Enfermagem da Universidade de São Paulo 4 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da



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Transcrição:

IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial (IV CNSM-I) Eixo II- Consolidando a rede de atenção psicossocial e fortalecendo os movimentos sociais; Item 5 Desinstitucionalização, inclusão e proteção social: residências terapêuticas, Programa de Volta para Casa e articulação intersetorial no território CENSO PSICOSSOCIAL DOS MORADORES EM HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS: ESTRATÉGIA PARA PROCESSOS DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DE CIDADÃOS AINDA INVISÍVEIS BARROS, Sônia 1 ; NICÁCIO, Fernanda; 2 OLIVEIRA, Márcia A. F; 3 ARANHA e SILVA, Ana Luisa; 4 BICHAFF, Regina; 5 DELLOSI, Mirsa Elizabeth; 6 A Reforma Psiquiátrica segue um percurso próprio na busca de transformação do sistema de Saúde Mental, por meio da desinstitucionalização/desconstrução/construção, no cotidiano das instituições, de uma nova forma de lidar com a loucura e o sofrimento psíquico. Este processo tem como marca distintiva e valor fundante o reclame da cidadania dos loucos (Delgado, 1992). No cenário nacional, a questão da presença de pessoas com longa internação em hospitais psiquiátricos emerge como problema importante no contexto da reforma psiquiátrica, desde o final dos anos 1970, considerando que expressa, de forma clara, a ausência de direitos das pessoas com transtornos mentais, assim como a função de segregação e exclusão da instituição psiquiátrica (Amarante et. al, 1998; Delgado, 1992). Nessa perspectiva o Ministério da Saúde desde a década de 1990 vem propondo e implantando novos dispositivos de atenção e novas formas de financiamento de forma a possibilitar, a mudança do modelo de atenção hegemonicamente hospitalocêntrico, naquela ocasião, para um modelo de base comunitária. Seguindo à lógica de descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS), foi sendo estimulada a constituição de redes de atenção psicossocial, substitutivas ao modelo centrado na referência à internação hospitalar, resultando na criação de serviços de atenção diária de base municipal (Delgado, Schechtman, Hoffmann, Weber, Porto, Lobo, 2001:9). O maior impacto na expansão da rede de atenção à saúde mental no País deu-se a partir de 2002, quando se iniciou a expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), implantação de residências terapêuticas (RT) e a partir de 2003 a inclusão de egressos de internações psiquiátricas de longa permanência no Programa de Volta para Casa (PVC). Para a compreensão desse processo, é importante destacar que, com base nas diversas experiências municipais de criação de moradias no território (Alves, 1996; Brasil, 2004a; Furtado e Pacheco, 1998, Reis, 1998), o Ministério da Saúde regulamentou os Serviços 1 Professora Associada Livre Docente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 2 Professora Doutora do Curso de Terapia Ocupacional do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 3 Professora Associada Livre Docente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo 4 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo 5 Médica Psiquiatra. Secretária de Estado da Saúde de São Paulo. Centro de Formação de Recursos Humanos para o SUS/SP Doutor Antonio Guilherme de Souza. 6 Psicóloga. Diretora Técnica de Divisão de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo

