Rogerio Waldrigues Galindo LIBERALISMO E UNIÃO CIVIL HOMOSSEXUAL: JOHN RAWLS E SEUS CRÍTICOS NA DISCUSSÃO SOBRE O BEM, OS DIREITOS E A LIBERDADE



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Transcrição:

Rogerio Waldrigues Galindo LIBERALISMO E UNIÃO CIVIL HOMOSSEXUAL: JOHN RAWLS E SEUS CRÍTICOS NA DISCUSSÃO SOBRE O BEM, OS DIREITOS E A LIBERDADE Pré-projeto de dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, linha de pesquisa Ética e Política do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná como requisito parcial do processo seletivo do programa, nível mestrado. CURITIBA 2011

Sumário 1 INTRODUÇÃO... 3 2. REVISÃO DA LITERATURA... 4 2.1 Kant, Rawls e o liberalismo... 4 2.2 A crítica comunitária... 6 2.3 Republicanismo... 8 2.4 Libertarianismo... 10 2.5 Perfeccionismo... 10 3. PLANO DE TRABALHO... 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 13

1 INTRODUÇÃO No Brasil e em vários outros países ocidentais vem-se discutindo a hipótese de permitir a união civil entre casais gays. Por aqui, o Supremo Tribunal Federal determinou, em 2011, que esse tipo de união é possível. Apesar disso, a disputa pela criação de uma legislação sobre o assunto ainda está em aberto. Discute-se também se, além da união civil, o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria possível. O debate sobre o tema põe em evidência algumas das questões mais importantes da filosofia política. É possível que possamos conviver em paz numa sociedade? E é possível fazer isso sem que tenhamos abrir mão de nossas convicções pessoais mais íntimas? O projeto aqui apresentado pretende investigar, usando a união civil homossexual como tema de fundo, quais são as principais concepções possíveis na filosofia política contemporânea acerca de problemas do gênero. As questões sobre convivência pacífica e convicções pessoais, presentes há séculos na Filosofia, parecem ter recebido novo impulso nos últimos 40 anos. Desde que John Rawls publicou Uma teoria da Justiça, em 1971, filósofos de várias parte do mundo vêm tratando de rebater a teoria do norte-americano ou de reafirmá-la. Em quatro décadas, teóricos como Jürgen Habermas, Ronald Dworkin, Michael Sandel, Alasdair McIntire, Robert Nozick, Joseph Raz e outros se debruçaram sobre o liberalismo proposto por Rawls e criaram suas próprias teorias sobre ele. Este projeto pretende retomar essa discussão, fazendo um histórico de seus antecedentes, um resumo da teoria de Rawls e mostrar como alguns de seus principais oponentes contestaram seus argumentos. De um lado, mostrará a crítica do comunitarismo ao liberalismo de Rawls. Aqui, o representante escolhido para a análise foi o professor norte-americano Michael Sandel, autor de Liberalismo e os Limites da Justiça. De outro, mostrará a crítica do republicanismo de Jürgen Habermas a Rawls. A seguir, mostrará ainda as visões dos libertários e dos perfeccionistas sobre o tema. Veremos como as soluções diferentes para o problema dependem da compreensão de como deve se comportar uma boa sociedade; da prioridade que se dá ao justo ou ao bem ; e da própria compreensão de ser humano que se adote (afinal, nós temos certos objetivos ou somos o que esses objetivos fazem de nós?).

