1 A RELIGIÃO TEM RAZÕES QUE A RAZÃO DESCONHECE Leila Marrach Basto de Albuquerque # [eduardode.albuquerque@bol.com.br] Beatriz Muniz de Souza * [csopos@pucsp.br] Resumo A Seicho - no - Iê tem como um de seus recursos doutrinários estabelecer analogias entre preceitos religiosos e argumentos científicos. A reflexão sobre este aspecto revela como conteúdos modernos podem legitimar e favorecer aceitação de valores pré - modernos como familismo, hierarquia rígida e papéis femininos tradicionais. O objetivo deste artigo é analisar uma religião que se vale dos recursos da ciência moderna para transmitir sua doutrina. A ênfase nesse aspecto visa a # Universidade Estadual Paulista, Campus de Rio Claro, SP, Brasil. * Programa de Estudos Pós - Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
2 refletir sobre a relação ciência - religião na modernidade que, costumeiramente, tem sido encarada como de oposição e exclusão. A atenção a este traço nos foi despertada pela observação sistemática da Seicho - no - Iê 1 que, introduzida no Brasil com a imigração japonesa, na década de 30, vem apresentando ampla penetração na sociedade nacional desde os anos 60. Muito embora o recurso à ciência não seja exclusivo desta nova seita japonesa, nela configura-se de modo quase que paradigmático. A ciência, como organizadora da cosmovisão moderna, apresenta o seu universo separado do universo da religião e do homem comum. A estes últimos estavam reservados a crença e o conhecimento vulgar até que fossem, um dia, banhados pelos raios da racionalidade. Essa representação da prática científica tem servido, ao longo de sua história, de legitimadora de ações e intervenções emancipadoras, reafirmando sempre o impulso inicial de libertar a humanidade das "trevas". A relação da ciência com outras formas de explicação da realidade, nas suas fronteiras, afigurase a um embate entre conhecimento e ignorância. Esse traço conferiu à ciência um caráter hegemônico, resultando no fenômeno da "cientização do mundo", 1 O referencial de dados baseia-se em pesquisas realizadas em dois momentos: 1976-78 para dissertação de mestrado (MARRACH, 1978) e 1990-92 para o projeto "Ethnicity and National Integration of the Asian - Latinamericans: a study on inter - ethnic cohesion and cleavage" (Projeto desenvolvido em convênio entre Shizuoka University, Japão, de autoria e com coodernação de Takashi Maeyama e o Programa de Estudos Pós - Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP, com assessoria, em São Paulo, de Beatriz Muniz de Souza e com colaboração de Leila Marrach Basto de Albuquerque.
3 através de uma linguagem que pode ser falada por todos e cada um de uma maneira igual. (GRAEBNER e REITER, 1979). Nossa própria formação acadêmica foi, em grande parte, um treinamento para o ceticismo e a única ascese louvada era a metodológica. Bruno e Galileu são exemplos marcantes dos heróis que enfrentaram a Superstição em nome da Verdade. Enfim, a ciência, sua racionalidade e frutos (a tecnologia) constituem os elementos básicos de uma mentalidade que legitima modos de agir, sentir e pensar do homem na sociedade moderna. No caso específico da Seicho - no - Iê, seus princípios doutrinários se fundamentam no Budismo, Xintoísmo, Cristianismo, crenças populares japonesas, Ciência Cristã, bem como na Psicanálise freudiana e na Filosofia idealista alemã. Elementos dessas fontes são reinterpretados segundo a estrutura ideológica do sistema familiar japonês tradicional, configurando um corpo doutrinário sincrético. Tanigushi, fundador da Seicho - no - Iê, justifica o sincretismo de sua doutrina apresentando-a como uma "super - religião" que sintetizaria todas as demais religiões da humanidade. A mensagem da Seicho - no - Iê é divulgada através de farto material impresso como livros, revistas, jornal mensal e calendário que expõe preceitos diários da doutrina. Palestras e retiros espirituais complementam as estratégias de proselitismo, atraindo adeptos com perfil característico. Predominantemente recrutados nas camadas médias urbanas, muitos deles chegam a alcançar nível
4 de escolaridade universitário e estão ligados, sobretudo, às profissões liberais e ao comércio. Exercem atividade por conta própria e, quando não é este o caso, são empregados de escritórios ou órgãos públicos. A premissa básica dos ensinamentos de Tanigushi considera o homem filho de Deus, perfeito na sua essência, ou seja, no seu aspecto real denominado Jissô. Para Tanigushi, a argumentação fundada na ordem científica é ponte necessária para definir a natureza do Jissô: "Graças ao desenvolvimento das ciências físicas, estamos começando a entender que a verdadeira natureza da matéria não é, em absoluto, uma massa sólida que possui um volume determinado, mas sim uma 'energia possuidora de inteligência' que apresenta variadas figuras. Portanto a matéria se apresenta sob variadas formas, conforme essa 'energia que possui inteligência', a qual chamamos 'Espírito'. Por isso, ao olharmos para todas as coisas devemos ver não só a sua forma, ou a aparência, como também o seu Jissô ou sua verdadeira natureza, através dos olhos do espírito". (TANIGUSHI, 1972, p. 49). Decorrente da noção de Jissô, afirma a doutrina da Seicho - no - Iê que toda experiência humana é manifestação da mente. Através da mente o homem
