforme o ato causasse um dano somente a uma pessoa ou representasse, em si, uma violação aos interesses de todo o grupo 2. Principiou, destarte, o 2 LAGO, Cristiano Álvares Valadares do. Sistemas Processuais Penais. Jurisprudência Mineira, Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de Minas Gerais, n.º 149, jul. a set. de 1999, p. 09.
22 surgimento de formas específicas de solução de conflitos, impostas (ou mediadas) por sujeitos (ou grupos de sujeitos) diversos dos próprios sujeitos envolvidos (infrator e vítima), reconhecidos pela comunidade e especialmente dotados desse poder (heterotutela). Entre as primeiras sociedades politicamente organizadas destaca-se o Egito, onde o poder de julgar concentrava-se nas mãos dos sacerdotes, havendo um tribunal supremo, incumbido de decidir sobre crimes mais graves, e, nas províncias, juízes, auxiliados por delegados, encarregados do julgamento de infrações menores 3. Lá se verifica, segundo assinala Ada Pellegrini Grinover 4, o embrião do sistema inquisitório, considerando que a persecução penal era de iniciativa oficial, inspirada num governo absolutista e sacerdotal. Na Grécia antiga, mais precisamente em Atenas, era feita a distinção entre crimes privados e crimes públicos, considerando-se como crimes privados aqueles que repercutissem somente para uma vítima ou vítimas determinadas e que causavam danos de menor relevância 5. Para tais delitos, cumpria à própria vítima o sancionamento do responsável, aplicando-lhe diretamente a punição cabível, direito que era reconhecido pelo estado ateniense. Para os crimes mais graves (ou crimes públicos ), que afetavam algum interesse público (como a tranqüilidade e a ordem públicas), o modelo de persecução tinha contornos nitidamente acusatórios: exigia-se uma acusação, que o ofendido ou qualquer do povo poderia formular (acusação popular), a ser julgada por um tribunal popular, após a defesa do acusado. Cada uma das partes deveria elaborar suas alegações e apresentar as provas correspondentes, devendo o tribunal permanecer inerte durante toda a instrução, para somente ao final proferir sua decisão. Ao lado da Grécia, entre os que primeiro adotaram um sistema que, na classificação feita hoje, pode ser aproximado ao acusatório, também costumam 3 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório - a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p GRINOVER, Ada Pellegrini, apud PRADO, Geraldo. Op.Cit, p LAGO, Cristiano Álvares Valadares do. Op. Cit, p. 10.
23 ser citados a Índia e o direito hebraico 6. Em Roma, aplicou-se inicialmente um sistema com traços inquisitoriais denominado cognitio, que tinha como marca a outorga de amplos poderes ao juiz para iniciar a persecução, reunir as provas e julgar (inquisitio). A amplitude dos poderes do magistrado encontrava fundamento no fato de que sua autoridade era uma representação do rei 7. Contra a sentença desse juiz cabia uma apelação às Assembléias do Povo, o que, a princípio, mitigava a característica inquisitorial desse procedimento. No final do período da República (anterior, portanto, à fase do Império), Roma passou a adotar o sistema da accusatio, também nominada judicium publicum ou quaestio. O procedimento era deflagrado por meio da accusatio, que era a faculdade de qualquer cidadão, notadamente o ofendido, de apresentar uma acusação perante uma das quaestiones perpetuae 8 órgãos incumbidos dos julgamentos, outrora concentrados nas variadas magistraturas, no senado e nas assembléias populares (comitia centuriata ou comitia tributa) 9. Recebida a acusação, outorgava-se ao denunciante uma lex, que era um mandato que permitia ao acusador particular praticar todas as medidas necessárias à apuração e à demonstração do fato imputado. Tinha-se, deste modo, uma inquisitio posterior à acusação. O órgão julgador não desenvolvia nenhuma atividade instrutória. Por essa razão, esse modelo costuma ser referido como acusatório puro 10. Com o tempo, o sistema Romano da accusatio entrou em declínio. Isso decorreu da necessidade de concentrar o poder sobre um território que cada 6 SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. Sistemas processuais penais e processo penal brasileiro, in Revista do Tribunais, ano 88, vol. 764, jun São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p PRADO, Geraldo. Op. Cit, p As quaestiones surgiram inicialmente como órgãos delegados, provisórios, e tinham por tarefa investigar fatos específicos (daí seu nome questionar, indagar). Com o tempo, foram crescendo em importância até tornarem-se permanentes quaestiones perpetuae recebendo a competência para julgar as infrações. 9 AZEVEDO, Luiz Carlos. Sistemas processuais penais: acusatório, inquisitivo, misto; origens, distorções, atualidades. Revista do Advogado, São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, ano XXIV, n.º 78, set. 2004, p SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. op. cit., p. 463.