Residenciais, em 2000, por meio da Portaria GM n. 106, que tem possibilitado a restituição, às pessoas institucionalizadas, de um dos mais elementares direitos, o de morar e de viver na cidade (Brasil, 2000; 2004a; 2005; 2007). Com essa Portaria e, em 2003, a criação do Programa de Volta para Casa e do auxílio reabilitação psicossocial instituído pela Lei 10.708/2003, foram viabilizadas as condições para a desinstitucionalização das pessoas com histórico de longa internação psiquiátrica, assim como para o desenvolvimento dos processos de reabilitação que visam à garantia ao acesso e exercício de direitos e à potencialização da contratualidade (Brasil, 2004b; 2005; Rotelli, 1999; Saraceno, 1999). Ressalte-se, ainda, que o artigo 5º da Lei 10.216/2001 estabeleceu a necessidade de políticas específicas de alta planejada e de reabilitação psicossocial para as pessoas há longo tempo internadas em hospitais psiquiátricos ou em situação de grave dependência institucional (Brasil, 2004b). Em síntese, e o que parece fundamental enfatizar é que, na atualidade, estão presentes o marco jurídico legal e os instrumentos normativos da política de saúde mental do SUS para o desenvolvimento de processos de desinstitucionalização com a efetivação de projetos de reabilitação psicossocial no território. Entretanto, e não obstante os investimentos realizados, análises do panorama atual indicam um problema de fundamental relevância a ser enfrentado na IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial: a defasagem existente entre as estimativas do número de pessoas institucionalizadas no cenário nacional, e os dados referentes à implementação de moradias nas redes locais de atenção em saúde mental e à concessão do auxílio-reabilitação psicossocial do PVC (Barros et al, 2009, Brasil, 2009; Furtado, 2006). Mas, foi, sobretudo a partir da criação de moradias no território, no contexto de experiências locais de reforma psiquiátrica no final dos anos 1980 e início da década de 1990, que foi possível demonstrar a viabilidade e eficácia desse dispositivo para as pessoas com história de institucionalização e iniciar a elaboração de proposições para as políticas públicas do campo (Alves, 1996; Brasil, 2004a; Furtado e Pacheco, 1998; Reis, 1998). Por outro lado, apenas recentemente verifica-se o desenvolvimento de estudos tipo censo que consentem conhecer o perfil das pessoas há longo tempo internadas em hospitais psiquiátricos (Brasil, 2005; 2007; 2009; Furtado, 2006; Gomes et al., 2002; Pitta et al., 2004; Silva et al., 1999). Nessa perspectiva, assume centralidade, na IV Conferência, elaborar e discutir um conjunto de estratégias que, por um lado, possibilite a potencialização dos processos de desinstitucionalização dos ainda moradores de hospitais psiquiátricos, e, por outro, garanta a efetiva superação da prática de internações psiquiátricas de longa permanência. Dentre essas estratégias, torna-se fundamental a ruptura com a invisibilidade social dos moradores de hospitais psiquiátricos, ou ainda, em outras palavras, é necessário efetivar ações para que esses quase invisíveis moradores de instituições psiquiátricas sejam, efetivamente, conhecidos e percebidos como cidadãos e tenham seus direitos restituídos. Em São Paulo, um grupo constituído na Secretaria de Estado da Saúde, em parceria com professores da Universidade de São Paulo, elaborou e executou um Censo Psicossocial dos Moradores dos Hospitais Psiquiátricos do Estado de São Paulo como estratégia para a construção de proposta de desinstitucionalização de pacientes de longa permanência dos hospitais psiquiátricos do Estado, a partir da organização, acompanhamento, coordenação e elaboração de um diagnóstico situacional dessas pessoas. Após o trabalho de campo, realizado em 2008, constatou-se o total de 6.349 pessoas institucionalizadas, moradoras, em 56 dos 58 hospitais psiquiátricos existentes no Estado e a análise de dados permitiu a caracterização da população moradora, revelando a gravidade dos processos de institucionalização nos hospitais psiquiátricos do Estado tendo em vista que 65% encontravam-se internados há mais de dez anos.

