A FOLIA VEM AÍ [1] Carnaval é a festa do povo. Onde não há povo não pode haver carnaval [3]



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Transcrição:

A FOLIA VEM AÍ [1] Maitê dos Santos RANGEL[2] Graduanda em Licenciatura Plena em História Departamento de Ciências Humanas Campus V. Bolsista da FAPESB/ UNEB maite_rangel@yahoo.com.br RESUMO: Este artigo procura evidenciar as práticas festivas que envolvem a micareta na cidade de Santo Antonio de Jesus nas décadas de 30 e 40 do século XX. A flexibilidade do espaço temporal permite captar as relações estabelecidas entre a comunidade, a festividade pagã e os elementos modernizadores que pouco a pouco penetram no cotidiano santantoniense, reconfigurando as práticas de sociabilidade e desarticulando formas específicas de viver a cultura. Em suma, a festa é percebida a partir de significados e valores construídos na marcha do tempo. PALAVRAS CHAVE: Cultura, popular, festa, linguagem. Carnaval é a festa do povo. Onde não há povo não pode haver carnaval [3] Povo, esta categoria abstrata e imprecisa, posta como sujeito coletivo é chamada às ruas para reavivar o carnaval. A aproximação dos dias de Momo jamais deixou de trazer ao povo a alacridade que exalta e rejuvenesce... porquanto a alegria é um dos agentes mais firmes e efficientes da vida. [4] Mas quem é este povo aclamado às ruas como peça fundamental nos festejos pagãos? Qual a função da festa no cotidiano dos agentes envolvidos? Tomando como parâmetro as informações colhidas em jornais da época, a micareta um dos festejos pagãos movimentou a vida das senhorinhas da elite da cidade. Os seus nomes estão estampados em diversos números, sempre reverenciados pela organização e pompa que conferem ao festejo, o que nos encaminha a perceber a micareta como uma produção vivida no seio da elite. Mas quem é o povo exaltado em diversos números do jornal como peça fundamental nos festejos pagãos? A elite pode ser este povo? Estaria excluso o estrato popular? Não há como considerar ou excluir totalmente as possibilidades. À luz da História Social expomos os indícios captados nos meios populares santantonienses. Depreende-se que no domínio da experiência Conflitos e Violência no campo brasileiro. 1

humana, entre o trabalho cotidiano e os ritos festivos, que encontramos a complexa teia de símbolos e representações, substrato para a articulação nas ações individuais e coletivas de formas específicas e criativamente diferenciadas de viver a cultura. Devassando estes caminhos, na lida diária, na solidariedade, na prosa dos intervalos de trabalho, nos ritos festivos, na voz e no silêncio, em suma, no mundo criativo das significações sociais cuja existência está ligada à experiência compartilhada por um coletivo impessoal e anônimo o povo buscamos desvendar os significados, acima de tudo humanos, das tradições na cultura. Neste universo em que heterogeneidade impera o intuito não é desenvolver padrões e aplicá-los à ação nos meios sociais; tento aqui apreender as formas de sociabilidade que conduz o individuo no campo de luta a cultura. A pesquisa inclusa no programa de Iniciação Cientifica da FAPESB, adentra num domínio de limites fluidos: o palco de atuação luta e resistência do homem, da mulher. O recorte a direciona ao Recôncavo Sul da Bahia e em específico à cidade de Santo Antonio de Jesus, revelando a sociedade multifacetada da primeira metade do século XX na sua intima relação com os folguedos pagãos e os elementos modernizadores. Nesta perspectiva, pretendo pensar a cultura enquanto uma empreitada que suscita problemáticas insolúveis haja vista os inúmeros conceitos e definições oferecidos ao termo, e as controvérsias quanto a melhor aplicação, direcionadas a tantos caminhos que é impossível associá-los numa única definição. Quando a este, adicionamos o termo popular as dificuldades são ampliadas. Além da discussão na órbita da temática central cultura popular, a apropriação do último termo arrasta consigo alguns questionamentos que necessitam de esclarecimentos prévios mesmo na ausência de um consenso quanto à argumentação. No palco cotidiano se entrevem as dificuldades que circundam conceitos imprescindíveis para a dialetização da cultura popular. Em primeira instância surge o elemento povo, referenciado aqui como ator social que conduz o ritual festivo. O sujeito coletivo povo, porém carrega uma definição fugidia. A questão fundamental é como reduzir a complexidade que envolve o termo a uma única definição, se admitimos uma sociedade não homogênea e, no Conflitos e Violência no campo brasileiro. 2

