CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA ORQUESTRAÇÃO DE FRANCISCO MIGNONE NA OBRA QUADROS DE UMA EXPOSIÇÃO DE MUSSORGSKY Cássio Aparecido Siqueira 1 RESUMO
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- Theodoro Luiz Câmara Maranhão
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1 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA ORQUESTRAÇÃO DE FRANCISCO MIGNONE NA OBRA QUADROS DE UMA EXPOSIÇÃO DE MUSSORGSKY Cássio Aparecido Siqueira 1 RESUMO Quadros de uma Exposição, de Modest Mussorgsky, ( ) é uma suíte escrita originalmente para piano, mas que foi transcrita para orquestra por alguns compositores, como Mikhail Tushmalov ( ) e Maurice Ravel ( ). Com tantos olhos voltados para esta obra, podemos concluir que há muito que se pesquisar e entender sobre o que estas distintas orquestrações podem nos revelar no universo da transcrição orquestral. Para tal efeito, analisaremos dois episódios, Promenade I e Gnomus da orquestração de Francisco Mignone ( ), trabalho este não muito difundido nas salas de concerto, entretanto de suma importância para a música brasileira e para o estudo da orquestração. Palavras-Chave: Orquestração; Musicologia histórica; Mussorgsky; Mignone. 1 Mestrando em música pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho, (Unesp). Bacharel em Música pela Faculdade Cantareira (2013) onde esteve sob a orientação dos Maestros Sergio Chnee, Roberto Anzai e Andi Pereira. Em Abril de 2016 foi aluno e produtor da Master Class ministrada pelo maestro Wendell Kettle, doutor em regência pelo conservatório Rimisky-Korsakov São Petersburgo, Rússia. Desde 2013 é diretor artístico e regente da Orquestra Sinfônica e do coral Municipal de Extrema-MG. Autor do livro Educando Com Música e coautor do El Gran Libro de La Interpretación Musical. 232
2 CONSIDERATIONS REGARDING THE ORCHESTRATION OF FRANCISCO MIGNONE IN THE MUSICAL PIECE PICTURES AT AN EXHIBITION WRITTEN BY MUSSORGSKY ABSTRACT Pictures at an Exhibition is a musical piece written by Modest Mussorgsky ( ). It is about a suite that was originally written for the piano, but it has been rewritten for orchestra by some composers, as Mikhail Tushmalov ( ) and Maurice Ravel ( ). Due to the huge interest about that piece, we can conclude that it must be researched in order to get a more in-depth understanding about what those distinct orchestrations can reveal in their universe of orchestral transcription. Therefore, we are going to analyse two episodes, Promenade I and Gnomus of the orchestration the Francisco Mignone's ( ) orchestration, a not very widespread work in concert halls, however of importance for Brazilian music and for the studies of orchestration. Keywords: Orchestration; Historical musicology; Mussorgsky; Mignone. 233
3 1. INTRODUÇÃO O hábito de se transcrever do piano para orquestra intensificou-se a partir do Romantismo. Franz Liszt ( ), por exemplo, concebeu grande parte das suas obras orquestrais inicialmente para piano. Entre estas transcrições, podemos citar as Rapsódias Húngaras. Um dos grandes mestres da transcrição orquestral foi Maurice Ravel, que foi também um exímio orquestrador, realizando transcrições da orquestra para o piano, e vice-versa, não só de obras suas assim como obras de outros compositores. Para exemplificar citaremos Prélude à l Après-midi d un faune, composto originalmente para orquestra por Claude Debussy ( ) e transcrito para piano a quatro mãos por Ravel em 1910 (ORENSTEIN, 1991, p. 241). Outro orquestrador que realizou os mesmos feitos citados acima foi Francisco Mignone, que orquestrou a Suíte Inglesa nº1 de Bach, (MARIZ, 1997, p. 179) e também a redução para piano da Sinfonia nº2 de Johannes Brahms ( ) (Idem). Em Quadros de uma Exposição, a primeira alteração sofrida pela obra vem através da mudança de meio instrumental, neste caso, passa de um meio instrumental individual, o piano, para um meio instrumental coletivo, a orquestra. Ao passar de uma partitura de piano para orquestra, muitas mudanças estarão em evidência, pois características essencialmente pianísticas terão que ser traduzidas de forma a adquirir o efeito desejado dentro dos termos orquestrais. Sendo assim, discorremos neste artigo como tais efeitos são tratados e como chegamos aos termos orquestrais para a execução das obras analisadas. 234
