EXISTE CRÉDITO TRIBUTÁRIO SEM LANÇAMENTO? Marcelo Vasconcelos Castro O Lançamento Tributário é um instituto previsto no art. 142 do CTN. Doutrina e Jurisprudência têm debatido em demasia os contornos do tema. Existe uma série de institutos jurídico-tributários ligados ao lançamento (tributo, obrigação e crédito), cuja elucidação melhor esclarece sua existência. O suporte teórico do fenômeno jurídico lançamento tributário perpassa as concepções filosóficas da tridimensionalidade do direito e da lógica formal. O lançamento tributário foi definido pelo Professor Eurico Marcos Diniz de Santi como ato-norma administrativo, em uma releitura, pode-se dizê-lo nomogênese individual e líquida administrativa. O RE 617.867/SP julgado pelo STJ versa sobre a possibilidade de crédito tributário sem lançamento. Doutrinariamente, Hugo de Brito Machado abarca a tese de impossibilidade de crédito sem lançamento. O contribuinte informa ao Fisco através da DCTF - Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais, prevista na Instrução Normativa RFB nº 1.110, de 24 de dezembro de 2010. Deste modo, iremos investigar a possibilidade de existência de crédito tributário sem lançamento. A análise da existência de crédito tributário sem lançamento necessita de apoio conceitual em institutos jurídicos aos quais se relaciona. A definição de tributo, obrigação tributária, crédito tributário e lançamento estão amplamente jungidos. Definição, natureza jurídica, modalidades do lançamento tributário devem ser delineados para melhor suporte argumentativo da existência do crédito tributário. A leitura tridimensional do fenômeno jurídico traçado trará uma reflexão conceitual sobre estrutura da norma e sua incidência sobre o fato jurídico. A lógica formal estabelece o equacionamento do conceito de lançamento frente ao aspecto semântico. 1
Traçar as distintas modalidades de lançamento tributário. Após destacar o lançamento por homologação e, ao fim, discorrer sobre a possiblidade de crédito sem lançamento. O Tributo foi conceituado pelo legislador no art. 3º do CTN: "Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada". A definição é de suma importância para a elucidação da atividade de lançamento. O Tributo é uma prestação obrigatória do contribuinte. O cumprimento da prestação pode ser feito mediante dinheiro ou valor exprimível em moeda. Moeda é um medidor de valor, um padrão de pagamento. O Crédito a ser compensado não é pecúnia ou moeda, mas se exprime em Reais, bem como os títulos do tesouro utilizável como meio de pagamento. Ou seja, a prestação compulsória pode ser paga em um equivalente não redundante. É a partir da parte final do dispositivo suso citado, "cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada", que o lançamento começa a ser distinguido. A cobrança tributária tem que ser feita pela administração. Sem administração não há cobrança lícita de tributos. A administração cobra após o lançamento, momento em que se tem certeza e liquidez da dívida. O Direito Tributário para muitos é obrigacional. A maioria dos tratadistas temna nos moldes civilistas. A inspiração Tedesca (na releitura romana) definiu obrigação tributária como vínculo jurídico ou liame entre sujeito ativo e sujeito passivo. Defenderam a dualidade obrigacional, com sua divisão em débito (shuld) e responsabilidade (haftung). O débito tem como objeto uma prestação de dar, fazer ou não fazer. A responsabilidade é coativa. Somente após o inadimplemento exsurge a responsabilidade (haftung). Ao comentar o CTN/139, a precisa lição do Professor Américo Masset Lacombe (2013), em Comentários ao Código Tributário Nacional, coordenado por Ives Gandra da Silva Martins: 2
Surgindo o débito, surge inexoravelmente o crédito tributário. Se da ocorrência do fato imponível (fato gerador) resulta o débito do lado passivo, resultará imediatamente o crédito ao lado ativo. É esse exatamente o sentido deste artigo. O que o Código Tributário Nacional distingue é a relação de débito (debitum, shuld), que denomina obrigação tributária principal, da relação de responsabilidade (obligatio, haftung), que denomina crédito tributário (LACOMBE, 2013, p. 296). O porquê está na gênese da "relação jurídica tributária efectual". A prestação compulsória (dar), a qual vincula o sujeito passivo, no mesmo instante estabelece o crédito. A ausência de técnica legislativa tentou colocar o crédito como consequência de inadimplemento, o qual apenas o reveste de exigibilidade - para Sacha Calmon Navarro Coelho. O crédito tributário foi conceituado por Alexandre Barros Castro (2002): "crédito tributário pode ser definido como sendo o direito subjetivo público que detém o Estado de exigir do sujeito passivo da obrigação tributária o pagamento do tributo devido, na forma prescrita em lei". Este autor classifica a obrigação acessória como "dever instrumental". O art. 142 do CTN prescreve o lançamento: Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível. Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (BRASIL, Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966). Em Filosofia do Direito, Miguel Reale inovou com a Teoria Tridimensional do Direito. A relação entre fato, valor e norma na construção de um modelo jurídico por opção legislativa de cada Ente Político (União, Estados e Municípios). Ensinamentos sobre a nomogênese da norma tributária por Reale (2002): 3