O resultado do Censo evidencia que é imperativo transformar o olhar que considera as pessoas moradoras de hospitais psiquiátricos como naturalmente incapazes, inábeis e de menor valor. Trata-se, sobretudo, de ousar desconstruir esse paradigma, romper a invisibilidade social dos moradores, validar os saberes dessas pessoas, investir concretamente para restituir seus direitos de cidadania e, principalmente nas possibilidades reais de vida (Barros e Bichaff, 2008). Considerando-se a existência de população moradora em hospitais psiquiátricos na maioria dos estados brasileiros, algumas conclusões e recomendações que foram realizadas no Censo Psicossocial dos Moradores dos Hospitais Psiquiátricos do Estado de São Paulo podem contribuir para a discussão da efetivação de processos de desinstitucionalização, e assim incluiremos algumas, com as modificações necessárias para uma perspectiva nacional, no presente texto. 7 É fundamental lembrar que as intervenções estão amparadas nas Leis e normas vigentes: a. a Lei 10.216/2001 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, e, especialmente, o artigo 5º que determina que o paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário (Brasil, 2004a); b. a Lei 10.708/2003 que institui o auxílio-reabilitação psicossocial para assistência, acompanhamento e integração social, fora de unidade hospitalar, de pessoas com transtornos mentais, internadas em hospitais psiquiátricos. O auxílio constitui parte integrante do Programa de Volta para Casa da Política Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde (Brasil, 2004b); c. a Portaria GM n.106/2000 que cria os serviços residenciais terapêuticos no âmbito do SUS para pessoas egressas de internações psiquiátricas de longa permanência que não possuam suporte social e laços familiares (Brasil, 2004a); d. as deliberações da III Conferência Nacional de Saúde Mental realizada em Brasília em 2001 (Brasil, 2002). Recomenda-se: 1. A articulação entre os três níveis de gestão do SUS para a construção do conjunto de condições - sanitárias, institucionais, técnicas, econômicas, jurídicas, políticas - para a efetivação da desinstitucionalização das pessoas moradoras de hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo assegurando o direito à moradia e a garantia de cuidado e de reabilitação psicossocial nas redes locais de atenção psicossocial. 2. A criação de incentivo estadual para os municípios que acolherem os moradores desinstitucionalizados visando a apoiar a implementação de SRTs, o desenvolvimento de projetos de reabilitação psicossocial e a criação e/ou ampliação/consolidação dos serviços e das ações de base comunitária/territorial das redes locais de atenção psicossocial. 7 Barros, S.; Bichaff, R. (org.) Desafios para a desinstitucionalização: censo psicossocial dos moradores de hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo. São Paulo, FUNDAP/Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo, 2008. 170p.

3. A inclusão, do debate sobre a situação das pessoas moradoras de hospitais psiquiátricos na pauta de reunião da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) visando à pactuação de ações e metas para a implementação e o desenvolvimento de projetos de desinstitucionalização das pessoas internadas há mais de um ano nos hospitais psiquiátricos do Estado, considerando as necessidades de investimentos e de articulação, dentre as quais: a necessidade de pactuação de transferência dos recursos financeiros referentes ao fechamento de leitos ocupados por moradores para os tetos dos municípios que acolherem os usuários egressos de hospitais psiquiátricos, a serem destinados à criação e/ou expansão de serviços de saúde mental de base comunitária/territorial, à criação e/ou ampliação de moradias assistidas (SRTs), à criação e/ou fortalecimento de projetos intersetoriais no campo da educação, cultura, e trabalho, contemplando, dessa forma, as demandas de atenção e reabilitação psicossocial. a implantação de SRTs para as pessoas egressas de internações psiquiátricas de longa permanência que não possuem suporte social e laços familiares, conforme regulamentação da Portaria GM n. 106/2000. para os moradores para os quais foi identificada a existência de presença de contatos de familiares/pessoas da rede social, destaca-se que não necessariamente essa presença é equivalente à possibilidade de moradia em conjunto. Portanto, é possível indicar que a necessidade de criação de SRT abrangerá, também, diversas pessoas desse grupo, não obstante as possibilidades de serem ativados processos de reabilitação psicossocial com familiares/pessoas