interior desta, grupos sociais repletos de particularidades, diversidades e conflitos. O campo em que se inserem as reflexões oferece ainda outras questões a serem pontuadas neste trabalho. Em se tratando de cultura popular temos a nossa frente um duplo problema. Tomando como fundamento a conceituação oferecida por Hall consideramos aqui o popular em sua oposição ao bloco de poder e sua respectiva produção. As bases do popular são estruturadas a partir da oposição entre o que pertence ao domínio da elite e o que é periférico. Nesse ponto é imprescindível ressaltar que os conteúdos de cada categoria elite e popular modificam-se com o tempo, num processo de reelaboração e apropriação ininterrupto [5]. Partindo desta relação que estrutura o popular em oposição à elite, delimitamos o sujeito povo em oposto ao bloco de poder, sem, contudo negar as forças interativas entre ambos. Não há, portanto, uma separação dicotomizada; neste campo os limites são fluidos e as formas de luta interpenetram-se com as possibilidades de mudança. A marcha do tempo, a marcha da mutabilidade delimita a sociedade. Nesse contexto o princípio estruturador do domínio, seja ele popular ou elitista, não são os conteúdos, mas as forças e relações estabelecidas entre as partes. Advém deste conflito a distinção essencial entre a cultura representativa de uma elite de poder político-econômico e a cultura popular. No âmago, estão as relações que estabelecem um marco mesmo que tênue no interior da cultura, entre o que é preferencial e residual. Desta forma o essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a ' cultura popular ' em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante[...] [6], já que as formas, categorias e atividades culturais são em essência mutáveis. Assim, não há um padrão que defina os indivíduos como uma massa homogênea inclusa no sujeito coletivo povo, como não há conteúdo determinado e imutável que preencha a cultura popular ou o seu oposto. Cultura popular é o campo que protagoniza as transformações. Parafraseando Hall, a cultura é aqui concebida não como uma forma de vida, mas como forma de luta. Desta forma, é preciso atentar para a instituição do social de um ângulo tridimensional; confrontar as possibilidades do individuo particular que, dos Conflitos e Violência no campo brasileiro. 3

costumes no seio da comunidade, do corpo coletivo, retira o substrato que legitima e oferece os padrões para a sua ação no meio social. O homem está em relação constante com o seu meio. Nesse sentido, ritos, festividades, trabalho, rezas e cantorias encontram-se imbricadas na esfera de instituição social, na qual o homem efetiva a criação do seu mundo, enredando a si na sua própria construção. [7] Nos relatos do jornal O Palladio, periódico produzido no município de Santo Antonio de Jesus, durante a primeira metade do século XX, é possível perceber a dinâmica das festas que tomavam as ruas no mês de abril. Encenavam o folguedo alguns grupos chamados de Cordões ou Pranchas, como enuncia o trecho abaixo: Há varias combinações que se organizam para o bello folguedo. Cordões talvez aparesam seis. Pranchas três, ao certo. Afóra os grupos miúdos, que, quando decentes e espirituosos, concorrem muito para a alegria das ruas. [8] Surpreende-se nessa passagem a referência a grupos miúdos. Quem seriam estes miúdos? Seriam camadas populares da sociedade santantoniense? Certamente a periferia não estava exclusa do belo folguedo que iluminava as ruas com a alacridade que exalta e rejuvenesce. Mesmo que não estivessem doando movimento às vestimentas dos Cordões, há a relação, que de modo algum é nula, entre a apresentação e o [...] público, que se diverte directamente com as ditas festas [9]. Atores, coadjuvantes e expectadores estabelecem interconexões com o texto social rito e a festa. Mas, há um sentido neste elo? Com todos os requintes lingüísticos próprios, eis a importância atribuída à festa na década de trinta: Sem ela, teria um grande desenvolvimento a escola sombria dos misantropos, dos scepticos, dos descrentes, e em vez da sociedade vivaz, confortadora e vibrátil dos dias que passam, teríamos o infortúnio de ver um conjuncto indesejável de tíbios, somnolentos, taciturnos, povoando terras fadadas para crear verdejante a árvore do bello e dos prazeres.[10] De forma prática, a música, as máscaras, o batuque e as vestimentas que compõem um festejo, são impressos na vida, no cotidiano do trabalho ao passo que retira destes o substrato legitimador das ações agindo como lenitivo às durezas da vida. A função cotidiana funda-se numa espécie de válvula de escape, e tanto a festa em si como a reminiscência desta Conflitos e Violência no campo brasileiro. 4