Cada modelo jurídico, em suma, considerado de per si, corresponde a um momento de integração de certos fatos segundo valores determinados, representando uma solução temporária (momentânea ou duradoura) de uma tensão dialética entre fatos e valores, solução essa estatuída e objetivada pela interferência decisória do Poder em dado momento da experiência social (REALE, 2002, p. 531). A regra-matriz inserida na norma tributária se trata de um modelo jurídico. As espécies tributárias são modelos jurídicos com estrutura própria. Impostos, taxas, contribuição de melhoria e demais contribuições, bem como os empréstimos compulsórios são integradas pelo Fisco na confecção do ato-norma intranormativo do lançamento. O evento econômico (fato-fato gerador) é valorizado (fins arrecadatórios) para a nomogênese individual e líquida decorrente do poder de decisão do Poder Público: lançamento - ato-norma administrativo. O lançamento sempre é resultado de decisão administrativa, com concordância ou não com as declarações do contribuinte. O lançamento dá certeza e liquida o crédito. O ato administrativo há de ser plenamente vinculado. Deve conformar-se totalmente à ordem jurídica - ao ato-norma abstrato. O Ente Tributante utiliza do ato administrativo (Lançamento) para integrar o fato jurídico à norma tributária, esta subsunção é a gênese do ato-norma administrativo. A subsunção do fato imponível (fato gerador) à hipótese de incidência tributária (norma). Para Enrico Santi (2010): Lançamento como o ato-norma administrativo que apresenta estrutura hipotéticocondicional, associando à ocorrência de fato jurídico tributário (hipótese) uma relação jurídica intranormativa (consequência), que tem por termos o sujeito ativo e o sujeito passivo, e por objeto a obrigação deste em prestar a conduta de pagar quantia determinada pelo produto matemático da base de cálculo pela alíquota (SANTI, 2010, p. 92). O emprego da lógica formal no estudo do fenômeno da norma tributária recebeu o elastério do Professor Enrico Santi. A estrutura lógica do ato-norma foi assim descrito: 4
D[h? R (Sa, Sp)] A lógica formal ou simbólica cuida da estrutura do raciocínio. A lógica formal relaciona os conceitos como instrumental probante das declarações. A expressão suso foi assim deslindada: Identificamos na estrutura do ato administrativo (supra) os sincategoremas "D" e "?", constantes lógicas inerentes à estrutura normativa do ato-norma e os categoremas, variáveis que preenchidas pelos conteúdos do direito positivo constituem seus elementos: (a) descrição do motivo do ato "h" (motivação), (b) sujeito ativo "Sa", (c) sujeito passivo "Sp" e (d) a variável de functor "R" tripartite nos modos proibido, permitido e obrigatório que modaliza a (e) conduta-objeto da relação jurídica normativa (SANTI, 2010, p. 97). A expressão acima esclarece a descrição normativa do artigo que prescreve o lançamento. Trata da hipótese de ocorrência de um fato gerador e a vinculação do sujeito ativo e passivo, geralmente, com a explicitação do functor R em obrigatório (pagamento), permitido (imunidade/isenção), proibido (sanção por ilícito). Lançamento tributário é o ato de liquidação da matéria tributável, prevista na norma tributária abstrata, incorrida pelo contribuinte a partir de um evento econômico declarado pelo sujeito passivo ou apurado pelo sujeito ativo, do qual decorre uma obrigação de recolhimento, enfim, a nomogênese tributária individualizada e líquida. O deslinde da natureza jurídica do lançamento recebeu comento doutrinário. O lançamento fiscal no magistério de Flávia de Almeida Viveiros de Castro (2011): Enquanto alguns o definem como ato administrativo (Ataliba, Baleeiro, Falcão, Carvalho), outros o qualificam como procedimento administrativo (Lacombe, Rosa Jr.), e há, ainda, os que afirmam que o termo tem um sentido múltiplo, como José Souto Mario Borges (CASTRO, 2011, p. 26). Há ainda aqueles que o enquadram como ato complexo, iniciado pelo Contribuinte e referendado pelo agente público. Como desfecho da atividade tributante, se trata de ato simples. O Professor Eurico Santi o estabelece como ato 5
administrativo conclusivo. Deste ato decorre a exigibilidade do crédito tributário, na liça de Sacha Calmon Navarro Coelho. É no plano da eficácia do Lançamento Fiscal que surgem divergências de monta. Uma corrente determina sua eficácia como constitutiva. O art. 142 do CTN é claro ao dizer que o lançamento constitui o crédito tributário. Outra corrente traça-lhe o perfil de ato declaratório, com fincas no art. 144 do CTN, de maneira que o ato apenas reconheceria o direito de crédito do Fisco. A terceira corrente, dizem sua eficácia mista, declaratória da obrigação e constitutiva do crédito. O crédito tributário possui o seguinte iter: surge com a ocorrência do fato gerador no mundo fenomênico. É lançado, e através deste ato administrativo se tem a certeza e liquidez do crédito, doravante