SCHLESENER, Anita Helena. Grilhões invisíveis. Ponta Grossa: Editora UEPG, p.

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Transcrição:

ISSN 1809-4309 (Versão online) DOI: 10.5212/PraxEduc.v.13i1.0016 SCHLESENER, Anita Helena. Grilhões invisíveis. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016. 195 p. Leandro Galastri * Grilhões Invisíveis é a feliz metáfora com que Anita Schlesener batiza seu recém-lançado livro sobre o pensamento de Antonio Gramsci, referindose às diversas formas em que o capital se metamorfoseia para exercer a direção de corações e mentes nas formações sociais contemporâneas. Atenção especial é dada à questão educacional, cuja crítica é fortemente amparada em essenciais reflexões que a autora reserva às inter-relações e condicionamentos recíprocos entre ideologia, linguagem e a condição da subalternidade, como anunciado já no título. 263 A educação, cujo currículo se desenvolve sob os auspícios do Estado capitalista, é apenas reprodutora da concepção de mundo hegemônica ou enseja, em seus processos internos, espaços de contradição que podem ser explorados para a crítica desse Estado e dessa concepção de mundo? Anita Schlesener responde salientando a necessidade de os grupos subalternos terem acesso aos códigos do currículo oficial. É igualmente clara ao afirmar a necessidade estratégica de explorar as contradições de classe presentes no sistema escolar estatal, ao mesmo tempo em que aponta a necessidade de um processo educacional autônomo dos grupos subalternos. Isso, para o desenvolvimento de uma educação que se desenvolva com base nos princípios de uma concepção de mundo própria e antitética à hegemonia vigente. Assim a autora o faz em um de seus livros anteriores (Revolução e Cultura em Gramsci, Ed. UFPR, 2002) e, assim também o reafirma neste novo livro, com toda a profundidade de um exaustivo estudo em que o pensamento embasado na filosofia da práxis é mais uma vez exercitado com maestria. No primeiro capítulo, intitulado Às margens da história: hegemonia e luta de classes, é apresentada a questão das leituras equivocadas que são feitas sobre os escritos de Gramsci, embora diferentes interpretações legítimas sejam possíveis por conta, seja da linguagem * Professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) Câmpus de Marília. E-mail: <leandrogalastri@gmail.com>.

SCHLESENER, Anita Helena. Grilhões invisíveis... metafórica do autor, seja pela autonomia adquirida por um texto após sua publicação, abrindo a possibilidade de novas leituras a partir de novas circunstâncias históricas (p. 24). Em todo caso, Schlesener chama a atenção para os erros das perspectivas parciais e aqueles equívocos oriundos da dificuldade de se ler Gramsci a partir de uma perspectiva dialética. Este capítulo já introduz uma importante questão que será um dos fios condutores do livro: a necessidade imperiosa de que os grupos subalternos se organizem politicamente. Observa que a luta de classes implica um processo de formação dos trabalhadores, que se efetiva no movimento de sua organização política (Idem). Assim, uma nova hegemonia só pode ser construída no processo democrático de organização política dos trabalhadores. Trata-se de explicitar o significado de hegemonia a partir da crítica de Gramsci ao liberalismo. Chama-se atenção aqui também para a função estratégica dos intelectuais na construção e reprodução de determinada concepção hegemônica de mundo, bem como para o papel da luta de classes nas circunstâncias das relações de hegemonia. Aqui Schlesener retoma uma expressão-chave para a compreensão da filosofia da práxis: a subversão da práxis como possibilidade de mudança estrutural do sistema hegemônico (p.25). Trata-se de analisar as relações de forças ou luta de classes para contrapor a subversão da práxis à revolução passiva. Schlesener analisa as possibilidades da violência insurrecional contidas nas contradições cotidianas presentes na vida dos subalternos. O senso comum entenderia o termo violência apenas como luta aberta, enfrentamento com armas, mas seria incapaz de entender como um procedimento atroz a violência quotidiana do Estado e do capital contra suas próprias vidas (p.50). Isso seria assim porque a ideologia dominante nunca é apresentada como tal, mas como projeto universal para a sociedade. No segundo capítulo, As dimensões da ideologia a partir da leitura gramsciana de Marx, a autora apresenta como o conceito de ideologia, inicialmente proposto por Marx em chave negativa de dominação de classe, é reelaborado por Gramsci e adquire também o sentido de concepção