SONHO E PESADELO: Conexões do Surrealismo e do Grotesco Amanda Nascimento UDESC Resumo: O presente artigo define e compara os termos surrealismo e grotesco, destacando similaridades e diferenças, não apenas na questão visual, mas também conceitual. Trata também dos conceitos de belo e feio na arte e da importância de ambos para a afirmação de cada um. Palavras-chave: Surrealismo. Grotesco. Inconsciente. Onírico. Beleza. Abstract: The present paper evaluates and relates the surrealism and grotesque terms, accentuating its similarities and differences, not only in its plastic and set of themes matters, but also conceptually. Besides this, considers the beautiful and ugly in art and the importance of both for the affirmation of each one. Key-words: Surrealism; Grotesque. Unconscious. Oniric. Beauty. VISÕES DE SONHOS O crítico de arte Herbert Read, na introdução ao quarto capítulo do livro História da Pintura Moderna, diz que ali se ocupará daqueles movimentos na arte moderna que, tirando proveito da liberdade oferecida pela fragmentação da imagem perceptual, passaram a desenvolver formas de arte determinadas pela imaginação ou pela fantasia. Em nota de rodapé o autor diz ainda que, em textos anteriores, relaciona imaginação com o que se conhece em Psicanálise por pré-consciente e fantasia com o conceito de inconsciente. Tal capítulo é sobre Futurismo, Dadaísmo e Surrealismo. Nesse caso, ele diz que seria mais correto usar o termo imaginação deixando o termo fantasia para artistas como Picasso, Klee e Kandinsky. Porém, deixa claro que o limite entre os termos é tênue e difícil de distinguir, pois suas definições são vagas e flutuantes. Falando de De Chirico, pintor ligado ao Dadaísmo, na fase onde se une a Carlo Carrà para formar uma escola metafísica, Read define as obras como paisagens românticas (...) embora usando mais imagens oníricas desconexas e desconcertantes. Ainda sobre essa fase do artista, ele diz que as imagens eram estruturadas em figuras grotescas, um pouco à maneira dos frutos e plantas monstruosos de Giuseppe Arcimboldo. 38
Também na obra de Chagall, Read encontra aspectos oníricos quando o pintor cria arranjos irracionais de objetos naturais, com ausência de lógica. É onde sua fantasia particular, aliada à fantasia de De Chirico, abre caminho para os domínios do inconsciente, raramente vistos na história da arte até então. Com o fim próximo do Dadaísmo, alguns artistas se dispersaram e outros se reuniram. André Breton - poeta, escritor, crítico e psiquiatra francês - conhecia a Psicanálise e via em seus conceitos a possibilidade de reorientação que o Dadaísmo precisava. Em 1919, Breton e Philippe Soupault fundaram a revista Littérature, homenageando Guillaume Apollinaire ao utilizar o termo Surrealismo para definir o novo estilo de escrita espontânea que estavam experimentando. O método usado nessa escrita era o automatismo psíquico, que consistia num estado puro, mediante o qual se propunha transmitir verbalmente, por escrito, ou por qualquer outro meio o funcionamento do pensamento; ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral. Mais tarde, em 1924, o Primeiro Manifesto Surrealista é escrito por Breton e define alguns princípios do movimento artístico-literário, tais como a isenção da lógica (já usada por Chagall) e a adoção de uma realidade superior considerada maravilhosa. Ele diz: Digamo-lo claramente de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo; qualquer tipo de maravilhoso é belo, só o maravilhoso é belo. (...) Desde cedo as crianças são apartadas do maravilhoso, de modo que, quando crescem, já não possuem uma virgindade de espírito que lhes permita sentir extremo prazer na leitura de um conto infantil. Acredito que aqui o termo maravilhoso seja usado em sinônimo de fantástico. Breton também acreditava que as imagens simbólicas libertadas nos sonhos e em suas análises poderiam ser utilizadas com fins poéticos. A extrema diferença de importância, que, aos olhos do observador ordinário, tem os acontecimentos de vigília e os do sono sempre me encheu de espanto. (...) Talvez o meu sonho da noite passada tenha dado prosseguimento ao da noite anterior e continue na próxima noite com rigor meritório. 39