exigível. É inscrito em dívida ativa, daqui em diante é exequível com o aparelhamento da CDA - Certidão da Dívida Ativa na executiva fiscal. As modalidades de lançamento são divididas em três na doutrina clássica, segundo o critério de participação do sujeito passivo: a) por declaração (CTN/147), no qual o contribuinte declara as informações necessárias para que o agente fiscal lance; b) de ofício (CTN/149), imposto legalmente, a Administração já possui os elementos necessários para a confecção do ato; c) por homologação (CTN/150), o contribuinte apura o tributo e recolhe sem intervenção do fisco. Além destas três, há na jurisprudência e doutrina o lançamento substitutivo (revisão do Fisco: erro ou fraude) e o lançamento tácito - em caso de depósito do montante. O STJ consolidou o entendimento que o lançamento tácito está para o lançamento por homologação, assim como o lançamento substitutivo estaria para o lançamento por ofício. Deste modo, não seriam novas espécies de lançamento. O problema está em discernir a possibilidade de existência de crédito tributário sem lançamento. O REsp 617.867/SP recebeu a relatoria do Min. Luiz Fux, quando ainda compunha o rol de julgadores do STJ. O Min. Fux entendeu que há crédito tributário sem lançamento. 6
Em apertada síntese, o CTN/142 permitiria ao particular exercer atividade tendente à satisfação do crédito tributário. No acórdão, julgou-se prescindível a participação da atividade administrativa. Denota-se a filiação à corrente doutrinária que qualifica o ato como declaratório do crédito tributário. Assim, o crédito tributário nasceria juntamente com a obrigação tributária. O Doutrinador Hugo de Brito Machado tem posicionamento pela impossibilidade de crédito tributário sem lançamento. O lançamento seria constitutivo do crédito tributário, bem como seria atividade vinculada exclusiva de agente público. Ao particular é defesa a prática de atos administrativos. O Professor Enrico Santi (2010), por seu turno: "concluiu-se, destarte, que relativamente à relação jurídica tributária efectual, o ato-norma de lançamento tributário apresenta, nesta acepção técnica, efeito declaratório". No particular, ao lançamento por homologação, Enrico Santi (2010): O que a autoridade administrativa homologa é o "crédito instrumental formalizado": homologação da relação jurídica intranormativa, produto do cumprimento dos deveres instrumentais que disciplinam o modo de produção dessa norma individual e concreta celebrada pelo particular. [...] O "ato-norma de homologação" supõe o "ato-norma administrativo tributário". O "ato norma administrativo tributário". O "ato-norma administrativo tributário" é condição necessária do "ao-norma de homologação". É o gênero ato-norma administrativo que formaliza o crédito tributário, seja ele lançado, seja instrumental. Sem este, sem crédito a homologar, aquele fica sem sentido (SANTI, 2010, p. 123). Neste passo, para o professor autor, o lançamento é ato que formaliza o crédito tributário. Salienta que há credito tributário instrumental e crédito tributário lançado. O crédito tributário instrumental seria efetivado pelo particular: "[...] a tese proposta se alinha àquela dos tributos sem lançamento, defendida por Paulo de Barros Carvalho" (SANTI, 2010, p. 123). Deve haver consonância entre o crédito instrumental e o crédito tributário lançado. É por meio do dever jurídico instrumental (obrigação acessória), que o 7
particular informa ao Ente Tributante o crédito instrumental. Deste modo, haveria crédito sem lançamento constitutivo. O preenchimento de um formulário público é ato privado ou ato público. A Escritura lavrada por Tabelião tem forma pública, no entanto nela se insere declarações privadas (Compra e Venda de Imóvel). Um ato público. A DCTF nada mais é do que um formulário eletrônico público, no qual o particular insere declarações. Neste sentido, o ato é público, não formalizado por agente público, ao passo que antes pela comodidade tecnológica, o software o formaliza. Para os adeptos da natureza declaratória do lançamento, haverá crédito sem lançamento. Para os filiados à corrente doutrinária que dita o lançamento como ato constitutivo do crédito tributário, tal situação seria impossível. Para o CTN em vigor, é impossível crédito sem lançamento. Impossível é haver débito sem crédito. Enrico Santi coloca o crédito tributário sem lançamento como realidade. É necessária uma alteração no CTN para adequá-lo à doutrina e a realidade. REFERÊNCIAS BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 12. ed. Forense, 1978. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 617.867/SP. Relator: Ministro Luiz Fux. 09 de novembro de 2004. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 03 dez. 2013. CASTRO, Alexandre Barros. Teoria do direito processual tributário. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. CASTRO, Flávia de Almeida Viveiros de. Gestão e planejamento de tributos. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2011. FERREIRA, Antonio Airton. A formalização do crédito tributário pelo contribuinte. 8
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