conjugada ao saudosismo dribla as adversidades do dia a dia e arremessam ao humano, o mundo carnavalesco, a alegria, o riso, a dança e a inversão dos dias de festa enunciada como a alegria do mundo [11]. O trecho a seguir põe em relevo uma questão importante para a construção analítica a que nos propomos: [...] quando estas diversões passam ao domínio público levando alegria ao povo, tomam o caráter de divertimento geral, todos se lavam e retemperam nesse mar de brincadeira, de alegria, que passa a ser de gozo comum.. [12] O domínio público a rua é o palco que comporta a ação em comunidade de um povo diverso, heterogêneo. O povo num sentido amplo é convidado às ruas para o gozo num tempo em que já é crescente o confinamento das festas em ambientes privados. Para além deste processo, é neste retemperar-se efetuado simbolicamente nas ruas, que a festa popular, seja qual for a sua dinâmica, se imprime no cotidiano de forma a amainar as agruras. A sociedade se inscreve de diversas formas em seus autores/ leitores, participantes dos ritos. A ação de interpretar, reelaborar encontra-se em uma dinâmica constante com as expectativas e aptidões dos indivíduos, que, a partir desta relação se apropriam de forma diferenciada dos ritos festivos. O contexto social de ação em comunidade, formador de um texto impregnado pela vivência dos agentes que o constroem, é a mediação para o conhecimento do social, singular e coletivo. Num jogo de interpretações, o que está escrito ou é pronunciado encontra-se permeado pela subjetividade do sujeito. Nos limites de sua mente imaginativa, o historiador dialoga subjetivamente com o objeto, lançando sobre este o seu olhar, e mesmo a sua vida, captando fragmentos esparsos, que jamais poderão lhe oferecer uma visão total dos fatos. A experiência imprime não só na construção dos ritos, mas na narrativa uma feição própria ligada ao contexto no qual estes se desenvolvem. Dessa forma, o narrado cotidianamente terá as marcas de seu narrador conjugadas no domínio da reminiscência pela narrativa que mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. [13] Atores e expectadores da micareta têm papel ativo na construção dos significados individuais. Nesse sentido, o popular enquanto criação cotidiana Conflitos e Violência no campo brasileiro. 5