2. REVISÃO DA LITERATURA 2.1 Kant, Rawls e o liberalismo A Era Moderna viu surgir um novo tipo de pensamento político. Entre os gregos e na Idade Média, era comum o pensamento de que ao príncipe, ao governo, caberia o papel de aperfeiçoar moralmente os seus cidadãos. A partir da Renascença, o modo como essa questão é vista muda radicalmente. Passa-se a entender que o papel do Estado é o de dar certas garantias ao indivíduo (paz, liberdade, justiça), e deixar a cargo de cada um definir o seu projeto de vida. A ideia da boa vida, presente em Platão ou Aristóteles, dá lugar ao Estado amoral de Maquiavel e Hobbes. Considera-se, na maior parte dos autores, que o direito de um indivíduo só tem limite quando afeta direitos alheios ou seus próprios direitos inalienáveis. A obra de John Rawls (1921-2002) vai ajudar a revitalizar o debate sobre quais são as regras que podem tornar melhor uma sociedade baseada nesse tipo de liberalismo. Rawls retoma a discussão feita por Immanuel Kant sobre direitos, deveres e justiça e a atualiza por meio de procedimentos próprios. Começa então um novo capítulo da história do liberalismo. Assim como Kant, Rawls entende que é possível deduzir regras de conduta que, estendidas a todos os indivíduos, estabelecem um conceito de justiça que deve ser seguido por toda uma comunidade. Ao contrário de Kant, porém, que baseia sua dedução numa concepção idealista, em que a razão pura é o guia do sujeito no caminho das regras a serem encontradas, Rawls vai buscar sua dedução em outro procedimento. Sua ideia básica é a de que seria possível imaginar um acordo inicial, prévio a todo o nosso convívio social, em que se estabelecessem regras sobre o que é justo é o que é injusto. Devemos imaginar que aqueles que entram em cooperação social escolhem juntos, em um único ato conjunto, os princípios que devem atribuir os direitos e os deveres fundamentais e determinar a divisão dos benefícios sociais. Os homens devem decidir de antemão como devem regular suas reivindicações mútuas e qual deve ser a carta fundacional de sua sociedade. 1 O contrato social de Rawls, como se sabe, se dá por meio da ideia de uma posição original, em que cidadãos hipotéticos decidiriam, conjuntamente, as regras do convívio. Para que o procedimento seja justo, porém, Rawls imagina uma série de 1 Rawls, John. Uma teoria da Justiça. Martins Fontes, São Paulo, 2008. Página 14.

exigências necessárias ao bom funcionamento do acordo. A mais importante delas é a noção do véu da ignorância. Ou seja: embora saibam que, no mundo real, terão um papel definido, uma posição social e convicções próprias, as partes, na posição original, não sabem exatamente quem são nem aquilo em que acreditam. O véu, porém, não é tão opaco que impeça os participantes do acordo de saber que eles têm alguns interesses. Sabem, por exemplo, que estarão em uma sociedade plural, em que poderão professar uma fé minoritária; ou que poderão se encontrar em situação economicamente desvantajosa. E, assim, têm de proteger, sem saber qual é sua condição real, os interesses de qualquer grupo de que venham a fazer parte. Rawls desenha assim as regras de sua sociedade com base em dois princípios de justiça que, acredita ele, seriam derivados certamente de uma situação como esta. O que nos interessa particularmente é o primeiro princípio, que prevê que: Cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas. 2 Na concepção de Rawls, portanto, a justiça vem acima da concepção de bem de cada um dos indivíduos. Na verdade, para participar da discussão publica, seria necessário deixar de lado nossas convicções pessoais e de nossas crenças (o que Rawls impõe por meio do véu da ignorância). Na discussão pública, só o que for compreensível para todos, sem apelo a argumentações de outro gênero (metafísicas, religosas, etc) é válido. Um dos grandes seguidores de Rawls, Ronald Dworkin afirma que isso significa que os liberais, como tais, são indiferentes ao estilo de vida que cada cidadão escolhe. Mais: o Estado deve proteger a possibilidade de escolhas pessoais. Dado que os cidadãos de uma sociedade divergem em suas concepções, escreve ele, o Estado falha se prefere uma concepção a outra, seja porque as autoridades acreditam que ela seja intrinsecamente superior, ou seja porque ela é defendida por um grupo mais numeroso ou mais poderoso 3. É óbvio que, numa sociedade regulada por princípios como esses, a união civil entre homossexuais, por exemplo, seria perfeitamente possível. O direito de um homossexual necessariamente precisa ser equiparado ao direito de um heterossexual, ainda mais quando se considera que ninguém está sendo prejudicado pela união entre as partes. O plano de vida de cada um é individual, desde que respeitados os princípios de 2 Idem, Página 73. 3 Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo, Martins Fontes, 2010.

