UMA DEMOCRACIA FORMAL E UMA ESCOLA SEM FORMA: UMA REFLEXÃO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL
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- Pietra Amaral Bicalho
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1 UMA DEMOCRACIA FORMAL E UMA ESCOLA SEM FORMA: UMA REFLEXÃO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL Jairo da Luz Silva Departamento de Filosofia da UFMT jairoluz@brturbo.com.br Resumo: Este trabalho pretende abordar, divulgar, criticar e avançar as reflexões sobre a educação básica, disposta na Constituição Federal do Brasil e regulamentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Dessa forma, a Constituição Federal instituiu a cidadania como um dos fundamentos da República brasileira e a escola como o lugar privilegiado de preparação da pessoa para o exercício da cidadania. Por outro lado, o Estado brasileiro adotou a democracia como regime político e a gestão democrática do ensino público como uma das formas de participação democrática direta do povo. Nesse contexto, ao se lançar um olhar sobre a educação a partir da perspectiva do Direito, verifica-se que a prática dos educadores está desvinculada da estrutura político-jurídica do Brasil. Palavras-chave: democracia, cidadania, educação, gestão democrática, política. A presente comunicação é resultado de um estudo realizado sobre a Constituição Federal do Brasil e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), cujo enfoque é a educação básica. O estudo foi apresentado, em forma de seminário, na disciplina de Organização e Funcionamento da Educação Básica (OFEB), da graduação em Filosofia, ministrada pela professora Msª. Dejacy de Arruda Abreu. Também é resultado de estudos realizados no Grupo de Estudo de Ética e Filosofia Política, do Departamento de Filosofia, orientado pelo professor Dr. José Jivaldo de Lima. Durante o estudo da temática foi-se evidenciando alguns problemas que não eram comuns ser abordados na disciplina. Principalmente quando se lançava um olhar sobre a educação a partir da perspectiva do Direito. De acordo com a nossa Constituição Federal, a democracia 1 é o regime político adotado pela República 2 Federativa do 1 Etimologicamente a palavra é formada pelos radicais gregos demos= povo + cracia= poder. 2 Etimologicamente a palavra é formada pelos radicais latinos res=coisa + publicae=pública. 1
2 Brasil e a gestão democrática do ensino público 3 é uma das formas de participação democrática direta do povo instituída na Constituição Federal. Além disso, a Carta Magna dispõe que a cidadania é um dos fundamentos da República brasileira 4. E que a escola tem como uma das suas missões preparar a pessoa para o exercício da cidadania 5. Assim, qual a relação entre as categorias democracia, cidadania e educação na perspectiva jurídico-constitucional? Essa relação encontra algum fundamento numa Filosofia Política? Politicamente, a democracia se materializa nos meios e instrumentos que a Constituição disponibiliza para a participação e intervenção do povo nos processos decisórios da coisa pública. No entanto, antes de prosseguir, é necessário definir o que seja juridicamente democracia, uma vez que a Constituição não a define. Segundo o constitucionalista Silva (1996, p ): Podemos, assim, admitir que democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, de ser exercido direta ou indiretamente, pelo povo em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político, é também um modo de vida, em que, no relacionamento interpessoal, há de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes. (...) 3 Art O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII - garantia de padrão de qualidade. VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. 4 Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana;iv - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 5 Art A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 2
3 A democracia, em verdade, repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários que lhe dão a essência conceitual: (a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder que se exprime pela regra que todo poder emana do povo; (b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular. [grifo nosso] A democracia participativa pode ser classificada em: 1) direta, 2) indireta e 3) semidireta. A participação direta, instituída na Constituição brasileira, se dá por: a iniciativa popular de projetos de leis; o referendo popular; o plebiscito; a ação popular; outras formas de participação democrática direta: Arts. 10, 11, 31, 3, 74, 2º, 194, VIII, 198, III, 206, VI, 216, 1º. A participação indireta se dá através da eleição de representantes do povo. Nesse caso, quem tem visibilidade são os partidos políticos, daí a distância do povo dos processos decisórios e a profissionalização da política. A democracia semi-direta é um misto das duas formas anteriores, sendo adotado como regime político da República Federativa do Brasil. Do ponto de vista jurídico-constitucional, é