de mundo possível dos grupos subalternos (p.65). Uma das formas mais sofisticadas em que o conceito aparece em Marx é aquela em que a igualdade dos trabalhos humanos se disfarça sob a forma da igualdade dos produtos do trabalho como valores. Assim, tais formas profundas de abstração da força de trabalho humana promovem o intercâmbio dos produtos de trabalho a partir de determinações de quantidade de valor (mercadorias). Marx demonstraria que a raiz da autoalienação dos homens (e da ideologia) se encontra no modo como se organizam as relações de trabalho e as relações de troca (p. 69). Esta forma de alienação do trabalho humano e de fetiche se metamorfoseia, desdobra-se em todas as outras dimensões da vida. Tal como as mercadorias aparecem autonomizadas do processo de desenvolvimento dos sujeitos do trabalho, assim também, por exemplo, a linguagem, ferramenta de hegemonia, pois que constituidora dos códigos de percepção do mundo, aparece como essência individual do ser humano e não como sua construção social (Idem). 264 A partir dessa leitura, a autora esclarece que Gramsci conduz a reflexão sobre a ideologia como momento de construção da hegemonia via luta de classes. Os grupos subalternos, na luta pela construção de sua hegemonia, na luta de classes, sentem a necessidade de elaborar nova concepção de mundo, novos códigos de linguagem que expressem o seu próprio modo de vida e que apresente este modo de vida em chave universal e emancipadora (Schlesener utiliza a expressão modo de vida, citando Edmundo Fernandes Dias que a retoma de Trotski em Questões do modo de vida, ao salientar as formas em que as macrorelações capitalistas capital / trabalho se metamorfoseiam, traduzem-se e se expressam nas micro relações cotidianas, conferindo concretude material à hegemonia burguesa) (p.49).

Leandro Galastri Contribui para essa formulação a leitura que Gramsci faz de Marx do Prefácio de 1859, que afirma que é na dimensão das superestruturas que os homens tomam consciência de suas lutas e de seus interesses. Ou seja, no âmbito das ideologias. Para Gramsci, como lembra Schlesener, as ideologias historicamente orgânicas são necessárias, estão em permanente articulação com as estruturas e formam, dessa maneira, o horizonte no qual os homens se relacionam, lutam e conquistam consciência de suas posições e, portanto, são importantes na luta de classes (p. 75). O pressuposto constantemente presente no livro de Schlesener e, portanto, também aqui, é que os grilhões invisíveis só podem ser rompidos pela tomada de consciência dos grupos subalternos, o que se traduz em organização política. Nesse quesito torna-se fundamental o acesso a uma educação que eleve as massas dos subalternos ao maior nível intelectual possível, para que possam dominar os códigos formais da linguagem dominante e constituir, com base nele e em sua crítica, de forma coerente e sistemática, sua própria linguagem, sua própria concepção de mundo, sua proposta hegemônica. É disto que trata mais diretamente o terceiro capítulo, A linguagem em seu contexto histórico e político. Mais uma vez a base aqui é a leitura gramsciana de Marx, cujo pensamento é mobilizado para enfatizar a dimensão ideológica da linguagem, linguagem oral em especial. A linguagem se constitui como forma de consciência ideológica nas dimensões social, econômica e política. Assim também como expressão empírica das formas de dominação hegemônica (p. 96). Neste contexto, a linguagem se forma como processo histórico com base em indivíduos que estabelecem uma atividade produtiva determinada, que se colocam em relações sociais e políticas determinadas, a partir das quais conhecem a si mesmos e aos outros elaborando sua interpretação da realidade. A linguagem, portanto, adquire estreita relação recíproca de formação com a consciência social dos indivíduos. Sendo a consciência, na perspectiva de Marx, a relação com tudo o que nos rodeia, ela fica também condicionada pela forma da sociedade em questão e, portanto, pelas circunstâncias sociais geradas a partir das relações de trabalho (p.98). 