justiça, e não cabe ao Estado fazer quaisquer distinções de pessoas em função de gênero ou orientação sexual. Rawls, assim, cria uma sociedade liberal em que qualquer regramento diferenciado para casais homoafetivos seria visto como impraticável. A exclusão de pessoas de uma instituição estatal em função de seu comportamento sexualmente diferenciado seria absolutamente incompatível com o liberalismo de Rawls. 2.2 A crítica comunitária Michael Sandel, que hoje é professor da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos mesma instituição em que Rawls lecionava durante a publicação de Uma teoria da Justiça foi um dos primeiros autores a publicar uma crítica de peso ao liberalismo rawlsiano. Em 1982, ele publicou Liberalism and the limits of justice 4 (em tradução livre, Liberalismo e os limites da Justiça), em que trata especificamente da teoria de Rawls. Sandel se filia à corrente de pensamento comumente denominada comunitarismo. Os filósofos ligados a essa tendência têm tido papel importante na contestação do liberalismo por acreditarem que os valores que fazem parte da cultura de um grupo social não podem simplesmente ser desprezados na hora de se estabelecer seu ordenamento jurídico. Para Sandel, o grande erro de Rawls está na formulação da posição original. E, mais especificamente, na crença de que é possível criar um regramento justo a partir de um procedimento como este. Segundo ele, a descrição de Rawls não é a de um acordo, propriamente. Pois se todas as partes são propositadamente destituídas de tudo aquilo que lhes é particular (convicções, posições sociais etc), está-se falando não de vários indivíduos, mas de um único. Em seu livro, ao atacar a posição original, Sandel crê ter fundamento para discutir a própria ideia de um Estado neutro frente ao bem. O raciocínio é de que John Rawls teria criado uma situação falsa (a posição original), em que pessoas que não podem existir no mundo real (aquelas por trás do véu da ignorância) chegam a um acordo (segundo ele, falso) prevendo o Estado neutro como a melhor solução para que cada um possa seguir seu plano de vida sem interferências externas. 4 Sandel, Michael. Liberalism and the limits of justice. Cambridge University Press, 1982.

O segredo da posição original e a chave para a força de sua justificação não está no que elas [as partes] fazem nela mas sim no que elas descobrem lá. O que importa não é o que elas escolhem mas sim o que elas veem, não o que elas decidem, mas o que elas descobrem. O que há por trás da posição original não é um contrato, afinal de contas, mas o caminho para a consciência de uma existência intersubjetiva. 5. Sua teoria é a de que o Estado neutro, portanto, não é algo a que se chegue racionalmente por meio de um acordo entre partes. Mas, sim, o único resultado possível de uma situação falsa criada para esse fim. Para Sandel, a falha da teoria de Rawls está em sua antropologia, que exige um homem que possa se separar de seus fins, de seus objetivos, de suas convicções. Só esse homem optaria pelo Estado neutro. Mais tarde, Sandel escreveria um texto especificamente falando sobre as consequências do pensamento liberal e da doutrina comunitarista sobre o problema da união civil homossexual. O texto, publicado em Justice What is the right thing to do? (traduzido recentemente no Brasil como Justiça O que é fazer a coisa certa?) afirma que as duas correntes têm visões significativamente diferentes sobre o tema. Aqueles que defendem o direito do casamento entre pessoas do mesmo sexo frequentemente tentam basear sua defesa na neutralidade, e evitar ter de enfrentar em julgamento sobre o sentido moral do casamento, escreve Sandel. Porém, para ele a verdadeira questão no debate sobre o casamento gay não é a liberdade de escolha, mas se uniões homossexuais são dignas de ser honradas e reconhecidas pela comunidade 6, afirma. Ou seja: Sandel não decide em definitivo pela não viabilidade da união homossexual. Mas deixa claro que, do ponto de vista dos comunitaristas, não há como separar os valores do indivíduo e de seu grupo da decisão que deve ser tomada. A definição, assim, poderia inclusive ser tomada caso a caso, dependendo da cultura de cada país ou região. No caso do Brasil, por exemplo, a postura de Sandel, ao invés de nos guiar para uma discussão com base na razão pura ou no liberalismo rawlsiano, nos faria levar em conta fatos práticos sobre a cultura nacional: o fato de haver uma maioria cristã, apenas para citar o mais óbvio dos elementos, teria de ser levado em consideração. 5 Sandel, 1982, página 132 (tradução minha). 6 Sandel, Michael. Justice What s the right thing to do? Farrar, Straus & Giroux, 2009. Páginas 256-7.

