Os Resultados dos Registros Internacionais de Insuficiência Cardíaca Descompensada se Aplicam aos Pacientes Brasileiros?

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Transcrição:

165 Os Resultados dos Registros Internacionais de Insuficiência Cardíaca Descompensada se Aplicam aos Pacientes Brasileiros? Are the Findings of International Records on Decompensated Heart Failure Applicable to Brazilian Patients? Artigo Original 5 Eliza de Almeida Gripp, Bruno Tedeschi, Ana Luiza Ferreira Sales, Marcella de Agostini Iso, Pedro Pimenta de Mello Spineti, Marcel Coloma, Anna Luiza Rennó Marinho, Juliana Brenande de Oliveira Brito, João Vítor Dessa Pereira, Marcelo Iorio Garcia, Luís Augusto Feijó, Sérgio Salles Xavier Resumo Fundamentos: Conhecer o perfil clínico-ecocardiográfico, a abordagem e a morbimortalidade da insuficiência cardíaca descompensada (ICD) é de fundamental importância. Resultados de registros internacionais (RI) têm sido publicados, mas não se sabe se refletem a realidade brasileira. Objetivo: Comparar os resultados do RI ADHERE (RA) com uma coorte de pacientes com ICD internados em hospital universitário (HU). Métodos: Estudo retrospectivo, observacional. Foram analisadas 332 internações consecutivas por ICD, no período de 01/01/06 a 31/12/07. Foram comparados o perfil clínico e ecocardiográfico, a abordagem diagnóstica e terapêutica e a mortalidade hospitalar (MH). Na análise estatística foram utilizados o teste do qui-quadrado e o teste t de Student. Resultados: Os pacientes do HU apresentaram idade inferior (63,5 anos vs 72 anos p<0,0001), menos etiologia isquêmica (39% vs 57,5% p<0,0001) e mais IC por disfunção sistólica (80% vs 51,3% p<0,0001). Na admissão, a PA sistólica foi inferior (121,8mmHg vs 144mmHg ) e a creatinina mais elevada (1,69mg/dl vs 1,0mg/dl) nos pacientes do HU (p<0,0001). Uso de inotrópico foi mais frequente no HU (12% vs 8% p=0,002) e vasodilatador foi mais frequente no RA (30% vs 6% p<0,0001). A MH foi mais elevada no HU (6,6% vs 3,2% p=0,0006), bem como a duração da hospitalização (17,9 dias vs 4,4 dias p<0,0001). Na alta hospitalar a prescrição de betabloqueador foi menor no HU (80% vs 73% p=0,003). Conclusões: Nesta coorte de pacientes com ICD em HU observaram-se diferenças significativas em relação ao RA. Estes dados confirmam a necessidade de criação de um registro brasileiro de ICD. Palavras-chave: Insuficiência cardíaca descompensada, Morbimortalidade, Tratamento, Perfil clínico Abstract Background: Studying clinical and echocardiographic profiles, diagnostic approaches and morbi-mortality for decompensated heart failure (DHF) is of vital importance. The findings of international records (IR) have been published, but it is not known if they reflect the Brazilian reality. Objective: To compare ADHERE IR (AR) findings with a cohort of patients with DHF admitted to a university hospital (UH) in Brazil. Methods: Through a retrospective observational study, 332 consecutive hospital admissions for DHF were analyzed during the period between January 1, 2006 and December 31, 2007. The clinical and echocardiographic profiles were compared, as well as the diagnostic and therapeutic approaches and in-hospital mortality (HM). The chi-square and Student t tests were used for the statistical analysis. Results: The patients at the UH were younger (63.5 years vs 72 years p<0.0001), with less ischemic etiology (39% vs 57.5% p<0.0001) and more HF caused by systolic dysfunction (80% vs 51.3% p<0.0001). On admission, systolic BP was lower (121.8mmHg vs 144mmHg) and creatinine higher (1.69mg/dl vs 1.0mg/dl) among patients in the UH (p<0.0001). Inotropic use was more frequent in the UH (12% vs 8% p=0.002), while vasodilator use was more common in the AR (30% vs 6% p<0.0001). The HM was higher in the UH (6.6% vs 3.2% p=0.0006), with longer hospital stays (17.9 days vs 4.4 days p<0.0001). On release from hospital, there were fewer beta-blocker prescriptions at the UH (80% vs 73% p=0,003). Conclusions: Significant differences were noted in this cohort of patients with DHF at a UH, compared to the AR. These data confirm the need to establish Brazilian records for DHF. Keywords: Decompensated heart failure, Morbimortality, Treatment, Clinical profile Instituto do Coração - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil Correspondência: elizagripp@yahoo.com.br Eliza de Almeida Gripp Travessa Soledade, 25 ap. 411 bloco A - Praça da Bandeira - Rio de Janeiro (RJ), Brasil CEP: 20270-120 Recebido em: 04/06/2009 Aceito em: 27/06/2009