expande sua autoria ao domínio público e impessoal do povo heterogêneo e repleto de singularidades vividas. Nenhuma informação é aqui transplantada como um objeto inalterado; os ritos passam pelo filtro da interpretação/ reelaboração/ apropriação tendo como pressuposto a identificação entre sujeito e prática festiva. A vivência do individuo identificada nos elementos rituais confere à apropriação significado e valor, e só haverá valor se houver esta aproximação e reconhecimento da própria vida do individuo no rito construído em comunidade. Isto se dá no campo conflituoso no qual impera uma tensão constante intermediando a capitulação e a resistência. As manifestações festivas encontram-se impregnadas de significados e valores ligados à experiência de vida entrelaçada no cotidiano do trabalho. Recriações e reinterpretações que instigam formas de sociabilidade, modos de organização, expressão e interesses, que por vezes se contrapõe aos interesses e padrões difusos pelo poder hegemônico. No estudo que envolve a dinâmica histórica da festa micareta evidencia-se o rumo tomado pelos festejos populares nas últimas décadas do século XX, no Recôncavo sul da Bahia. A transformação cultural é um eufemismo para o processo pelo qual algumas formas e práticas culturais são expulsas do centro da vida popular e ativamente marginalizadas. Em vez de simplesmente caírem em desuso através da Longa Marcha para a modernização, as coisas foram ativamente descartadas, para que outras pudessem tomar seus lugares. [14] Converge com o pensamento de Hall, a experiência da rápida desarticulação dos estilos específicos de vida no recôncavo baiano. Muitos ritos inclusos no rol da vivência popular foram descartados frente ao avanço do que a modernização direciona como preferencial. Este é o caso do Terno de Reis que deixou de acontecer há alguns anos na cidade de Santo Antonio de Jesus; o mesmo sucedeu à Chegança na cidade de Nazaré e a outros ritos que foram expulsos das ruas e sobrevivem apenas na memória que se perde dia após dia. Manifestações festivas que não foram relegadas à memória, sofreram interferências de tal ordem que pouco a pouco passam do domínio popular ao espetáculo, rompendo com as raízes profundas de sua significação. Nesta transição nota-se a ruptura do elo que possibilita a identificação entre a festa e o povo. Desta forma, desalinha-se o trabalho em comunidade, a ajuda de Conflitos e Violência no campo brasileiro. 6

todos na confecção de roupas e acessórios. Desaparece ou perde o vigor a ligação comunitária, os laços interligando o corpo social à produção de uma expressão na qual transluz a própria organização da sociedade. A micareta que enfeitava as ruas de Santo Antonio de Jesus nas décadas de 30/40, não mais existe. O panorama composto pelos fragmentos do jornal e pelos depoimentos permite entrever as diferentes feições que a festa assumiu até sua desarticulação na década de 90. Nas palavras do Sr. Augusto Soares a festa tomava a rua... saia todo mundo de fantasia, uma roupa especial... e máscara atrás do tambo. Tambo normal, feito em casa. Tinha muitos grupos... se organizava e saia depois da semana santa.[15] Em contraponto na vivência do Sr. Claudemiro figura uma outra feição: Naquele tempo a festa era diferente, não tinha a ladroagem que tem hoje... não tinha confusão. Chegava o trio e a gente brincava, mas isso a dez, doze anos atrás.... [16] Das máscaras ao trio elétrico, a festa, no campo conflituoso da cultura, debateu com a modernização e fora relegada ao tempo saudoso forjado na reminiscência. Mas, insistir no retorno às festas passadas seria o caminho frente a crescente desarticulação do que um dia pertenceu à cultura popular? Assistimos ao avanço avassalador da chamada modernidade e seus elementos representativos; a sua penetração na comunidade popular reconfigurando as práticas cotidianas A modernidade caminha de mãos dadas com um tempo que não comporta laços íntimos de solidariedade. Em nosso século, os ponteiros do relógio marcam o tempo em que não há tempo. Na história, nos acontecimentos encadeados na teia da vida, cada passo impõe uma modificação; cada gesto poderá imprimir um novo significado. Assim, os ritos festivos enfrentam as transformações construídas no tempo. Muitos, em algum ponto da história, foram descartados da prática, banidos das ruas e o que fora expressão de uma comunidade, sobrevive ao menos na memória de pessoas que nem sempre encontram ouvidos para fazer ecoar suas histórias. Das manifestações que ao longo do tempo perderam o palco de sua atuação as ruas restam na memória de quem as viveu intensamente ou presenciou, as expressões e significados, filtrados pelo olhar da experiência; narrados e revividos no plano imaterial da reminiscência. Conflitos e Violência no campo brasileiro. 7