Em Sandel, o justo não pode estar sempre à frente do bom. A justiça, diz ele, não é a primeira entre as virtudes de uma sociedade, discordando frontalmente de Rawls. Descobrir o que é bom, portanto, é necessário para saber qual caminho seguir. 2.3 Republicanismo Jürgen Habermas e o seu Republicanismo também se opuseram frontalmente ao procedimento usado por John Rawls para definir os princípios de justiça de uma sociedade. No entanto, se a crítica de Habermas também considera a posição original um erro, o resultado de sua contestação é outro. Num texto de 1995, destinado especificamente a apontar possíveis falhas no raciocínio por trás de Uma teoria da Justiça, Habermas faz questão de iniciar dizendo que compartilha boa parte das crenças de Rawls. Assim como o norte-americano, ele se diz convicto de que o liberalismo e o Estado neutro são necessários para uma sociedade nem ordenada. Mas ele diz acreditar que a forma como Rawls extrai os seus princípios de justiça é um erro. Rawls não pode manter de modo consequente a decisão de que cidadãos plenamente autônomos sejam representados por partes a quem falta esse tipo de autonomia. Os cidadãos são por hipótese pessoas morais que possuem um senso de justiça e estão capacitados para ter uma concepção própria do bem, assim como têm igualmente interesse em cultivar essas disposições de modo racional 7. Para Habermas, assim como para Sandel, as pessoas por trás do véu da ignorância não podem existir. Para as partes da posição original a capacidade de decidir racionalmente não é suficiente para representar os interesses prioritários de seus clientes nem para entender os direitos (no sentido de Dworkin) como trunfos que prevalecem sobre todo fim coletivo. 8. No entanto, a crítica do Republicanismo não diz tanto respeito aos valores que devem ser honrados, como a do comunitarismo. Diz respeito, sobretudo, à forma, ao procedimento escolhido para definir como deve funcionar uma boa sociedade. Para 7 Habermas, Jürgen. Reconciliação e uso público da razão. In: Vallespín, Fernando. Una disputa de familia: el debate Rawls-Habermas. In: Debate sobre el liberalismo político. Ediciones Paidós. 8 Idem.

Habermas, a discussão que se põe entre o Republicanismo e o liberalismo de Rawls é a distinção entre uso público e uso privado da razão. É conhecida a teoria de Habermas de que as normas de uma sociedade devem ser obtidas por meio do discurso. Mais propriamente, os cidadãos devem debater em arena pública os temas do mundo da vida por tempo suficiente. Disso pode ser possível, afirma Habermas, extrair fundamentos para uma normatização social não apenas funcional, mas saudável cognitivista, Habermas crê que a teoria discursiva e o princípio de universalização são os processos que devem substituir a posição original de Rawls. Na teoria habermasiana, o processo de Rawls (que já inclui a entrega de respostas prontas, dados os juízos ponderados que as partes na posição original fariam) é substituído por um processo aberto, em que é impossível antecipar qual o resultado de cada debate. Em sua abertura, o Discurso precisa justamente que os conteúdos contingentes deem entrada nele. Todavia, esses conteúdos serão processados de sorte que os pontos de vista axiológicos particulares acabem por ser deixados de lado, na medida em que não são passíveis de consenso. 9 Para o caso da união civil gay, o ponto a ser levado em conta parece ser exatamente o do princípio da universalização. Habermas afirma que só podem ser considerados fundamentos para uma verdade deontológica os princípios capazes de obter consenso entre todas as partes que sejam atingidas por um tema. Todos os envolvidos têm de ser capazes de conviver com as consequências previsíveis de tal decisão, diz Habermas. A discussão a ser feita, nesse caso, parece ser essa: é possível atingir a universalização, o consenso, no caso da união civil gay? Quais seriam os argumentos contra ou a favor da adoção dessa instituição? Quem são as partes envolvidas no processo e como elas se comportam, discursivamente, em relação ao tema? 9 Habermas, Jürgen. Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso. In: Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989.