4 2. O Autor Modest Petrovich Mussorgsky ( ) nasceu em Karevo, Russia e faleceu em 1881, sofrendo de epilepsia alcoólica (SADIE, 1994, p ). Suas principais obras foram, Uma noite no Monte Calvo, Boris Godunov e Quadros de uma Exposição. Mussorgsky foi um dos compositores russos mais influentes do século XIX. Ele integrava o Grupo dos Cinco, fundado na década de 1860, um conjunto de compositores que tinha como propósito estabelecer uma escola nacionalista de música russa. Estes compositores são considerados os mais importantes da virada do século XIX para o XX, e são eles: Mily Balakirev ( ), Alexander Borodin ( ), César Cui ( ), Nicolái Rimsky-Kórsakov ( ) e Modest Mussorgsky (GROUT, 2007, p. 667). 3. A Obra Quadros de uma Exposição é uma suíte que foi composta originalmente para piano, em Entretanto, sua publicação foi realizada somente em 1886, cinco anos depois da morte de Mussorgsky e doze anos após sua composição. A obra ainda passou por uma revisão feita por Rimsky-Kórsakov ( ), na qual algumas alterações foram realizadas (ALENCAR, 2012, p. 10). De acordo com Motta: Os Quadros de uma Exposição de Mussorgsky retratam o povo russo. Não fazem referências às histórias dos nobres, dos Czares ou da burguesia. Retratam o mercado de rua, as histórias folclóricas, as crianças brincando ou os prédios e monumentos das cidades. Interpretações e estudos vindos à tona para o mundo ocidental após a queda do regime comunista russo demonstram uma aproximação a este repertório por outras vertentes que não as usuais. Os Promenades, por exemplo, comumente identificadas com o próprio Mussorgsky andando trôpego pela exposição dos quadros, ganham interpretações de um chamamento ao espírito russo, onde um canto 235
5 folclórico é entoado primeiramente por apenas uma voz, e conforme a música se desenvolve, outras vozes vão se unindo a esta, formando um grande coro unificador... mais do que um retrato pessoal de Mussorgsky, Quadros de uma Exposição, fala do sentimento russo e de sua sociedade (MOTTA, 2012, p. 18). Mussorgsky baseou-se nos quadros pintados pelo russo e amigo pessoal Victor Hartmann ( ), arquiteto e pintor. Ao visitar uma exposição memorável, organizada pela Sociedade de Arquitetos de São Petersburgo, ocorrida entre fevereiro e março de 1874, Mussorgsky escolheu dez quadros e para cada um deles escreveu uma música. Intercalou-as com um intermezzo, o Promenade. A obra de Mussorgsky compõe-se dos seguintes episódios e cada episódio retrata um personagem ou um acontecimento. (ALENCAR, 2012, p ) I.Promenade (Passeio) Introdução Allegro giusto, nel modo russico, senza allegrezza, ma poco sostenuto. Representa a entrada do visitante na exposição e o deslocamento até os quadros. II. Gnomus (Gnomo) Sempre vivo. Retrata um gnomo desajeitado e disforme, que se desloca rudemente a coxear. Promenade Moderato comodo assai e con delicatezza. III. Il Vecchio Castello (O Velho Castelo) Andante molto cantabile e con dolore. Um velho castelo, em frente do qual um trovador entoa sua canção. Promenade Moderato non tanto, pesante. IV. Tuileries (Tulherias) Allegretto non troppo, cappricioso. É uma alegre passagem em que se descrevem jogos infantis num parque. V. Bydlo (Carro de bois) Sempre moderato, pensante. Uma carroça polaca com rodas enormes, puxada por bois. Promenade Tranquillo. 236