necessário também problematizar a noção de democracia (regime político), que é mais ampla do que cidadania (fundamento da República). Esta pressupõe, apenas, o exercício dos direitos políticos (votar e ser votado). Aquela pressupõe a existência de instrumentos e meios para a participação do povo nos processos decisórios da organização política. Contudo, apenas numa perspectiva mais ampla, da teoria política ou da filosofia política, o uso dos instrumentos democráticos, disponibilizados pela Constituição Federal, configura exercício de cidadania. Pois, de acordo com a nossa Constituição a cidadania se restringe ao exercício dos direitos políticos. Por conseqüência, podem-se ter brasileiros que não sejam cidadãos brasileiros! Como é isso? As crianças, os incapazes, os condenados, os estrangeiros, etc., não são cidadãos porque não podem exercer os direitos políticos (votar e ser votado). Por outro lado, pode-se ter uma situação em que uma pessoa, por exemplo, propõe uma ação popular contra ato lesivo ao patrimônio público. Nessa situação, ela exerce a democracia, mas não a cidadania, nos estritos termos da nossa Constituição Federal. 3
4 Considerando o núcleo duro do Direito, outro modo de participação democrática direta do povo instituído, na Constituição Federal, é o controle de constitucionalidade das leis, que pode ser por ação e por defesa. Esse mecanismo expurga as leis que não são consideradas boas porque contrariam a Constituição Federal. De acordo com o princípio de hierarquia das leis, uma legislação infraconstitucional não pode contrariar a Constituição Federal, revogando ou modificando seus dispositivos. No controle por defesa, qualquer cidadão tem o direito de questionar a constitucionalidade das leis por meio de um processo judicial. No controle por ação há pessoas ou instituições legitimadas pela Constituição para propor a ação 6, cuja sentença tem efeito para todos os cidadãos. Com base no que vimos expondo sobre democracia dá para se criticar o enunciado constante na página 83 do Caderno Conselho Escolar e financiamento da educação no Brasil, publicado pela Secretaria de Educação Básica do MEC, pois, o trecho da publicação estatal, em parte, conflita com o regime político democrático do qual estamos tratando, veja. Ao defendermos a autonomia da escola [a gestão democrática], estamos defendendo que a comunidade escolar tenha liberdade para, coletivamente, pensar, discutir, planejar, construir e executar o seu projeto políticopedagógico, entendendo que neste está contido o projeto de educação e de escola que a comunidade almeja. No entanto, mesmo tendo essa autonomia, a escola está vinculada às normas gerais do sistema de ensino e às leis que o governam, não podendo, portanto, desconsiderálas [grifo nosso]. O enunciado citado conflita com o regime democrático adotado pelo Estado brasileiro porque se o povo quiser desconsiderar as leis pode fazê-lo a qualquer tempo, 6 Art Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. 4
5 pois, o poder popular é soberano! Já vimos que o projeto de lei de iniciativa popular e o controle de constitucionalidade das leis por defesa são um meio ou ferramenta do povo intervir diretamente no ordenamento jurídico isso deveria ser ensinado nas escolas! Por outro lado, o enunciado é verdadeiro, em parte, porque a Constituição, em alguns casos, proíbe a participação popular na alteração das leis. Assim, por exemplo, dispõe que a iniciativa de lei tributária e orçamentária é privativa do Presidente da República (art. 61, 1, II, b). Ao contrário do que ocorreu com a educação quando instituiu a gestão democrática do ensino público (art. 206, VI) como mais um meio ou instrumento de participação democrática direta do povo. Como se vê, no regime político democrático, em que vigora o princípio da soberania popular, é um regime sofisticado que exige a preparação da pessoa para o exercício da cidadania. Por essa razão, não é permitido que os analfabetos exerçam os direitos políticos. A democracia exige que os cidadãos desenvolvam uma consciência democrática e esclarecida para o aperfeiçoamento da convivência social. Por essa razão, na República e no regime político democrático a escola é o lugar por excelência de formação do cidadão e a Constituição lhe dá um tratamento especial. Assim, não é à toa que um dos fundamentos constitucionais da República Federativa do Brasil é a cidadania (Art. 1º, II) e a escola, dentre outras atribuições, deve preparar a pessoa para o exercício da cidadania (Art. 205) e deve ser gerida democraticamente (Art. 206, VI). Na República, o Estado deve ser fraco e a sociedade civil deve ser forte. Também nessa forma de estado, o que deve prevalecer é o interesse pela coisa pública, não pela vida privada dos cidadãos. Numa comunicação apresentada no Panorama Filosófico, organizado pelo Departamento de Filosofia da UFMT, concluiu-se 7 que a eutanásia poderia ser legalizada no Brasil, uma vez que ela diz respeito ao direito de ter uma morte digna, o que tem a ver com a vida privada do cidadão. Portanto, o Estado, em princípio, não deveria intervir nessa questão proibindo a prática da eutanásia. 7 CRUZ, Wesley Torres da. Panorama Filosófico. Aspectos da morte digna: um discurso filosófico da eutanásia Palestra proferida em Mini-Curso promovido pelo Depto. De Filosofia da UFMT Universidade Federal de Mato Grosso. 20 de junho de