da rede social, e nos projetos de articulação e parceria com outras políticas públicas como às dirigidas às pessoas com deficiência; a expansão, de acordo com as necessidades dos contextos locais, da rede substitutiva em saúde mental e dos projetos intersetoriais, em particular CAPS I, II, e III, CAPS Infantil e CAPS AD, inserção de atenção em saúde mental na atenção básica, leitos psiquiátricos em hospitais gerais, centros de convivência, projetos de geração de renda e inserção no trabalho, projetos de alfabetização e de acesso aos bens culturais, visando a assegurar o acesso ao cuidado e à reabilitação psicossocial das pessoas desinstitucionalizadas. a habilitação de municípios no Programa de Volta para Casa conforme a Portaria GM n. 2077/2003 que regulamenta a Lei 10.708/2003 nos Termos de seu Artigo 8º (Brasil, 2004b); a elaboração e implementação de processos formativos de educação permanente, em parcerias com as universidades, que visem à qualificação das equipes dos serviços de saúde e de saúde mental de base comunitária/territorial, de apoiadores/cuidadores de SRTs, e de participantes de projetos intersetoriais para ampliação e potencialização da capacidade de atenção e de reabilitação psicossocial de pessoas com histórico de institucionalização em hospitais psiquiátricos. a realização de Projeto visando à recuperação da documentação original ou à obtenção da Certidão Tardia de Nascimento dos denominados ignorados, operando no resgate de histórias, identidades e vínculos, e promovendo as condições para o acesso aos benefícios e aos direitos previstos na legislação. 4. Que, no desenvolvimento de projetos de desinstitucionalização orientados para a reabilitação psicossocial e nos percursos de implementação de SRTs sejam observados a Portaria GM n. 106/2000 e os seguintes princípios: o habitar como um dos eixos centrais nos percursos de reabilitação como cidadania que visem à ampliação de contratualidade (Saraceno, 1996, 1999);

a produção de processos de desinstitucionalização pautados na validação dos moradores, no reconhecimento de seus saberes, capacidades, e direitos, e orientados para o fortalecimento do poder contratual, a potencialização de redes sociais, e a criação de condições para novas possibilidades de vida; a efetiva participação dos moradores na escolha da cidade na qual irá residir, considerando sua naturalidade, a última cidade de residência antes da internação atual, o município de residência do familiar, e as alternativas concretas existentes; cabe destacar a necessidade de propiciar as alternativas possíveis na singular situação de moradores de outros Estados e países; o respeito às interações e aos vínculos afetivos construídos entre moradores para a composição de grupos que irão habitar uma moradia assistida; o direito ao auxílio-reabilitação psicossocial (PVC) conforme a regulamentação da Lei 10.708/2003. a garantia de BPC (LOAS) nas situações indicadas; a compreensão dos SRTs como moradias destinadas a cuidar de pessoas com transtornos mentais egressas de internação psiquiátrica de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares, atuando como unidade de suporte, e que viabilizem sua reinserção na vida comunitária (Brasil, 2004a). Dessa forma, diferente de um espaço sanitário, trata-se de implementar práticas e estratégias operativas de apoio e suporte que visem a promover o protagonismo das pessoas na vida cotidiana, a autonomia, a reapropriação do habitar, e de suas diferentes formas, e as possibilidades de conviver e participar das trocas sociais (Brasil, 2004b); a efetiva configuração dos SRTs como moradia requer, também, a localização na comunidade, fora dos limites dos espaços hospitalares/institucionais, um espaço físico adequado, e a produção cotidiana de ambiente acolhedor de casa e de respeito à singularidade e aos direitos dos usuários como cidadãos; a reafirmação que os SRTs são exclusivamente de natureza pública (Brasil, 2004); a garantia de cuidado e de reabilitação psicossocial dos moradores dos SRTs nos serviços de saúde e de saúde mental, assim como de inserção em projetos de políticas públicas intersetoriais, nas formas associativas de organização de usuários e familiares e nas relações sociais e comunitárias do território. 5. A articulação do gestor estadual do SUS com o Ministério Público para a criação de Comissão Revisora de Internações Psiquiátricas Involuntárias de acordo com a Portaria GM n. 2391/2002. 6. A articulação com as instâncias do Poder Judiciário e com o Ministério Público para a elaboração de proposições objetivando a revisão de interdições judiciais. 