6 VI. Ballet des Petits Poussins dans leurs Coques (Bailado dos Pintinhos em suas Cascas de Ovos) Schernizo. Representa o nascimento de pintos e de todo o bailado que realizam para saírem das suas cascas. VII. Samuel Goldenberg et Schmuyle Andante. Grave, energico. Dois judeus, um rico e outro pobre. Promenade Allegro giusto, nel modo russico, poco sostenuto. VIII.Limoges, Le Marché (O Mercado em Limoges) - Allegretto vivo, sempre scherzando. É uma animada descrição do variado mundo de um mercado popular. IX. Catacombae (Catacumbas) Largo. Cum Mortuis in Língua Mortua (Com os Mortos em Língua Morta) - Andante non troppo, com lamento. Representa um ambiente triste e obscuro de uma catacumba. X. La Cabane de Baba-Yaga sur de Pattes de Poule (A Cabana de Baba-Yaga sobre Patas de Galinha) Allegro com brio, feroce. Andante mosso. Allegro molto. Inspira-se num desenho que representa uma casa com relógio apoiada em duas patas de galinha (a cabana da bruxa Baba-Yaga). XI. La Grande Porte de Kiev (A Grande Porta de Kiev) Allegro alla breve. Maestoso. Con grandezza. É inspirado no arco do triunfo de Kiev, projeto elaborado por Hartmann. 4. Orquestrações A seguir, faremos menção a três compositores e os instrumentos que cada um utilizou para orquestrar os Quadros de uma Exposição de Mussorgsky. Estamos considerando aqui apenas as orquestrações de maior expressão acadêmica e 237
7 coerência com este trabalho 2. No entanto, em uma pesquisa em documentos eletrônicos via internet poderemos encontrar muitas transcrições e arranjos para as mais variadas formações. Mikhail Tushmalov foi o primeiro a orquestrar os Quadros de uma Exposição. Sua versão para orquestra ficou conhecida pelo público em 1891, antes da versão original para piano. Os instrumentos usados por Tushmalov foram: 2 flautas, flautim, 2 oboés, corne-inglês, 2 clarinetas, clarone, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, piano e cordas. Maurice Ravel foi quem obteve maior êxito com sua orquestração dos Quadros de uma Exposição, datada de Em sua orquestração, Ravel alterou andamentos, dinâmicas, formulas e quantidades de compassos, tornando a obra de Mussorgsky mais eficaz que a original para piano (ADLER, 2006, p. 667). Os instrumentos utilizados em sua versão constituem-se de: 2 flautas, flautim, 2 oboés, corne-ingles, 2 clarinetas, clarone, 2 fagotes, contra-fagote, saxofone alto, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, 2 harpas, percussão e cordas. Vladimir Ashkenazy (1937 -) foi o primeiro pianista e maestro russo de renome a orquestrar os Quadros de uma Exposição. Sua partitura apareceu em Ashkenazy considerava a orquestração de Ravel um tanto insuficientemente russa (ALENCAR, 2012, p.17). Os instrumentos que compõem sua orquestração são: 2 flautas, flautim, 2 oboés, corne-inglês, 2 clarinetas, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta e cordas. 2 Este artigo é resultado parcial da pesquisa para dissertação de mestrado. 238
8 5. A Orquestração Ao realizar uma orquestração, alguns pontos precisam ser cuidadosamente observados, a fim de manter-se fiel à obra. Segundo Piston (1984, p. 1) a transcrição para orquestra pode ser uma arte difícil e com mil nuances. Com base nisto, destacaremos alguns procedimentos que devem ser cuidadosamente considerados ao realizar-se uma orquestração, e para isso, tomaremos por base as citações de Pereira (2011, p ), que exemplifica em cinco tópicos os procedimentos que devem ser observados na orquestração: Busca fidelidade ao original; São específicas quanto ao meio instrumental; O timbre é a principal ferramenta de manipulação; A textura e sonoridade também são aspectos fundamentais, pois favorecem o aparecimento de novos desenhos criando novas arquiteturas sonoras; O aspecto altura, no sentido de registro, ou tessitura, também se torna importante ferramenta de manipulação na ampliação da extensão sonora que a orquestra permite. 6. Francisco Mignone e sua versão Francisco Mignone, pianista, compositor e regente, nasceu em São Paulo, filho mais velho do casal Alfério e Virgínia Mignone, imigrantes italianos que se fixaram no Brasil em Francisco Mignone teve sua vida musical dividida entre Europa e Brasil. Mignone realizou diversas orquestrações como consta no catálogo de obras organizado por Flávio Silva (2016, p ). A versão de Mignone de Quadros de uma Exposição ainda é pouco apreciada, e por motivos desconhecidos ainda não se 239