2.4 Libertarianismo Outra corrente que, desde o lançamento de Uma teoria da Justiça, vem se opondo frontalmente a Rawls é a dos libertários. Já em 1974, Roberto Nozick (curiosamente, outro professor de Harvard) questionava em público a teoria do liberalismo rawlsiano. Para os libertários, Rawls não leva os indivíduos a sério. O libertarianismo preocupa-se antes de mais nada com o indivíduo e com a inviolabilidade de seus direitos. Quer, por isso, um Estado que interfira o menos possível na vida do cidadão. Em outras esferas, o resultado disso é evidente: na Economia, defende, por exemplo, que a cobrança de impostos é uma violação ao direito de acumulação monetária. Pensa que a aposentadoria pode ser uma grande ideia: mas cada um deveria decidir poupar por conta própria, e não à força, por determinação estatal. No que diz respeito ao casamento, a interpretação dos libertários poderá ser a de uma terceira via ainda pouco discutida. A de que não deveria nem mesmo haver o casamento estatal entre homossexuais. Michael Sandel, em seu curso Justice, em Harvard, cita um artigo de um pensador norte-americano contemporâneo alinhado com os libertários, Michael Kinsley, que defende essa posição: "Deixe que as igrejas e outras instituições religiosas continuem a oferecer cerimônias de casamento. Deixe que lojas de departamentos e cassinos façam isso, se quiserem. Deixe que os casais celebrem a sua união de qualquer modo que eles escolham e que se considerem casados quando quiserem... E, sim, se três pessoas quiserem se casar, ou uma pessoa quiser se casar consigo mesma, e se outra pessoa quiser conduzir a cerimônia e declará-los casados, deixe eles." 10 2.5 Perfeccionismo Talvez a menos conhecida doutrina a questionar o trabalho de Rawls, o perfeccionismo tem seu principal representante em Joseph Raz, professor de Oxford, que desde 1986 vem defendendo uma teoria segundo a qual há valores morais que são mais respeitáveis do que outros. E cabe, sim, ao Estado, defendê-los. O livro básico da teoria de Raz é A Moralidade da Liberdade, de 1986. Nele, o autor tenta mostrar como a ideia de que o Estado deve promover o bem seria compatível 10 Sandel, 2008.

com a autonomia dos cidadãos e com sua liberdade. Para isso, ele relembra o princípio do dano, levantado entre outros por John Stuart Mill. O princípio do dano diz que o Estado não deve interferir de maneira coerciva na promoção do bem a não ser que isso se mostre inteiramente necessário para que a ação de um indivíduo não provoque dano a um outro indivíduo. Seria uma salvaguarda necessária para proteger as individualidades e as liberdades da ação do Estado. Raz inverte o argumento. E diz que o próprio argumento de Mill em favor da autonomia, que deve ser protegida, mostra que há um papel do Estado de proteger certas características humanas como bens. O princípio do dano, assim, em Raz, assume outra feição. Esse passa a ser o princípio que se relaciona com a prevenção de dano a qualquer um (inclusive do dano ao próprio ator) como a única base justificável para que haja interferências coercivas sobre a pessoa 11. Assim, se proibir drogas recreacionais salva vidas, o Estado pode ter motivos para proibi-las, por exemplo, mesmo isso tendo relação direta com a liberdade do indivíduo de fazer o que queira com seu corpo. Em Valor, apego e respeito, Raz também fala sobre outro tipo de danos. E vai mais longe. Cria a ideia de que o dano pode ser causado, inclusive, de maneira indireta. O dever de respeitar as pessoas exige que nós evitemos fazer o mal que o desrespeito causa de maneira razoável. Mas desde que, e até o ponto que, nós deveríamos evitar machucar as pessoas, nós temos motivos (embora não uma razão de respeito) para evitar condutas que irão causar danos por serem percebidas como desrespeitosas. 12 A teoria de Raz também pressupõe que os deveres e as responsabilidades são superiores aos direitos. Deveres e responsabilidades especiais, não direitos, são a chave para uma vida com sentido, e são inseparáveis dela. Ao negar nossos deveres, negamos o sentido dela 13, escreve Raz. Isso significa que o dever com o bem moral, somado à exigência de que respeitemos as convicções alheias, para não causar danos indiretos, poderia levar o Estado a apoiar apenas o casamento tradicional, heterossexual? A união civil entre pessoas do mesmo sexo, vista como um desrespeito por parte da população, especialmente pela população religiosa, estaria fadado a ser considerado algo a ser evitado por parte da política estatal? 11 Raz, Joseph. A moralidade da liberdade. São Paulo, Editora Campus, 2011. 12 Raz, Joseph. Valor, apego e respeito. São Paulo, Martins Fontes, 2004. 13 Idem.