166 Gripp et al. Introdução A insuficiência cardíaca descompensada (ICD) é atualmente um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo devido à sua alta incidência, elevada morbimortalidade e altos custos diretos e indiretos. Nos Estados Unidos (EUA) é responsável por cerca de 1 milhão de hospitalizações por ano e se constitui na principal causa de internação hospitalar na população com mais de 65 anos de idade. 1,2,3 No Brasil, dados recentes do Datasus revelam que em 2007 ocorreram 293.473 internações por ICD, responsáveis por 2,59% das internações hospitalares, sendo a segunda causa clínica mais frequente de internação, consumindo 3,05% do total de recursos financeiros. A mortalidade em pacientes com ICD é elevada, tanto durante quanto após a hospitalização, e as taxas de reinternação por novo episódio de descompensação atingem 50% em seis meses. 4 Nos últimos anos, criaram-se registros internacionais e multicêntricos com o objetivo de identificar as características clínicas e demográficas, a abordagem diagnóstica e terapêutica e a evolução dos pacientes hospitalizados com ICD, fornecendo informações mais abrangentes e representativas do que as disponíveis nos ensaios clínicos. 5 Esses dados permitem conhecer as tendências temporais no manuseio da ICD, elaborar modelos preditivos de mortalidade e complicações e promover melhora na qualidade da abordagem desses pacientes. O Acute Descompensated Heart Failure National Registry (ADHERE), 5 desenvolvido nos EUA, é o maior registro internacional de IC, com diversas publicações nos últimos anos. Seus resultados, no entanto, refletem a realidade americana e não se sabe se são aplicáveis aos pacientes brasileiros. O objetivo do presente estudo é comparar os resultados do RI ADHERE (RA) com um registro de pacientes com ICD, internados em hospital universitário (HU). Metodologia Estudo retrospectivo, com coleta de dados realizada em prontuário eletrônico (Medtrack/Pront-HU). Foram incluídas no estudo 332 hospitalizações consecutivas por ICD, ocorridas no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) em um período de 24 meses (01/01/2006 a 31/12/2007). A identificação dos casos também realizou-se através de prontuário eletrônico, por meio de busca pelo código internacional de doenças (CID) de insuficiência cardíaca (I-50 e suas variações e I-11) no sumário de alta. Utilizou-se a 10ª revisão do CID. Depois de identificado o CID de alta, as informações referentes à internação foram revistas com o objetivo de confirmar o diagnóstico de IC descompensada como causa de internação. O critério adotado para esse diagnóstico foi o recomendado pela Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC). 6 Esse critério requer a presença de sintomas e/ou sinais de IC associada à evidência objetiva de alteração da função cardíaca e/ou alteração estrutural que justifique o quadro. Em casos de dúvida, o diagnóstico deve ser confirmado pela resposta ao tratamento da IC ou por evidência ecocardiográfica de aumento da pressão de enchimento. Por utilizar avaliação objetiva da função cardíaca na definição de IC, esse critério parece mais adequado para ser aplicado em estudos retrospectivos do que os critérios de Framingham ou Boston, que dependem de informações mais detalhadas de exame físico, nem sempre presentes nos prontuários, mesmo os eletrônicos. Nos raros casos em que a avaliação da função ventricular não estava disponível, os critérios de Framingham foram aplicados. No presente estudo, utilizou-se a mesma metodologia do registro ADHERE, cujos dados são organizados por hospitalizações individuais e não por pacientes individuais, sendo, portanto, possível que alguns pacientes tenham sido arrolados mais de uma vez no registro. Uma vez confirmado o diagnóstico de ICD, diversos dados foram coletados e armazenados em um banco de dados desenvolvido para ser um registro de ICD no HUCFF. As seguintes variáveis foram analisadas e comparadas com o registro ADHERE: idade, sexo, comorbidades (hipertensão arterial sistêmica, fibrilação atrial, insuficiência renal crônica, doença pulmonar obstrutiva crônica); etiologia da IC; pressão arterial e dados laboratoriais admissionais (ureia, creatinina, sódio, hemoglobina); tratamento utilizado para compensação, prescrição na alta hospitalar, tempo de internação e mortalidade hospitalar. Adotou-se o mesmo ponto de corte do registro ADHERE para definir IC por disfunção sistólica: fração de ejeção (FE) no ecocardiograma durante a admissão ou em ecocardiograma prévio menor que 40%. Os dados do registro ADHERE utilizados para a comparação foram publicados em 2007 e são referentes a 159168 hospitalizações ocorridas em 285 hospitais americanos, no período de janeiro 2002 a dezembro 2004. Para a comparação do tratamento e da mortalidade hospitalar foram utilizados os dados referentes ao último trimestre de 2004 do registro