Ainda no Primeiro Manifesto, Breton define o Surrealismo da seguinte forma: Puro automatismo psíquico, pelo qual se pretende expressar, verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira, o processo real de pensamento. Ou seja, em sua criação, o movimento era poético. Após sua própria definição, ele cita ainda uma outra: o Surrealismo assenta numa convicção da realidade superior de certas formas de associação até agora negligenciadas, da onipotência do sonho, do jogo desinteressado do pensamento. Tende, definitivamente, a destruir todos os outros mecanismos psíquicos e a substituílos na solução dos principais problemas da vida. Dessa forma, ele amplia a praticamente qualquer tipo de manifestação, os conceitos do movimento. Em 1925, Breton anuncia a adesão do Surrealismo ao ideal comunista. Alguns mais envolvidos, outros menos, porém conseguiu assinaturas de diversos artistas de renome como Dalí, Tanguy, Eluard, Ernst, entre outros. Já no Segundo Manifesto Surrealista (1930), ele continua convicto da importância do afastamento da lógica: (...) se pelo Surrealismo rejeitamos a idéia de que só são possíveis as coisas que existem, se declaramos por um caminho que existe, chega-se àquilo que não existia ; se não temos medo de insurgir-nos contra a Lógica (...) e do uso das imagens oníricas como método de criação artística enfatizando o papel do inconsciente na atividade criativa. Em 1936, ele separa o movimento em duas épocas de igual duração: a intuitiva, que seria caracterizada pela crença na onipotência do pensamento e na possibilidade do mesmo libertar-se por meio de seus próprios recursos; e outra mais racional. De certa forma, sempre existiram duas tendências distintas e contraditórias que eram definidas, uma pela contraposição das categorias estéticas, descendente direta do Dadaísmo; e outra pela dominância de critérios estéticos apesar da originalidade. Uma outra cisão também dividiu os surrealistas: uma parte dos artistas trabalhava com o chamado Surrealismo Orgânico, como: Miró, Hans Arp e André Masson em obras mais abstratas resultado do automatismo rítmico (pelo qual se pintava seguindo o impulso gráfico) e outros - Dalí, Magritte, Chagall e Marx Ernst - usavam o automatismo 40
simbólico (a fixação das imagens oníricas ou subconscientes de maneira natural). Alguns artistas alternaram entre ambas. Como elo entre essas tendências estava Marcel Duchamp. Com seu desdém pela tese sempre se recusou a qualquer tipo de preconceito e delimitação estética chegando a ser considerado um antiesteticismo. Diversas técnicas surgiram a partir de então: collage, frottage, entre outras. Também temáticas onde plantas e animais imaginários se misturavam a formas pseudo-orgânicas numa criação plástica arbitrária. Mas a beleza continuava a surgir, e o desprezo mais resoluto pelas convenções da arte resultou frequentemente em harmonias inconscientes, disse Read sobre a produção de então. Seria um antiesteticismo ou um esteticismo involuntário? Obras feitas a partir de disposição ao acaso ou conforme a sua lei ainda assim resultavam em imagens com elevado grau de sensibilidade plástica, levando a crer que as leis do acaso e da beleza fossem mais próximas do que se pensava. Ainda que de forma inconsciente. Identificado como símbolo do Surrealismo mais pelo público do que pelos próprios fundadores, Salvador Dalí usou a teatralidade e a dramaticidade de seu comportamento para valorizar sua obra de maneira que, através da contradição e da ambigüidade, pudesse conceitualizar a super-realidade que retratava. Sua atividade crítico-paranóica incomodava alguns artistas e autores que o classificavam como academicista e classicista por usar de técnicas consideradas ultra-retrógradas. O artista usava a pintura figurativa e realista para retratar visões oníricas de seu universo inconsciente. Também retrógradas, poderiam ser chamadas, nesse contexto, as técnicas utilizadas por Frida Kahlo. Auto-retratos, naturezas-mortas, paisagens e retratos são os temas de suas obras. Porém, apesar disso, ela foi a primeira artista mexicana do século XX a ter uma obra comprada pelo Museu do Louvre, em Paris, após uma exposição organizada por Breton e intitulada Mexique, onde expôs 17 quadros junto a fotografias do cotidiano mexicano, esculturas pré-colombianas e objetos populares do país. Avessa a rótulos e à associação direta a movimentos artísticos, ela nunca aceitou o título de surrealista. Mesmo 41
