indivíduo se chamava Darwin e que ele foi odiado por seculares e comunistas. Os primeiros porque contrariava a teoria da criação divina, os segundos

Transcrição

1 O Burro e a Raposa Havia um tempo em que os animais falavam, mas numa língua que os humanos não entendiam. Dizem que ainda falam e que os homens ainda não aprenderam o bichonês. Se não os entendemos, a recíproca talvez não seja verdadeira, vemos alguns irracionais falando com cães, gatos, galinhas, até com peixinhos. Houve um indivíduo, dizem, que viveu na Grécia e que sabia traduzir o que os bichos diziam, mas não fez fortuna com seu dom, porque ainda não tinham inventado a imprensa. Se não me engano o nome dele era Esopo e suas fabulosas traduções foram escritas em forma de fábulas. Em pergaminho. Mas há animais que falam hodiernamente e temos alguns muito bem colocados na política brasileira, entre deputados, senadores, ministros e presidentes. São todos macacos ladrões. Desculpe, caro leitor, pela digressão, entrar na política, mas o pensamento é mais rápido do que o teclado e viajo escrevendo. Vamos voltar à fábula que não foi escrita por Esopo, nem chega a ser fábula fabulosa como as de Millôr Fernandes. Era uma vez um burro, que não gostava de ser burro e queria uma oportunidade de subir na vida. Onde quer que fosse perguntava o que deveria fazer para deixar de ser burro, ao que sempre respondiam que estudasse. Só que parar de fazer as coisas boas da vida para estudar não era muito fácil, o corpo estava acostumado à liberdade, ao vento e ao sol, mas, pensando bem, depois de uma semana em meditação, burros demoram muito quando pensam, concluiu que teria que ser rápido ou morreria pensando. Coisas de burros. Tinha que estudar. Um humano ainda desconhecido fundou uma escola de sobrevivência e evolução aberta a todos os animais, denominou Universidade da Seleção Natural, em que os alunos aprendiam que apenas os mais adaptados ao ambiente e que melhor pudessem aproveitar as oportunidades sobreviveriam. Ouvi falar que esse 1

2 indivíduo se chamava Darwin e que ele foi odiado por seculares e comunistas. Os primeiros porque contrariava a teoria da criação divina, os segundos porque não suportam que a sociedade, ou mesmo o universo, seja competitiva, para eles todos os bichos deveriam ser iguais, quase desnutridos e vegetarianos. Uma sociedade igual, sem sofrimento, melhor, onde todos sofram igualmente. Havia muitas disciplinas para Burro se inscrever, dentre elas uma lhe chamou a atenção: Adaptação a fontes variadas de alimentos I. Pensou por mais de uma semana, o que foi rápido pra burro, e concluiu que a matéria era muito importante para ele. Escalado para mestre estava Raposa, sabidamente adequado para a função por ser animal omnívoro, esperto e inteligente. Burro, munido de grande entusiasmo passou a frequentar as aulas, mas incomodavase com as piadas que ouvia, não seriam politicamente corretas, Raposa era muito sacana. Mas ele foi levando, empurrando com a barriga. As aulas eram teóricas e práticas e os vários alimentos eram apresentados em explanações longas, depois iam a campo experimentar. Foi assim que Burro conheceu o milho. Na aula teórica Raposa explicou que se pode comer o zea mays (nome científico por se tratar de universidade) verde ou maduro e que Burro poderia comer inclusive a planta toda. Contudo Burro era muito burro e comeu, na aula prática, os pés tenros que ainda cresciam tão logo teve oportunidade, ganhando nota muito baixa pela burrice e pela gula. Burro não concordou com a nota e comentava com os colegas: - Por que é que esse sujeito quer que eu coma o milho duro, se posso escolher os brotos tenros e recém nascidos? O professor é Raposa, mas é burro, eu sou mais esperto do que ele. Mais do que isso, ficou revoltado e passou a considerar que Raposa lhe era desafeto. Burro não gostava que os outros percebessem sua burrice, era arrogante, quando lhe perguntavam alguma coisa que 2