5 delinearia sua vida. Doença, miséria, morte, sofrimento seriam "ilusões" do homem que desconhece a sua verdadeira essência. O recurso ao universo da ciência e tecnologia daria legitimidade a esses dois pontos doutrinários. "O aparelho de TV está sempre banhado pelas ondas provenientes das emissoras e é dotado de faculdades para revelar aos nossos olhos, a qualquer momento, quaisquer programas transmitidos pelas emissoras. Porém, se as transmissões não aparecem na tela do aparelho é porque o televisor não está sintonizado no canal correspondente. (...) Acertando-se o canal, o aparelho de TV pode captar a qualquer momento, quaisquer programas transmitidos pela emissora. A 'transmissora' corresponde a Deus, os 'programas' correspondem às inúmeras felicidades destinadas por Deus ao homem e o 'televisor' ao próprio homem". (TANIGUSHI, 1971, p.9). "Einstein, o grande sábio do mundo da ciência, descobriu a lei que denominou Teoria da Relatividade. (...) O fundamental nessa teoria é o seguinte: as coisas que podemos conhecer através dos nossos cinco sentidos se mostram como tais, de modo não absoluto, em virtude da relação que mantêm com a nossa capacidade sensitiva e não estamos conhecendo o aspecto verdadeiro (absoluto) do ser (...) Disso se conclui que
6 a mente que vê a coisa por intermédio dos cinco sentidos é uma 'mente ilusora' (sic) e não a mente que vê o Jissô do ser (...). O Jissô do ser está numa altura que não pode ser vista pela simples sensibilidade". (TANIGUSHI, 1968, p. 25-6). Explicação doutrinária também afirma que a mente humana é composta de 5% de consciente e 95% de inconsciente, sendo os males resultado de mágoas ou pensamentos negativos acumulados no inconsciente e que se projetam na existência do indivíduo independentemente de sua vontade ou projetos conscientes. Através do incentivo ao pensamento dirigido para as coisas positivas essas mágoas desapareceriam, permitindo que a verdadeira realidade se manifeste. Afirma Tanigushi: "É preciso desenhar um bom ideal (...). É bom enviar o 'emissário mental' dotando-o com esse ideal e com fé na concretização. Assim como se controla de longe os foguetes através de microondas o 'emissário mental' corrige o rumo das coisas através das ondas espirituais da convicção. Por isso devemos sempre emitir a convicção de que o meu ideal está se concretizando pela 'órbita certa' a fim de que a 'espaçonave do ideal' possa entrar em órbita com precisão e retorne no tempo desejado (...)". (TANIGUSHI, 1976, p. 143).
7 Percebe-se, na ênfase conferida pela Seicho -no - Iê à autoridade da argumentação científica, uma versão idealizada da ciência como prática voltada para o Bem e para a Verdade. Os seus contornos já foram bem delineados por Kuhn (1979), no estereótipo do "cientista como o investigador sem preconceitos em busca da verdade (...) que coleciona e examina os fatos crus, e que é fiel a tais fatos e só a eles" (p.53). Esta representação da ciência em contextos sociais específicos da sociedade mais ampla asseguraria a extensão de suas virtudes para fora da comunidade científica, favorecendo aceitação e conferindo plausibilidade mesmo a conteúdos distantes da sua esfera: políticos e religiosos. No caso da Seicho - no - Iê, esta visão da ciência moderna comparece para legitimar valores pré - modernos como familismo, hierarquia rígida e papéis femininos tradicionais. Ao contrário do Cristianismo, cujas relações históricas com a ciência foram e são problemáticas (a terra como "centro" do universo, o criacionismo, o controle da natalidade, etc.), a Seicho - no - Iê mostra um modo de acomodação da religião, na modernidade, com feições peculiares. Aliás, nos seus primórdios, a ciência foi apresentada como ideologia emancipadora e, por vezes, os cientistas consideraram suas idéias "neutras". Aqui
8 temos um exemplo de como recortes podem ser arranjados para reafirmar e legitimar conteúdos de caráter tradicional. Referências Bibliográficas GRAEBNER, I., REITER, V. Guardians at the frontiers of science. In NOWOTNY, H., ROSE, H. (eds.). Counter - movements in the Sciences. Dordrecht: D. Reidel Publishing, 1979. KUHN, T. A função do dogma na investigação científica. In DEUS, J. D. de (org.). A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. MARRACH, L. Seicho - no - Iê: um estudo de sua penetração entre os brasileiros. São Paulo: PUC, 1979, dissertação de mestrado. TANIGUSHI, M. A teoria do Deus - Homem da Seicho - no - Iê. Acendedor. São Paulo, v. 6, n.º 11, 1968. TANIGUSHI, M. A fonte da prosperidade. Acendedor. São Paulo, v. 8, n.º34, 1971. TANIGUSHI, M. Fitemos o Jissô das coisas. Acendedor. São Paulo, v. 8, n.º42,1972.
9 TANIGUSHI, M. A ciência do bem viver. São Paulo: Igreja Seicho - no - Iê do Brasil, 1976.