9 sabe a data desta orquestração, já que o próprio Mignone não datou a obra nem no manuscrito. Os instrumentos utilizados por Mignone para orquestrar os Quadros de uma Exposição, constituem-se de: 2 flautas, flautim, 2 oboés, corne-inglês, 2 clarinetas, clarone, 2 fagotes, contra-fagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, percussão, harpa, celesta e cordas. Mignone manteve-se o mais fiel possível à obra de Mussorgsky. Preservou as dinâmicas, andamentos, compassos e orquestrou toda a obra, diferentemente de Tushmalov e Ravel. Entretanto, Mignone modificou algumas tonalidades como será observado mais abaixo. Analisaremos a seguir o Promenade I e Gnomus, no manuscrito original de Mignone, destacando os instrumentos usados e os resultados obtidos, comparandoas sempre com a versão original PROMENADE Allegro giusto, nel modo russico, senza allegrezza, ma poco sostenuto, Sib maior. A melodia do Promenade é o tema condutor da suíte e, com pequenas variações, aparece ao longo de quase toda a obra, na forma de pequenos intermezzi. Os Promenades representam o próprio Mussorgsky caminhando pela exposição (MOTTA, 2012, p. 18). O tema (Figura 1) é bem característico da música de Mussorgsky, isto é, seu caráter é decidido, e para enfatizá-lo podemos destacar o uso do forte, única dinâmica colocada neste Promenade. Uma característica neste primeiro Promenade é a constante mudança de compassos, 5/4 e 6/4. Outro ponto a ser considerado é como Mussorgsky expõe o 3 São Petersburgo, V. Bessel & Co., 1886, editado por Nikolai Rimsky-Korsakov ( ). 240
10 tema, alternando dois compassos da melodia solo seguido da melodia harmonizada, característico do canto responsorial. Figura 1: Tema. A peça inicia-se com um encadeamento harmônico VI-V 6 -VI-V-III. É possível perceber já no início como mostra a figura 1, uma oscilação entre o tonal e o modal, característica desta suíte. Ao analisarmos os quatro primeiros compassos encontraremos a tônica, neste caso si bemol apenas no segundo tempo do quarto compasso. O primeiro acorde que aparece no terceiro compasso é um sol menor VI grau. No último compasso há a indicação attacca 4 provocando uma mudança súbita de caráter com a seção seguinte. A primeira observação a ser feita, é a fidelidade de Mignone à dinâmica, que é fundamentalmente importante nas soluções orquestrais. Ele mantém o forte do começo ao fim igualmente no original de Mussorgsky. Para orquestrar o Promenade I Mignone faz uso dos seguintes instrumentos: 2 flautas, flautim, 2 oboés, corne-inglês, 2 clarinetas, clarone, 2 fagotes, contra-fagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpano, prato suspenso e cordas. Mignone utiliza três trompetes em si bemol na exposição do tema nos dois primeiros compassos, já no terceiro e quarto compassos como resposta aos dois compassos anteriores, ele faz uso do corne-inglês, clarinetas, clarone, fagotes, trombone, tuba e tímpanos. 4 Termo explicado em: SADIE, Stanley (ed.). Dicionário Grove de Música. Tradução Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Zahar, p
11 Figura 2: Início do Promenade. O tímpano aqui utilizado por Mignone além de servir para marcar o ritmo, tem a função exata, segundo Piston (1984, p. 323), de reforçar dinamicamente os tuttis, especificamente nos baixos, ao qual emprestam cor e vivacidade. No quinto compasso, o tema é exposto nas partes das quatro trompas. No oitavo compasso pela primeira vez o violoncelo e o contrabaixo aparecem dobrando a parte grave juntamente com o clarone, fagote, contra-fagote, trombone baixo e a tuba. As partes escritas para os violino e violas ocorrem pela primeira vez no compasso 12 e seguem até o final, dobrando o tema ou realizando preenchimento harmônico. Neste mesmo compasso Mignone utiliza um prato suspenso, em preparação ao tutti do compasso 13. A partir da segunda metade do compasso 17, a melodia é realizada por violinos, violas, flauta, oboé, clarineta, corne inglês, trompete e trombone. Segundo Kórsakov (1946, p.67), estes dobramentos reforçam a sonoridade dos arcos, embelezam o timbre das madeiras e contribuem para a obtenção de um novo timbre. Além do que, este dobramento se faz necessário para 242