265 Aprender uma nova linguagem passa pelo esquecimento do idioma de origem, e tem como pressuposto o contexto e os vínculos culturais e sociais dos subalternos com o horizonte ideológico de seu tempo, que está estruturado pelos laços de submissão construídos historicamente. A linguagem contém sedimentos de conteúdos ideológicos que por ela se manifestam continuamente. Isso dificulta a assimilação do novo, inclusive sua proposição mesma, o que nos remete às relações de hegemonia que se concretizam e perpetuam no âmbito do senso comum e na incapacidade dos subalternos de formular um pensamento inovador, que expresse realmente o conteúdo de suas lutas (p.99). É nesse momento que as lutas de classe assumem uma importante nova dimensão e encara um novo desafio, aquele da formação político-cultural das classes trabalhadoras a fim de que possam constituir sua própria linguagem, os códigos de seu modo de vida e não do modo de vida dos opressores. Desenvolvendo uma linguagem autônoma, os grupos subalternos consolidam uma ideologia própria e autônoma e constroem sua identidade de classe. Trata-se de dominar a linguagem para enfrentar o dominador em seu terreno, o terreno dos embates entre concepções de mundo opostas e excludentes. Como salienta Schlesener, os dois conceitos, hegemonia e linguagem, por sua vez, embasam o significado pedagógico que permeia a política e se organiza a partir da luta de classes (p.100). O quarto capítulo, As novas condições da subalternidade, tem como foco explorar as condições tradicionais e contemporâneas da situação de subalternidade, aprofundadas com os novos veículos tecnológicos de informação e comunicação, que multiplicaram os canais da propagação ideológica. Para Schlesener, o conceito gramsciano de classes e grupos subalternos abre novas possibilidades de pensar o capitalismo na sua fase neoliberal e financeira (p.135).

SCHLESENER, Anita Helena. Grilhões invisíveis... A noção de subalterno é esclarecida teoricamente com mais pormenores neste momento. Assim, os grupos subalternos são grupos que ainda não estariam concretamente organizados como classe, pois se encontram na condição de dominados diante da hegemonia burguesa presente. Nessa condição, não possuem uma história ou historiografia próprias nem um pensamento sistematizado. Enquanto não conseguem se constituir como Estado, seus intentos de unificar sua atividade histórica e política permanecem limitados e provisórios, sofrendo a investida desmobilizadora da hegemonia presente. No caso da burguesia e de suas frações, sua unidade histórica se firma a partir da estrutura do Estado burguês. A partir de seu próprio Estado, a força hegemônica dessas classes dominantes se consolida e sua unidade histórica se concretiza. A partir dele, também, tais classes se empenham em romper toda iniciativa dos grupos subalternos no sentido de sua unificação teórica (p. 138). Esse rompimento permanente das iniciativas subalternas nem sempre é explícito e coercitivo no sentido das armas. As classes subalternas assimilam o modo de pensar dominante e concebem a realidade dentro dos limites das narrativas hegemônicas, o que dificulta, ou mesmo impossibilita perceber a própria subordinação. É dessa forma que se veiculam conceitos e noções típicas da construção da concepção de mundo dominante, destinadas a propagar ideias vagas e abstratas, de valor supostamente universal, para ocultar as diferenças reais de classes e suas relações antagônicas. Assim é que conceitos como igualdade, liberdade, cidadania, democracia, nação, povo etc. são apresentados como possuindo validade essencial, natural, universal enquanto, na verdade, carreiam significados da visão parcial de mundo das classes dominantes. O rompimento desse ciclo vicioso, como salienta Anita Schlesener, requer que os grupos subalternos formem seus próprios intelectuais, ou seus intelectuais orgânicos, aproveitando todas as oportunidades de resistência e de ação inovadora que permitam a formulação de nova concepção de mundo, sua própria concepção de mundo a partir do desvelamento das contradições que vivem em seu quotidiano, do esclarecimento de sua condição de grupos sociais explorados e oprimidos. Dessa perspectiva, a questão da educação no seu sentido amplo perpassa a luta de classes e lhe dá uma nova dimensão no contexto da hegemonia (p. 142). 266 Após atravessar uma densa e rica discussão sobre os níveis da ideologia, o caráter da hegemonia e a centralidade da linguagem na emancipação do subalterno, a autora chega, por fim, ao quinto capítulo, A educação do contexto da hegemonia, da ideologia e da linguagem, no qual cada parte das discussões desenvolvidas até aqui se articula para embasar o debate sobre o papel da educação na organização da luta dos grupos subalternos. Lembra Schlesener que os projetos de dominação e suas ideologias, bem como seus equivalentes antagônicos, materializamse na vida cotidiana por meio da linguagem. Destaca a autora, então, que pensar de modo autônomo e expressar claramente as ideias tem grande significado na luta política (p.151). Em termos gerais, a crítica gramsciana