Da tolerância religiosa ao elogio à diversidade

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Transcrição:

MORALIDADE E MARCADORES DA DIFERENÇA 2o. Sem. 2016 Da tolerância religiosa ao elogio à diversidade Prof. Gustavo Venturi

Tolerância religiosa humanismo nascente no século XIV: tratado Defensor Pacis, (1324) Marcílio de Pádua e João de Jandun: princípio da tolerância, referido estritamente à liberdade de confissão, à possibilidade e necessidade da coexistência pacífica entre seguidores de mais de uma religião sob um mesmo Estado. Debate político sobre a separação entre Estado secular e autoridade religiosa, demarcação já postulada (Monarchia, 1313) por Dante Alighieri (1265-1321). No mesmo período, no plano teológico Guilherme de Ockham (1280/90?-1349) em oposição a Tomás de Aquino (1225-1274), que sustentava a conciliação da fé e da razão defendera a possibilidade da salvação também sem a fé cristã, para os que se guiavam pela razão natural ou reta razão (Lectura libri sententiarum, 1320?) Arrefecimento dos conflitos pós Reforma: Giacomo Aconcio (1492-1566) sustentaria, em Stratagemata Satanae (1565), a tese de que a intolerância religiosa era uma armadilha de Satanás.

Tolerância religiosa No plano lógico, Jean Bodin (1530-1596), em Colloquium heptaplomeres (1593), preconiza a possibilidade da paz religiosa pela volta a uma religião natural, antidogmática; Hugo Grócio (1583-1645), em De jure belli ac pacis (1625) defende que a imposição do cristianismo pelas armas era contrária à razão; e Michel de Montaigne (1533-1592) fará a defesa da liberdade de consciência a partir de uma perspectiva cética e relativista (Ensaios, 1580). Só no século seguinte, com Baruch Espinosa (1632-1677), no Tractatus theologico-politicus (1670) apareceria uma defesa da tolerância com argumentos pragmáticos: a violência e a imposição não podem promover a fé, portanto, as leis destinadas a isso seriam inúteis.

Tolerância religiosa e liberdade civil John Locke (1632-1704) Epístola sobre a Tolerância (1689): como pode uma religião que propugna pela caridade (que ultrapassaria a philia grega, perdoando os inimigos) ter se tornado intolerante, praticar a violência? Intolerância cristã teria surgido com a legalização do cristianismo - religião oficial do império romano sob Constantino (séc.iv), leva a convergirem interesses da Igreja e do poder secular: mensagem revolucionária de liberdade e igualdade na terra transita gradualmente para a graça no reino dos céus (resignação ante os males terrenos). Sec VIII: teocracia, Igreja como guardiã da civilização européia (autoridade é divina)

Tolerância religiosa e diversidade humana Locke defenderia a tolerância como ponto de encontro dos deveres e interesses do Estado e da Igreja: ao E. cabe a defesa dos bens civis, não a salvação das almas a autoridade da I. não deve ultrapassar seus limites deve ser mensageira da paz, da tolerância. Liberdade religiosa é questão de foro íntimo Lei (coerção do soberano) e consciência religiosa (persuasão do espírito) dizem respeito a coisas distintas. Triunfo da tolerência religiosa expressa interesses da burguesia emergente (comércio nao era pecaminoso, paz civil como melhor cenário), defendidos pelo racionalismo protestante. Guerras não advém da diversidade de opiniões, mas da intolerância com a opinião diversa. Ceticismo X dogmatismo. Defesa da sociedade contratualista moderna origem da democracia pluralista contemporânea. Premissa: diversidade humana (perspectiva empirista e culturalista).

Tolerância religiosa Voltaire (1694-1778), Tratado sobre a Tolerância (1763), adota argumentação semelhante pró separação dos poderes secular e religioso, pró pluralismo religioso mas fundamentada antes na ética da identidade (pequenez humana, não há verdade/caminhos únicos para a salvação) X ética da diversidade cultural (Locke). Voltaire: exaltação do livre-arbítrio, da liberdade de pensar. Razão é mais eficaz que a força, instrumento para o combate à ignorância, à estupidez, ao preconceito e à crueladade, para a consci6encia da identidade universal. Responsabilidade da intolerância religiosa é da Igreja (condescendente com a monarquia)

Tolerância religiosa e liberdades civis Séc. 19: Igreja Católica (e monarcas) seguem ortodoxia e intolerência: encíclicas papais condenam separação de poderes I. e E., liberdade de consiciência, de culto etc. (Dogma da infalibilidade papal: 1870). J.Suart Mill (1806-1873), Sobre a Liberdade (1859), retoma empirismo, mas amplia noção do livre-arbítrio para liberdade civis: liberdade de consciência (pensamento e expressão), de autodeterminação (gostos e preferências) e de associação (política) [Direitos civis, 1a. Geraçao de DH]

M. Walzer (On Tolerance, 1997): cinco (tipos ideais de) regimes de tolerância às diferenças relativas a direitos coletivamente exercidos em associações voluntárias, pertenças religiosas, expressões culturais, autodeterminação comunitária etc.: 1. Impérios multinacionais (impérios antigos, Persa, Egípcio, Romano também coloniais, Espanhol, Britânico etc): coexistência pacífica e tolerância a grupos - diferentes etnias (culturas, religiões) sob domínio de burocracia comum; 2. Sociedade internacional (sociedade de Estados): tolerante (a grupos) por princípio (autodeterminação dos povos) e, para além dos próprios princípios, por fraqueza (p.22); 3. Consórcios (Suíça, Líbano anos 90): manutenção da coexistência imperial sem a burocracia imperial, tolerância a grupos, agregada a cidadania comum mais efetiva (p.35) 4. Estados nacionais (países europeus): sociedades de cidadãos, tolerància não a grupos, mas a indivíduos como cidadãos e como membros genéricos de minorias maior controle de minorias; 5. Sociedades imigrantes (EUA, Canadá, Austrália): tolerância a indivíduos (por escolhas pessoais), grupos étnicos e religiosos dependem mais de si mesmos para se preservarem mais ameaçados pela indiferença de seus membros que pela intolerância dos outros.

M. Walzer: cinco expressões de tolerância às diferenças: 1. Resignação: atitude passiva, de aceitação ou reconhecimento do outro em seu direito básico de existir (e viver com dignidade); 2. Indiferença: atitude relativista, cabe a cada um decidir como quer ser (laissez-faire moral); 3. Estoicismo: ou racionalismo abstrato, perspectiva deontológica, em consideração ao direito de todos; 4. Respeito: atitude de curiosidade ativa, o diferente como fonte de intercâmbios e aprendizado; 5. Apoio engajado: atitude de endosso entusiástico às diferenças, o reconhecimento de sua necessidade como contraponto às próprias escolhas identitárias, sem as quais não haveria individuação (e possibilidade de autonomia moral?) (Walzer, On Tolerance, 1997).