12 uma melhor audição das melodias executadas nas cordas, as quais devem ser tocas sempre com muito arco. As trompas são reservadas para intervenções nos compassos 16, 17 e, a partir do 20 elas são tocadas até o final contribuindo com a maneira russa, isto é, muita expressividade, como pede Mussorgsky na indicação do andamento da peça. Figura 3: Final do Promenade 243
13 8. GNOMUS Sempre vivo, Mi bemol menor. Figura 4: Gnomus 5 Esta peça procura retratar um gnomo desajeitado e disforme, que se desloca rudemente a coxear. Duas características marcantes do universo de Mussorgsky são aqui representadas: o bizarro e o amedrontador. No esforço de descrever a impressão obtida ao ver o primeiro quadro, Mussorgsky usou os mais variados recursos significativos, a seguir. Observemos antes de tudo o contraste entre a tonalidade de si bemol maior do Promenade I e mi bemol menor do Gnomus, contribuindo para o caráter obscuro deste Quadro. Segundo Morillo (1953, p. 44) o contraste tonal deve ser observado. A tonalidade, muito ampla, escapa as regras clássicas, e se preocupa mais de contrastes claro e escuro que de relações tonais. Para descrever a sensação de movimento do Gnomo, Mussorgsky utilizou um desenho melódico em colcheias com saltos e dissonâncias que aparece ao longo de toda a peça. São realizadas onze modificações em relação ao andamento inicial, sempre procurando descrever o caráter grotesco do Gnomo. São muitos os contrastes usados por Mussorgsky, entre eles podemos destacar: mudança de dinâmica que ocorre com grande frequência,
14 utilização de fermatas, mudança de fórmulas de compasso, deslocamento da acentuação métrica do compasso utilizando o sforzato e distanciamento entre a região grave e aguda, desta forma afastando e aproximando as mãos do pianista. Figura 5: Trecho inicial do Gnomus Um dos grandes desafios desta peça na transcrição orquestral é a tonalidade de mi bemol menor, que por se tratar de uma tonalidade ampla cria uma série de complexidades, inclusive na afinação de alguns instrumentos. Observando ainda os saltos e andamentos vivos, encontramos mais uma série de dificuldades sobre tudo para as cordas, na afinação e articulação. Entretanto, Mignone resolveu este problema transportando a tonalidade para Mi menor. Este recurso foi um meio que Mignone encontrou para a resolução da dificuldade técnica que a tonalidade traria a orquestra. O mesmo recurso ele utilizou no Velho Castelo. Ravel por sua vez manteve em ambos os episódios a tonalidade original. Contudo, este recurso utilizado por Mignone criou um problema: o contraste tonal pretendido por Mussorgsky entre os Quadros, comprometendo assim a integralidade de Mignone a obra de Mussorgsky. Entretanto, Mignone preocupava-se que a música pudesse ser realizada, sem que grandes obstáculos interferissem na execução (MARIZ, 1997, p. 37). Os instrumentos utilizados por Mignone para orquestrar Gnomus foi: 2 flautas, flautim, 2 oboés, corne-inglês, 2 clarinetas, clarone, 2 fagotes, contra-fagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpano, harpa, celesta e cordas. 245
15 O motivo inicial é exposto nas partes das cordas, viola, violoncelo e contrabaixo, dobrado pelas partes das madeiras, clarone, fagotes e contra-fagote, nos compassos nos quais há a indicação de fortíssimo, seguido de piano pelas madeiras, em um andamento menos vivo. As acentuações sforzato nas madeiras e cordas são enfatizadas com as trompas em forte. Ao tímpano coube uma nota no compasso 10, com a dinâmica forte e seca, o que contribui com o caráter amedrontador. Figura 6: Motivo inicial 246