ao liberalismo se equaciona com base na crítica da separação ideológica entre sociedade política e sociedade civil ou, em outros termos, política e economia. Schlesener demonstra como Gramsci enxerga criticamente a atuação parlamentar e como o parlamento é instituição ideológica de hegemonia não apenas pelo que faz legislativamente, mas pelo que sua existência representa ideologicamente. É o parlamento a instituição política que dá concretude à igualdade abstrata da sociedade burguesa, que se pauta numa suposta representação igualitária dos cidadãos eleitores. Uma das formas da autonomia dos subalternos se expressar é desmistificando, primeiramente, o sistema parlamentar do Estado burguês que, realizando a separação entre política e economia, confere à primeira um status de neutralidade, sem classes, que é o sustentador das formas positivistas de se enxergar e definir a participação política e a relação de igualdade abstrata entre os indivíduos. Essa perspectiva serve para entender os limites das

Leandro Galastri políticas públicas educacionais diante da baixa representatividade e do escasso acesso que as classes populares têm a esse sistema parlamentar. Essa separação ideológica entre política e economia se expressa por meio das leis, do direito. O direito não exprime os interesses de toda a sociedade, mas sim das classes dominantes e das suas frações. Assim, a lei não se refere às contradições e desigualdades sociais que caracterizam uma sociedade dividida em classes. Portanto, a lei não atinge igualmente a todos os indivíduos. Entretanto, observa Schlesener, a separação entre formal e real funciona como mecanismo ideológico e educativo, na medida em que gera a ilusão de igualdade (p. 153). O direito atua no âmbito da formação do consenso pela coerção legal, na medida em que orienta a conduta de um indivíduo que não queira sofrer penalidades (idem). O direito possui, portanto, um caráter educativo, criativo e formador (Gramsci apud Schlesener, idem). É com base nesta estrutura jurídica, aparentemente justa, mas concreta e realmente excludente, que se desenvolvem as políticas públicas educacionais das classes dominantes. Todos esses elementos ideológicos devem ser levados em consideração por uma pedagogia emancipatória. São essas relações de hegemonia que a concepção pedagógica de Gramsci procura compreender. A formação escolar que busca formar indivíduos apenas para uma função prática e técnica imediata busca limitar, em vez de expandir, a capacidade de percepção e atuação viva do indivíduo nas relações políticas de força que se dão com base na luta de classes. Busca limitar a possibilidade de uma percepção ampla da vida e do mundo de massas de crianças pertencentes aos grupos subalternos. Essa limitação é justamente uma das facetas concretas daquelas investidas reiteradas das classes dominantes contra a possibilidade do desenvolvimento de uma visão de mundo autêntica e autônoma dos grupos subalternos, que os ajude num processo de unificação histórica como classe consciente. Essa era a base da crítica gramsciana à reforma educacional na Itália levada a cabo por Giovanni Gentile (p.155-156). Essa é a base da crítica que se deve fazer à atual reforma do ensino médio brasileiro. 267 Anita Schlesener, ao retomar o debate da crítica às supostas neutralidades do Estado e da política, não apenas estende o fio condutor de uma crítica ideológica estrutural ao Estado burguês como um todo, mas presta uma enorme contribuição atual para desmascarar o discurso falacioso e conscientemente destrutivo de pilares da educação com iniciativas autoritárias como o movimento Escola Sem Partido. Não há verdades naturais, eternas ou absolutas, e a verdade de cada tempo é a verdade contida no vetor resultante das relações de força entre grupos de interesse em sociedade. Nas formações sociais capitalistas, o Estado é burguês, esses grupos são principalmente as classes sociais e o vetor resultante das forças em guerra é aquele da burguesia e de suas diversas frações. Por sustentar sua hegemonia em opressões e explorações de classe, é mister desmascará-las, denunciar suas verdades supostamente universais como verdades parciais que sustentam interesses egoístas de classe. É para o fortalecimento do lado subalterno dessa luta, em suas heroicas tentativas de se organizar como classe e promover a construção de uma concepção de mundo própria, autônoma e anticapitalista, que se apresenta esse mais novo e brilhante livro que empreende, antes de tudo, a tradução do pensamento de Antônio Gramsci para a realidade da luta de classes nacional.