3. PLANO DE TRABALHO Em breve resumo, o projeto se propõe a discutir, a partir da teoria de John Rawls e das críticas postas a ela, os pontos de vista possíveis, na filosofia política contemporânea, em relação à neutralidade do Estado e, mais especificamente, em relação à união civil de homossexuais. O primeiro passo para isso seria fazer uma revisão bibliográfica dos autores clássicos que fizeram a história do confronto entre perfeccionismo (Aristóteles, Platão) e os iniciadores da moderna teoria do Estado liberal (Maquiavel, Hobbes, Locke, Kant). Em segundo lugar, seria necessário fazer uma revisão dos textos mais importantes de John Rawls (Uma teoria da justiça, Liberalismo político) e tentar fazer as correlações necessárias entre a sociedade prescrita por esse modelo e a possibilidade de inserção, num mundo como o desenhado por ele, da instituição da união homoafetiva. Em terceiro lugar, viria a revisão dos críticos. De cada corrente, um autor seria mais explorado (o que não impede, claro, a inclusão de outros nomes da mesma corrente). Do comunitarismo, Michael Sandel. Do republicanismo, Jürgen Habermas. Do libertarianismo, Robert Nozick; do perfeccionismo, Joseph Raz. Em todos os casos, a ideia é resumir a crítica feita ao liberalismo, explicar em que bases ela se dá, e mostrar como isso afetaria a discussão em relação ao tema proposto. Em alguns casos, especialmente na teoria comunitária e em Habermas, o estudo poderá propiciar a busca de informações práticas sobre o que efetivamente pensa a comunidade brasileira (por meio de pesquisas de opinião já realizadas, por exemplo); ou sobre quais são os discursos correntes no país hoje (por meio de artigos em jornais, por exemplo. Isso poderia revelar quais caminhos o debate tomaria no país caso os processos prescritos pelos teóricos estudados fossem adotados. Com base nesse tipo de dados e na leitura das obras, o projeto pretende ajudar a iluminar a discussão sobre a união civil homoafetiva e, ao mesmo tempo, por meio disso, tratar da questão mais ampla filosófica sobre como cada corrente atual percebe a disputa em torno da convivência social e o liberalismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2006. BOBBIO, N. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 2010. CRUZ, A. Ethos Y Polis: bases Para Una Reconstruccion de la Filosofia Politica. Madri: Eunsa, 1999. DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. HABERMAS, J. Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso. In: Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002. PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000. RAWLS, J. Liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011. RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. RAZ, J. A moralidade da liberdade. São Paulo: Editora Campus, 2011. RAZ, J. Valor, respeito e apego. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2004. ROUSSEAU, J. O Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2000. SANDEL, M. Justice What s the right thing to do? Cambridge: Farrar, Straus & Giroux, 2009. SANDEL, M. Liberalism and the limits of justice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. VALLESPÍN, F. Una disputa de familia: el debate Rawls-Habermas. In: Debate sobre el liberalismo político. Buenos Aires: Ediciones Paidós, 1998.