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando se faz uma investigação sobre a relação da Constituição Federal e a educação escolar, regulamentada pela LDB, verifica-se que a educação (prática dos educadores) está desvinculada da estrutura político-jurídica do Brasil. É por esse motivo que se denominou o título da presente comunicação de uma democracia formal, pois, os dispositivos de participação direta existem apenas no papel, ou seja, formalmente na Constituição Federal. De outro lado, a escola, contraditoriamente, desconhece e não ensina aos alunos as formas instituídas pela Constituição Federal de participação democrática direta como, por exemplo, a ação popular e o projeto de lei de iniciativa popular, preparando-os para o efetivo exercício da cidadania, conforme quis o legislador constituinte. Com esse quadro político em que a educação não cumpre uma das suas atribuições constitucionais, como preparar a pessoa para o exercício da cidadania? Como os professores ensinarão o que é democracia se desconhecem seus mecanismos e instrumentos práticos? Quando a escola não cumpre seu papel constitucional, não enfraquece a sociedade política e deteriora a convivência social? Será que as universidades brasileiras estão formando professores de acordo com a vontade do legislador constitucional? Do ponto de vista jurídico-constitucional é equivocada a idéia de que o exercício da cidadania e da democracia se faz apenas e tão-somente pelo ensino de conteúdos específicos, pois, não basta a formação nas várias áreas do conhecimento ou a leitura de textinhos críticos sobre a realidade sócio-política do Brasil e do mundo. É necessário ensinar as formas de participação democrática instituídas pela Constituição Federal. A própria gestão democrática do ensino público é uma dessas formas! Assim, a preparação do cidadão para o exercício da soberania popular e da cidadania, instituída na Constituição Federal (Art. 1º c/c Art. 14), através da elaboração de projetos de lei de iniciativa popular, por exemplo, é tido como algo distante da realidade escolar e coisa de políticos profissionais. 6
7 Frente a problemas estruturais (violência, armas na escola, sexualidade, indisciplina, não participação dos pais, etc.) como o vivenciado pela Escola Estadual Presidente Médici 8, a escola os vê como insolúveis. Por outro lado, a Escola Municipal Flores da Cunha, Esteio/RS teve a coragem de enfrentar seus problemas cotidianos através do planejamento participativo e do exercício dos institutos político-jurídicos previstos na Constituição Federal (instauração de uma assembléia constituinte e projeto de lei municipal de iniciativa popular). Finalmente, quando nossa Constituição dispôs que um dos fundamentos da República é a cidadania e que a escola tem o papel de preparar a pessoa para o exercício da cidadania, essa vinculação encontra seu primeiro fundamento na tradição filosófica aristotélica, que define o homem como um animal político. Por essa filosofia política, dá para criticar a educação escolar contemporânea, pois, nela a ética (que se pode aprender através da educação escolar) desvinculou-se da política (no sentido de organização social, cidade). REFERÊNCIAS: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, A Política. São Paulo: Martin Claret, BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.Brasília,DF:Senado,1988. Disponível em: Acesso em 30 ago BRASIL. Ministério da Educação. Conselho escolar e o financiamento da educação no Brasil, Brasília: Secretaria de Educação Básica, Conforme relatório de visita à Escola Estadual Presidente Médice apresentado à disciplina Organização e Funcionamento da Educação Básica. Junho
8 BRASIL. Lei nº , de 20 de dezembro de Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 23 dez Disponível em:< Acesso em: 30 ago CHALITA, Gabriel. A Constituição e a LDB. In. Educação: a solução está no afeto, São Paulo: Gente, 2001, cap. 1. FREIRE, Roberto Barros. Participação política como exercício de cidadania. 176 f. Tese (Doutorado em Filosofia), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, GEMERASCA, Maristela P.; GANDIN, Danilo. Planejamento participativo na escola: o que é e como se faz. Coleção Fazer e Transformar, São Paulo: Loyola, LIMA, José Jivaldo. Da Política à Ética: o itinerário de Santo Tomás de Aquino. 266 f. Tese (Doutorado em Filosofia), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, MANTAY, Carla. A Construção de uma proposta político-pedagógica e (A)prova Brasil. Disponível em < Acesso em 30 ago. 2008, 20:18:30. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 11ª edição,
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