167 ADHERE, período mais próximo ao registro do HUCFF. Para a análise estatística utilizou-se o programa SPSS 15.0 para Windows. Na análise estatística univariada, as variáveis categóricas foram descritas por sua frequência e comparadas através do teste do qui-quadrado. As variáveis contínuas foram descritas através de sua média e desvio-padrão e comparadas através do teste t de Student para amostras independentes. O nível de significância adotado foi de 5%. Resultados A análise comparativa das características demográficas e das comorbidades dos pacientes do HU e do registro ADHERE está descrita na Tabela 1. Em comparação com o registro ADHERE, a população do HU foi, em média, cerca de 10 anos mais jovem (63,5 anos vs 72 anos), com predomínio do sexo masculino. A história de HAS foi mais comum no estudo norte-americano, assim como o percentual de pacientes com doença arterial coronariana, insuficiência renal crônica e doença pulmonar obstrutiva crônica. Por outro lado, fibrilação atrial foi mais frequente no HU. A Tabela 2 descreve as variáveis clínicas e exames complementares de admissão. Observa-se que a pressão arterial sistólica foi inferior e os níveis de ureia e creatinina significativamente mais elevados nos pacientes do HU. Em relação ao tratamento utilizado (Tabela 3), o uso venoso de inotrópico foi mais frequente no HU (12% vs 8% p=0,002) e vasodilatador venoso foi mais frequente no registro ADHERE (30% vs 6% p<0,0001). Na alta hospitalar, a prescrição de betabloqueador foi menor (80% vs 73% p=0,003) e a de espironolactona foi maior no HU. A mortalidade hospitalar foi significativamente mais elevada no HU (6,6% vs 3,2% -p=0,0006 OR=2,1 IC95%: 1,3-3,4), bem como a duração da hospitalização (17,9 dias vs 4,4 dias p<0,0001). Tabela 1 Características demográficas e comorbidades dos pacientes do ADHERE e do HU Variável ADHERE HU Valor p Idade* (anos) 72,4 (14,1) 63,5 (13,7) <0,0001 Sexo masculino (%) 48,0 56,0 0,004 Fibrilação atrial (%) 31,0 42,0 <0,0001 DAC (%) 57,5 39,0 <0,0001 DPOC (%) 31,0 10,0 <0,0001 HAS (%) 74,0 68,0 0,01 IRC (%) 30,0 22,0 0,001 *média (desvio-padrão) DAC=doença arterial coronariana; DPOC=doença pulmonar obstrutiva crônica; HAS=hipertensão arterial sistêmica; IRC=insuficiência renal crônica; HU=hospital universitário; ADHERE=Acute Descompensated Heart Failure National Registry Tabela 2 Variáveis clínicas e exames complementares de admissão Variável ADHERE HU Valor p Média Desvio-padrão Média Desvio-padrão FE 38,0 17,0 35,0 14,0 0,05 FE<40% (%) 51,0 80,0 <0,0001 PAS 144,0 33,0 122,0 23,0 <0,0001 PAD 78,0 20,0 74,0 15,0 0,001 Creatinina 1,0 1,3 1,7 1,7 <0,0001 Ureia 32,0 21,0 66,0 40,0 <0,0001 Sódio 138,0 5,0 137,0 5,0 <0,0001 Hemoglobina 12,3 2,4 12,5 2,3 0,15 FE=fração de ejeção; PAS=pressão arterial sistólica; PAD=pressão arterial diastólica; HU=hospital universitário; ADHERE=Acute Descompensated Heart Failure National Registry

168 Gripp et al. Tabela 3 Medicações em uso no último quarto do ADHERE e na coorte HU Variável ADHERE (%) HU (%) Valor p IECA/BRA pré* 62 75 <0,0001 Beta pré* 69 43,5 <0,0001 Espirono pré* 21 45 <0,0001 Inotrópico EV 8 12 0,002 Vasodilatador EV (NTG ou nesiritide) 30 6 <0,0001 IECA/BRA alta* 83 82 0,74 Beta alta** 80 73 0,003 Espirono alta* 33 65 <0,0001 IECA/BRA=inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou bloqueadores do receptor de angiotensina-2; Beta=betabloqueador; Espirono=espironolactona; NTG=nitroglicerina; pré=uso antes da internação hospitalar; alta=prescrição na alta hospitalar; HU=hospital universitário; EV=endovenoso; ADHERE=Acute Descompensated Heart Failure National Registry *considerados apenas os pacientes com disfunção sistólica **considerados apenas os pacientes com disfunção sistólica e sem contraindicações ao uso de betabloqueadores Discussão Os resultados do presente estudo mostram que existem diferenças significativas entre os pacientes com insuficiência cardíaca descompensada internados no HUCFF e os descritos no registro ADHERE. Fundamentalmente os pacientes do HU são mais jovens, com predomínio do sexo masculino, com menos etiologia isquêmica, menos comorbidades (incluindo HAS) e com um percentual muito maior de insuficiência cardíaca por disfunção sistólica. Estudos prévios demonstram uma elevada prevalência (em torno de 50%) de função sistólica preservada (FE>40%) em pacientes hospitalizados com insuficiência cardíaca descompensada. 