3 não sabia responder disfarçava ou agredia o interlocutor vocalmente. Numa aula de alimentação à base de proteína animal Raposa quis mostrar como faziam outros animais, chamou o aluno Urso para falar de sua experiência. Urso, sem muitos rodeios, disse: - Como de tudo, peixes, aves, veados, o que conseguir pegar. Burro teve dificuldade de participar da experiência, era vegano fanático, e perguntou: - Raposa, você come isso tudo? - Não, Burro, raposas não comem veados normalmente. São muito grandes. Preferimos galinhas, mais delicadas, fáceis de pegar. Burro faltou à aula prática, não aceitava fazer qualquer tarefa em que não se sentisse à vontade. Saiu proclamando: - Sou vegano desde que desmamei. Sei o que quero, me chamo Burro, mas não sou burro. Por conta disso ganhou um zero naquela avaliação. Passados alguns dias houve aula sobre alimentação arbórea. No exemplo prático, no começo, Burro adorou, tanto nas macieiras quanto nas goiabeiras, ele conseguia se deliciar com frutos à altura de sua boca, mas não gostou da parte onde deveria aprender a subir nas árvores. - Não subo, burros não trepam em árvores. - Não generalizes, Burro, é uma questão de treino, de aprendizagem. - Raposa, há bichos que não conseguem, já viu um cão trepar em árvores? - Esse é o objetivo desse curso, ensinar a se adaptar ao meio, sou raposa e subo em árvores, raposas são canídeos. Na internet está cheio de vídeos de cães fazendo isso. Peço ao leitor a licença poética de colocar a internet ao alcance dos animais daquele tempo. Obrigado. - Mas burros têm cascos, não dá. Raposa resolveu brincar com o aluno. - Burro, sei que és inteligente, deixa de ser burro, abre a internet e 3

4 procura vídeo de cabras comendo folhas de árvores, trepadas nos galhos mais altos. Não confundas, trepadas aqui são o sentido direto do verbo trepar, não o deturpado para fornicar. Alguns dos colegas riram. E continuou: - O que tens que fazer é começar subindo em coisas baixas para te acostumares à altura gradualmente e para que teus cascos aprendam a sentir quando estiverem na iminência de escorregar. Esse é teu dever de casa. Burro não gostou, ficou revoltado com a ideia de ter que voltar a fazer aquilo que deveria ter aprendido na infância, nas brincadeiras, nas aulas. Acima de tudo não gostara de ter sido chamado de burro inteligente. Burro sabia que era burro, mas não podia admitir que o chamassem assim, mesmo de brincadeira. - O professor me chamou de burro! - Não, eu chamei de inteligente. - Mas disse para eu parar de ser burro. - Porque estavas defendendo uma burrice. Saiu dali com as ideias empacadas e quando um burro empaca... Em lugar de praticar, fazer o dever de casa, foi até a Delatoria. Delatoria era coisa velha que estava sendo ressuscitada naquela universidade; havia sido muito usada por um alemão chamado Adolfo, também por um russo chamado José Estalinho e um cubano, Fiel Capador, que consistia condenar pessoas que fossem delatadas ou mal faladas para o oficial ouvidor. Raposa recebeu o documento delatório, que não era assinado pelo aluno, onde era acusado de preconceito contra burros e acima de tudo homofóbico. Meditou rapidamente, ele era uma raposa, não era burro, nem homofóbico, mas lembrou-se que havia dito que raposas não comem veados. Quanto à outra acusação, sabia que nada tinha contra os burros, mas que suas aulas sempre seriam mais bem dadas quando eles não estivessem presentes. Cansava muito explicar a mesma coisa muitas vezes. 4

5 Em sua defesa simplesmente escreveu que não havia que se defender de acusações apócrifas, feitas por quem covardemente se esconde em delação anônima, e acrescentou que ter preconceito é direito de todo cidadão livre, exemplificou que a própria moral é uma forma de preconceito. O que ele, ou qualquer outra pessoa, não poderia fazer, e nunca havia feito, seria prejudicar ou excluir um aluno por não gostar dele ou de suas ideias. Raposas, como dito, são espertas, tanto que ainda hoje se diz de alguma pessoa muito ladina: - cuidado que esse cara é uma raposa. Conversando com os colegas de Burro foi muito fácil descobrir quem era o delator apócrifo. Raposa já estava velho, cansado daquela labuta, e se demitiu. Então passou a aproveitar a vida, abriu uma franquia de fast-food e agora tem tempo para passear de barco, ir à praia, comer churrasco com uma turma que costuma trilhar em grupo. Num desses encontros se deparou com Burro que o evitou de todas as formas; consciência pesada, pensou. Mas na hora da despedida esticou a pata para Burro que olhou em seus olhos e disse: - Raposa, sabe que não lhe cumprimento. Raposa continua raposa e Burro continua burro. Moral da história: Todo mundo nasce burro, só vai deixar de sê-lo quem quiser. Há burros com vergonha de ser burros e tentam camuflar a ignorância, mas são tão burros que o fazem usando da soberba, que é a maior evidência de que são burros. Nada dói mais do que a verdade, nunca chame um burro de burro, ele jamais vai esquecer. Nem lhe perdoar. Mas, felizmente, somos todos raposas. 5