As experiências de vida retalhadas pela memória de um tempo nostálgico, permite entrever um saudosismo marcante condensado na máxima no meu tempo não era assim. Mas tradição tem pouco a ver com persistência das velhas formas; relaciona-se às formas de associação e articulação dos elementos no tempo.[17] Enquanto tudo é movimento, reproduz-se o que é vivo e significativo na dinâmica da vida em sociedade. Neste processo não há formas imutáveis. Tradição na cultura popular é uma forma de agir; é ação que conduz os elementos do povo à dialetização com as formas preferenciais dispostas no campo de luta. A empreitada é um tanto delicada à medida que é imprescindível um envolvimento profundo com uma temática conceitualmente fugidia, a fim de conferir verossimilhança e coerência à pesquisa. Mas, para além das dificuldades encontradas, a lida histórica é apaixonante. Deitar o olhar nas minúcias da sociedade e adentrar no universo de criação social, permite vislumbrar uma complexa teia de símbolos e representações d'onde emerge o homem enquanto ser social. Tomar esta engrenagem como objeto de estudo constitui-se em um desafio, à medida que se torna imprescindível atentar para as forças dialéticas interpostas no campo de luta que é a cultura. Mas os obstáculos tornam o objeto ainda mais desejado, apaixonante. Nas linhas antecedentes estão expressas as primeiras considerações de uma pesquisa em andamento. O trajeto a percorrer tem como fim aprofundar as leituras da sociedade, do homem e dos festejos populares no Recôncavo sul da Bahia na sua intima relação com os elementos modernizadores que penetraram no cotidiano modificando as práticas de sociabilidade e mesmo desarticulando formas específicas de viver. NOTAS: [1] - Artigo elaborado como parte integrante do projeto de pesquisa A estética da Criação Popular: em Santo Antonio de Jesus: um mergulho na construção dos ritos festivos. [2] -Graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas Campus V. Bolsista da FAPESB Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia. [3] - O Palladio. 14 de Fevereiro de 1941. Ano XL; N. 1.991. Conflitos e Violência no campo brasileiro. 8

[4] - O Palladio. 21 de fevereiro de 1936. Ano XXXV; N. 1.756. [5] - Ver: HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do popular. In: Identidades e Mediações Culturais. Organização Lev Sovik; Traduçãode Addelaine La Guardia Resende...[ et al ]. Belo Horizonte: Editora UFMG;Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. [6] - Idem nota anterior. p. 257. [7] - Ver CASTORIADIS, Cornelius. O Imaginário: a criação o domínio socialhistorico. In: Encruzilhadas do Labirinto II: Domínios do Homem. Traduzido por José Oscar de Almeida Marques. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1987. [8] - O palladio. 20 de Março de 1941. Ano XL; num. 1.995. [9] - O Palladio. 20 de Março de 1941. Ano XL; num. 1.995. [10] - O Palladio. 21 de fevereiro de 1936. Ano XXXV; num. 1.756. [11] - Rafael Pereira Galvão, pedreiro, 76 anos, residente na cidade de Nazaré. Entrevista realizada em 16/ 01/ 2006. [12] - O Palladio. 20 de Março de 1941. Ano XL; num. 1.995. [13] - BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história Cultural. Traduzido por Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo; Brasiliense, 1994. [14] - HALL, Stuart. 2003. p. 248. [15] - Augusto Soares da Silva, feirante aposentado, 87 anos, residente na cidade de Santo Antonio de Jesus. Entrevista realizada em 13/ 12/ 2005. [16] - Claudemiro Souza Barreto, motorista, 56 anos, residente na cidade de Santo Antonio de Jesus. Entrevista realizada em 09/ 04/ 2006. [17] - Idem nota 5. Conflitos e Violência no campo brasileiro. 9