24 vez mais se expandia, mas sobretudo pelo fato de que o sistema da accusatio revelou, ao longo do tempo, sérios inconvenientes, acarretando a perda da credibilidade das quaestiones: considerando a necessidade de que o órgão julgador fosse provocado por uma acusador particular, a quem cumpria reunir todas as provas, facilitava-se a impunidade do infrator e deixava os fracos ao desamparo; por outro lado era possível, também, a formulação de acusações falsas e a deturpação da verdade 11 (convém realçar, como visto, que a acusação precedia a inquisitio). Paulatinamente, os magistrados foram ampliando suas atribuições, até consolidar-se o procedimento da cognitio extra ordinem, ou simplesmente cognitio, fulcrada na concentração de poderes típica do inquisitorialismo, no qual o julgador reunia não só as funções de investigar, mas também de julgar a causa. Entre os povos germânicos, a tradição era a de um modelo acusatório, a exigir a provocação do lesado para que uma assembléia aplicasse a este a pena que merecesse 12. Com as invasões bárbaras, o direito germânico, marcantemente consuetudinário, sofreu profunda influência do direito romano, o que levou à adoção de diversos preceitos do arcabouço normativo de Roma, dentre os quais o processo inquisitivo. A primeira fase da idade média conheceu o surgimento dos feudos, que eram governados por autoridades locais e de forma praticamente autônoma em relação ao governo central a que se subordinavam. Essas autoridades findaram por esgarçar o sistema judiciário germânico, porquanto cada pequena comunidade vivia sob o poder absoluto de um senhor, a quem competia decidir todas as questões de interesse do feudo. O enlargamento da influência da igreja católica foi aos poucos minando essa autoridade, sem, no entanto, eliminá-la, tornando-a, antes, subordinada ao poder eclesiástico. Na idade média, a Igreja vê seu poder assomar-se sobre as comunidades que posteriormente vieram a constituir os Estados monárquicos. A própria 11 TORNAGHI, Hélio, apud PRADO, Geraldo. Op. Cit, p AZEVEDO, Luiz Carlos. Op. Cit, p. 50.
25 legitimidade dos monarcas tinha esteio no poder papal, que, como representante de Deus na terra, chancelava essa legitimidade enquanto uma delegação divina. O crime, por ser, antes disso, um pecado que deveria ser expiado, a fim de que fosse o pecador agraciado com a salvação -, é, para a Igreja, um interesse público, e não meramente privado. Sob esse argumento, justifica-se no direito canônico a necessidade da busca da verdade, por quaisquer meios, ainda que irracionais (foram comuns, pelos tribunais da inquisição, as torturas como meio de obtenção da confissão e os julgamentos respaldados nas ordálias, ou juízos divinos ), desde que eficazes. Assim, se no início da baixa idade média ainda havia resquícios de aplicação de um modelo acusatório (até o século XII registram-se formas acusatórias nas cidades de Bolonha e Florença, onde a inquisição era aplicada de forma subsidiária, somente quando não exercida a acusação 13 ), estes vão sendo, por toda a Europa continental, progressiva e integralmente substituídos por um sistema inquisitório, no qual as funções de acusar, defender e julgar confluem à figura do juiz inquisidor e do Tribunal da Inquisição (Santo Ofício). Luiz Carlos de Azevedo 14 acentua que: Muitas foram as causas que levaram à institucionalização e propagação do sistema inquisitivo: proporcionava ele uma pesquisa mais aprofundada, para os crimes de heresia, tão importantes e por igual tão correntes nesse tempo, como demonstra a severa repressão imposta aos cátaros, no sul da França; refreava e corrigia os excessos dos representantes do clero, já que muitos deles não guardavam ou desleixava,m as prescrições determinadas pela Igreja; reforçava-se o poder do Estado, pois a persecução dos delitos a este competia, 'não sendo mais assunto particular da vítima'; substituía a falibilidade do sistema acusatório, pois já iam longe os ideais de igualdade que o fundamentavam e que não mais persistiam a essa época; traziam ordem e segurança ao procedimento, mediante a documentação probatória; e se ajustava, ainda, a um direito que pretendia convergir para a unidade, mais elaborado e erudito, conforme nisto se esforçava o trabalho desempenhado pelos glosadores. Não se contesta, também, que a sua utilização favorecia tanto o poder do papa, na defesa dos dogmas que deviam conduzir a 13 PRADO, Geraldo. Op. Cit, p AZEVEDO, Luiz Carlos. Op. Cit, p. 51.
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