7. A articulação com as instâncias do Poder Judiciário e com o Ministério Público para analisar a situação de moradores de hospitais psiquiátricos, com internação compulsória. 8. A articulação, nos âmbitos estadual e municipal, com as políticas públicas e as organizações da sociedade civil que atuam no campo do trabalho e emprego, especialmente na perspectiva da Economia Solidária, para criação e fortalecimento de empreendimentos solidários com a inclusão de pessoas com transtornos mentais. Indicase a superação de utilização do trabalho como forma de ocupação no contexto asilar e, nas proposições a serem criadas, a adoção dos referenciais e diretrizes que vêm sendo elaborados na parceria das políticas nacionais de saúde mental e de Economia Solidária para o desenvolvimento de iniciativas de inserção no trabalho (Brasil, 2005, 2006). 9. A articulação, nos âmbitos estadual e municipal, com as políticas públicas e com os projetos da sociedade civil que atuam no campo da educação e da cultura para a construção de proposições que objetivem a inclusão de pessoas com transtornos mentais

em projetos de alfabetização, assim como a criação e/ou fortalecimento de projetos culturais inclusivos. 10. A articulação com as políticas públicas, estadual e municipal, de atenção à infância e juventude para a construção conjunta de estratégias de desinstitucionalização e, sobretudo, de proposições que visem à concretização das redes locais de atenção psicossocial e de projetos intersetoriais - saúde, educação, cultura, desenvolvimento social - que superem as formas de institucionalização. 11. A articulação com as políticas públicas, estadual e municipal, de saúde da pessoa com deficiência, para aprofundamento da discussão sobre a situação de moradores com deficiência com vistas à elaboração de estratégias intersetoriais para efetivar a desinstitucionalização e a atenção à saúde no território. 12. A construção de estratégias com os gestores das políticas públicas de saúde bucal, em nível estadual e municipal, visando a garantir o acesso dos moradores aos serviços odontológicos. 13. A constituição de Grupo de Trabalho para realização de avaliação específica das condições dos moradores acamados, de forma a aprofundar o conhecimento e a compreensão das principais necessidades desse grupo visando à formulação de alternativas e respostas adequadas para a desinstitucionalização. 14. A articulação com o gestor da política nacional de saúde mental do Ministério de Saúde para o aprofundamento da discussão e formulação de medidas sobre a problemática, evidenciada no Censo, da presença de continuidade de internações de longa permanência com data de início após a promulgação das Leis 10.216 de 2001 e 10.708 de 2003. Essas recomendações são complexas, mas certamente factíveis e viáveis como demonstram o conjunto de experiências exitosas de desinstitucionalização e um processo crescente de criação de moradias nos territórios, presentes em diversas cidades brasileiras. Trata-se de assumir o compromisso de dar visibilidade aos cidadãos, hoje moradores de hospitais psiquiátricos, e de ampliar e potencializar as ações necessárias que efetivamente expressem que a desinstitucionalização de pessoas há longo tempo internadas em hospitais psiquiátricos constitui uma exigência ética, institucional, técnica, e social para viabilizar a garantia da reconstrução da cidadania, a restituição do direito à moradia, e do acesso à atenção psicossocial em serviços de base comunitária/territorial que promovam um cuidado eficaz e promotor de inclusão social. Referências Bibliográficas: Alves DSN. Por um Programa Brasileiro de Apoio à Desospitalização. In: Pitta A. (org.) Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 27-30. Amarante P, Carvalho AL, Uhr B, Andrade EA, Moreira MCN, Souza WF. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. 132p. Barros S, Nicácio F, Bichaff R. Oliveira MAF. Dellosi ME. Pitta AMF. Aranha e Silva AL. Covre E. Censo Psicossocial de Moradores em Hospitais Psiquiátricos e Garantia de Direitos no Contexto da Reforma Psiquiátrica do SUS. Anais do IX Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Recife: Abrasco; 2009. Barros, S. Bichaff, R. (org.) Desafios para a desinstitucionalização: censo psicossocial dos moradores de hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo. São Paulo, FUNDAP/Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo, 2008. 170p. Brasil. Conferência Nacional de Saúde Mental, 3; 2001. Brasília. Relatório Final. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.

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