assim, era e é frequentemente citada quando se trata de tal assunto. Um ponto de conexão e uma diferença importante são inegáveis: em suas pinturas, ela expunha seus sentimentos dando uma atmosfera onírica aos quadros. Seus melhores e seus piores momentos eram escancarados nas telas, porém de forma EXTREMAMENTE consciente. Os surrealistas não representaram a realidade de modo subjetivo, pelo contrário, tentaram objetivar seu mundo interno. Para Breton, o Surrealismo foi um esforço heróico de conter e definir as energias demoníacas libertadas do inconsciente pelo automatismo e outros processos paranóicos, como afirma Read. Foi uma tentativa romântica de romper com as coisas como são, a fim de substituí-las por outras, em plena atividade, em processo de nascimento. Foi uma fase na qual, pela liberdade e em seu nome, conseguiu-se um avanço até então improvável na maneira de criar e de perceber as imagens. VISÕES DE PESADELO Já o grotesco não teve início definido e permanece, até hoje, talvez mais contemporâneo do que nunca. O que se pode definir então é a origem da palavra. Sendo assim, voltamos a 1480. A cidade é Roma, na área que hoje é conhecida como Rione Monti, onde se encontra o Oppius Parque. Naquele tempo um jovem caiu através de uma fenda na encosta do Monte Aventino e foi parar numa caverna (ou gruta grotta em italiano) repleta de figuras pintadas nas paredes. Já no Renascimento, com a arte em efervescência, artistas de diversos lugares visitaram o local descendo à caverna em tábuas presas a cordas para ver de perto tal descoberta, entre eles Pinturicchio, Raphael e Michelangelo. A partir disso, foram feitas diversas escavações e a Domus Áurea (antigo palácio romano construído pelo Imperador Nero entre 64 e 68 d. C.) foi encontrada. Essas pinturas possuíam um estilo jamais visto onde figuras humanas se mesclavam às gavinhas, galhos de árvores, flores e partes de animais e foi logo batizado de Grotesco. 42
Desde então a influência do novo estilo pôde ser vista em obras importantes como a encomenda feita a Pinturicchio pelo Cardeal Todeschini para decorar as abóbadas da Catedral de Siena com essas fantasias, cores e distribuição, che oggi chiamano grottesche como nos conta Kayser. Outro trabalho que teve a ornamentação grotesca como inspiração foram as loggie de Raphael no Vaticano. Realizado por volta de 1515, nele o artista utiliza molduras com figuras grotescas e desenhos clássicos no centro das obras. Visto por alguns como alegre, lúdico, leve e fantasioso (como Goethe em seu Dos Arabescos, sobre a obra de Raphael no Vaticano) e por outros como angustiante e obscuro (defensores de uma estética real, natural, baseada no mundo como ele é; alguns autores criticaram o grotesco por ele fugir da realidade, e transformar as formas da natureza num universo sinistro e lúgubre onde a ordem é deslocada), em 1556 o tradutor de Vitrúvio, Monsenhor Bárbaro, ao questionar as deformidades da natureza ali operadas, acaba por encontrar uma via de compreensão do grotesco, ao sugerir que se poderia denominar aquelas manifestações de sogni dei pittori (sonhos do pintor em italiano), sublinhando seu caráter imaginário. Em defesa do Grotesco, Victor Hugo escreve Do Grotesco e do Sublime, a princípio como prefácio de Cromwell e que, pela extensão que ganhou, foi publicado como livro. Nele, o autor francês diz: deveria ser feito, em nossa opinião, um livro bem novo sobre o emprego do grotesco nas artes. Poder-se-ia mostrar que poderosos efeitos os Modernos tiraram deste tipo fecundo contra o qual uma crítica estreita se encarniça ainda em nossos dias. Hugo defende a união harmoniosa de opostos como: o feio que existe ao lado do belo, o disforme ao lado do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz, o corpo com a alma, o animal com o espírito... para alcançar uma elevação da Arte e fugir do comum que, segundo ele, é seu inimigo. Diz ainda que: é da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno, tão complexo, tão variado nas suas formas, tão inesgotável nas suas criações, e nisto bem oposto à uniforme simplicidade do gênio antigo. Lembrando que o texto de Hugo data de 1827, aproximadamente sessenta anos antes do início do Movimento Moderno, pode-se considerar que 43
o escritor previu a chegada do Modernismo como continuidade do Romantismo do qual fazia parte, anunciando a rejeição do tradicionalismo e pregando a inovação em todos os campos da arte. Essa inovação consistia em contrapor opostos harmoniosamente de forma que um ressaltasse o outro, valorizando-os ao mesmo tempo em que mostrava uma realidade natural, não idealizada. Mas o que Hugo define como grotesco? Para entender o conceito de grotesco podemos entender o que considerava sublime já que colocou um em oposição ao outro. Sublime, segundo ele, é o que direciona o olhar para um mundo mais elevado, sobre-humano. Não é apenas o belo. Grotesco, então, é o que nos aparece como um mundo noturno, abismal, desumano. Não apenas o feio. É também