16 Os dez compassos que se seguem, a partir do 19, têm um colorido orquestral bastante diversificado. Apesar de Mignone utilizar uma orquestra reduzida, ele explora técnicas especificas dos instrumentos, como os Frullatos 6 nas flautas, os pizzicatos nas cordas e posteriormente o trêmulo, os trompetes com surdina e sforzato e pela primeira vez a harpa sendo tocada com a indicação deixar vibrar e com dinâmica forte. Todos esses recursos utilizados por Mignone destacam seu domínio em relação à orquestração, a potencialidade individual de cada instrumento e a relação de timbre nesta junção. Mignone busca na orquestração desse Quadro, explorar os mais distintos recursos timbrísticos, fazendo uso de diferentes articulações e especificidades dos instrumentos, inclusive nas combinações e dobramentos dos instrumentos como pode ser observado na figura 8. Mignone utiliza as cordas com uma extensão de três oitavas para transcrever a escrita de Mussorgsky e segundo Piston (1984, p. 442), o efeito obtido é o enriquecimento do som, com maior fluidez e sublimidade. Figura 7: Versão original Compassos 72 a 77 6 Termo explicado em: SADIE, Stanley (ed.). Dicionário Grove de Música. Tradução Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Zahar, p
17 Figura 8: Versão de Mignone 9. Considerações Finais Com a modificação da instrumentação, no caso do piano para a orquestra, opera-se uma mudança bastante significativa em timbre, sonoridade e textura. A densidade da textura passa a ser automaticamente ampliada pelo número de vozes da orquestra em detrimento do número de vozes possíveis no piano soadas simultaneamente. Ao mesmo tempo, é preciso comentar que o piano é um instrumento rico em aspectos como sonoridade trazendo no pedal uma ferramenta fundamental que precisa ser levada em consideração no momento de se transportar uma ideia do piano para a orquestra. Ao passar de um instrumento a outro, aspectos como timbre e sonoridade são automaticamente afetados. Para que cada frase ou seção fosse devidamente valorizada e não se perdesse ao longo da orquestração, Mignone teve que se preocupar com o timbre orquestral, ou seja, ele não podia realizar a junção dos instrumentos sem antes levar em consideração o timbre individual deles. Caso isso acontecesse, poderia ocorrer uma neutralização ou supervalorização de um determinado instrumento, empobrecendo assim o timbre da orquestra e, até mesmo, provocando a 248
18 descaracterização da obra. Por isso, o cuidado na escolha dos instrumentos no decorrer da sua orquestração, foi determinante para o resultado final. 249
19 REFERÊNCIAS ADLER, Samuel. El estudio de la orquestración. Idea Books S.A., Barcelona, ALENCAR, Henrique Villas Boas. Os quadros de Mignone. Trabalho de conclusão de curso. Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, SADIE, Stanley (Ed.) Dicionário de música: Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., GROUT, Donald J. et PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. 5ª ed. FARIA, Ana Luiza (trad.) Lisboa: Gradiva, MARIZ, Vasco (org). Francisco Mignone o homem e a obra. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, FUNARTE, EDUERJ, MORILLO, Robeto Garcia Mussorgsky. Buenos Aires: Ricordi Americana: MOTTA, Daniel Andriolli Rodrigues. Quadros de uma exposição para violão solo por Kazuhito Yamashita: um estudos dos efeitos técnicos a partir da comparação com o original para piano e a orquestração de Maurice Ravel f. +. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, Disponível em: MUSSORGSKY, Modest. Pictures of an Exhbition. New York: Editora Kalmus. NIEWEG, Clinton F. A NIEWEG CHART. Pictures at an Exhibition, ORENSTEIN, Arbie. Ravel: man and musician. New York: Dover, PEREIRA, Flávia Vieira. As práticas de reelaboração musical. Tese de Doutorado. Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, PISTON, Walter. Orquestación. Madrid: Real Musical, RIMSKY-KORSAKOV, Nikolay. Princípios de orquestración. Ricordi Americana S.A.E.C. Buenos Aires, SILVA, Flávio. Francisco Mignone: Catálogo de obras. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música,
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