monstruoso, disforme, horrível. SONHO, PESADELO E UM CASAMENTO PERFEITO Que relação teriam, então, o Surrealismo e o grotesco? O que têm em comum e o que os diferencia? Como ponto comum, pode-se salientar o inconsciente e, junto a ele, o aspecto onírico. O inconsciente, de forma bem resumida e simples, é o conjunto de processos e fatos psíquicos que são exteriores ao âmbito da consciência e impossíveis de trazer à memória, mas que podem manifestar-se nos sonhos, em estados depressivos e neuróticos, ou quando a consciência não está desperta. Então as visões dos sonhos e sua interpretação, a fantasia, o imaginário que se apresenta em contraste com o mundo real são elementos presentes em ambos. O mundo natural não idealizado, como dito anteriormente. Corações para fora do corpo, relógios gigantes derretendo, homens que nascem de ovos, tigres saindo da boca de um peixe, uma cabeça de mulher com chifres e corpo de veado repleto de flechas, qualquer desses exemplos poderia perfeitamente estar descrevendo uma imagem grotesca, e são todos de obras surrealistas. Seria correto dizer, então, que o Surrealismo é a representação do mundo dos sonhos. E o grotesco, por seu aspecto nebuloso, disforme, absurdo, alheado e desconectado, a representação de um pesadelo. 44
A questão da beleza 1, da feiúra, ou da não-beleza, também permeia os dois. Se no Surrealismo uma parte era adepta da abolição de padrões estéticos (mesmo que esses continuassem a aparecer nas obras numa harmonia inconsciente ou não intencional), outra era a favor de que alguns critérios estéticos fossem mantidos. No grotesco, apesar de elementos considerados monstruosos, disformes, feios, horripilantes, entre outros, há nele sempre uma beleza. Conforme Vargas, as imagens grotescas num primeiro passar de olhos apresentam-se agradáveis. Ele diz: Quando se olha uma imagem grotesca, o prazer e a felicidade se apresentam ao primeiro instante. Mas ao analisarmos com atenção podemos ver que o improvável, o indesejado e o incômodo ali se encontram. A beleza é, portanto, algo que se apresenta à revelia dos criadores de imagens surrealistas e grotescas. Também a feiúra, ou não-beleza (numa alusão ao quadrado semiótico de Greimas), fazem parte de ambos. Seja num elemento inesperado, seja na deformidade, ou em algum aspecto híbrido parte homem, parte animal, parte planta, o estranhamento também é comum tanto ao grotesco quanto ao Surrealismo. É com a feiúra também que se faz uma valorização do belo através do contraste de ambos, que ao mesmo tempo em que os diferenciam, os afirmam enquanto tal. Aqui numa referência à oposição semântica de base, também de Greimas, que será tratada em uma próxima oportunidade, pode-se ver que quando se fala de algo, é preciso que existam dois. Pois cada coisa só existe em relação a uma outra. Portanto, a beleza só existe em comparação à feiúra, o bem em relação ao mal, o alto em relação ao baixo e assim por diante. Ambas as categorias estéticas usam o contraste como elemento constitutivo principal e como fio condutor das obras, seja pelo contraste entre belo x feio, real x imaginário, consciente x inconsciente. Pode-se concluir então, que mesmo o belo sendo considerado o ideal maior desde a antiguidade clássica, ele só pode existir se o feio também estiver presente, num casamento onde um não anula o outro, mas o realça. Ou seja, a harmonia perfeita entre opostos, o casamento perfeito, se dá através do contraste. 1 Como os conceitos de belo e feio implicam em juízo de valor, aqui nos referimos ao conceito clássico de beleza onde simetria, harmonia, equilíbrio, entre outros, são dominantes. 45
Referências BRETON, A. Manifesto do Surrealismo. Paris, 1924 (acessado em abril de 2008 no endereço eletrônico: http://www.robertexto.com/archivo5/breton_surr.htm/). Segundo Manifesto do Surrealismo. Paris, 1929 (acessado em abril de 2008 no endereço eletrônico: http://pt.wikipedia.org/wiki/manifesto_surrealista). HUGO, V. Do Grotesco e do Sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988. Página 8. KAYSER, W. O Grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva, 1957. Página 18. READ, H. História da Pintura Moderna. São Paulo: Círculo do Livro, 1974. VARGAS, A. (http://www.casthalia.com.br/antoniovargas.htm) acessado em abril de 2008. A autora: Aluna regularmente matriculada no Mestrado em Artes Visuais da UDESC (2007-2009). Pós-graduada em Marketing e Propaganda pela UEL (2001). Bacharel em Design Gráfico pela UNOPAR (1997-2000). Atuação profissional principalmente na área de Identidade Visual, entre outras. 46