7,8 Nesses estudos, os pacientes com função sistólica preservada são tipicamente mais idosos, mais frequentemente do sexo feminino e com elevada prevalência de hipertensão arterial sistêmica. É possível que, pelo menos em parte, as diferenças demográficas e de comorbidades expliquem a pequena prevalência de função sistólica preservada na presente casuística: os pacientes aqui estudados são significativamente mais jovens, com menos HAS e com percentual inferior de mulheres. Outra possível explicação seria a subnotificação do diagnóstico de insuficiência cardíaca na alta hospitalar em pacientes com função sistólica preservada. Parte dos pacientes admitidos com quadro clínico compatível com insuficiência cardíaca poderia ter esse diagnosticado descartado equivocadamente diante de uma fração de ejeção normal ao ecocardiograma. A dificuldade no diagnóstico de insuficiência cardíaca diastólica é bem conhecida, principalmente em pacientes com fibrilação atrial, nos quais a avaliação objetiva da função diastólica ao ecocardiograma está frequentemente prejudicada. 9 A não disponibilidade de dosagem sérica de peptídeos natriuréticos no HUCFF é outro fator que pode ter dificultado o diagnóstico de insuficiência cardíaca nesses pacientes. Outra diferença significativa encontrada foi na abordagem terapêutica da descompensação. A utilização de inotrópicos venosos foi maior no HU enquanto o uso de vasodilatadores (nitroglicerina ou nesiritide) venosos foi bem mais frequente no registro ADHERE. Isso provavelmente reflete diferenças no modelo de IC nas duas populações: inotrópicos são utilizados apenas na IC com disfunção sistólica, que foi muito mais frequente no HU. Por outro lado, vasodilatadores são utilizados com frequência na IC diastólica, principalmente quando acompanhada de elevação da pressão arterial sistêmica, e esses dois aspectos foram mais prevalentes no registro ADHERE. Vale ressaltar que nesiritide não é ainda disponível no Brasil. Em relação à taxa de prescrição da medicação recomendada para tratamento ambulatorial da IC em pacientes com disfunção sistólica também foram encontradas diferenças significativas: betabloqueador foi menos utilizado na prescrição pré-alta dos pacientes do HU, enquanto espironolactona foi menos prescrito para os pacientes do registro ADHERE. Não houve diferenças significativas em relação ao uso de inibidores de enzima de conversão da angiotensina ou de bloqueadores do receptor da angiotensina-2. Uma possível explicação para a subutilização dos betabloqueadores no HUCFF seria o baixo poder aquisitivo da população, o que inviabilizaria acesso aos betabloqueadores recomendados para uso na IC (carvedilol, metoprolol ou bisoprolol) que não estão disponíveis na rede pública ou nas farmácias populares. Finalmente, tanto a mortalidade hospitalar quanto a duração da internação foram significativamente maiores nos pacientes do HUCFF. A mortalidade mais elevada pode ser decorrente de um perfil de maior risco dos pacientes do hospital universitário. Os principais

169 preditores prognósticos definidos pelo próprio registro ADHERE, em publicação prévia, são mais prevalentes no HU, incluindo níveis mais elevados de ureia e de creatinina e níveis de pressão arterial sistólica mais baixas na admissão. A maior prevalência de IC por disfunção sistólica também pode ser um determinante de maior mortalidade hospitalar. 10 Os resultados do presente estudo são, em parte, comparáveis aos do projeto EPICA Niterói, estudo prévio e pioneiro no Brasil, publicado em 2004 11. No referido projeto, foram analisados 203 pacientes com insuficiência cardíaca descompensada, 98 internados em hospitais públicos e 105 em hospitais privados. Os pacientes dos hospitais públicos apresentaram média de idade (61±11 anos) semelhante à do presente estudo e taxa de mortalidade hospitalar (9%) e duração da internação (12,6 dias) superiores aos do registro ADHERE. Dados sobre função ventricular e tratamento utilizado na compensação e na prescrição de alta hospitalar não foram relatados no projeto EPICA e, portanto, não podem ser comparados com os resultados aqui descritos. Em conclusão, nesta série de pacientes consecutivos com insuficiência cardíaca descompensada internados no HUCFF foram observadas diferenças significativas em relação aos resultados descritos pelo registro ADHERE. Estes dados confirmam a necessidade de criação de um registro brasileiro que permita um conhecimento mais amplo do perfil clínicoecocardiográfico, da abordagem diagnóstica e terapêutica e da morbimortalidade da insuficiência cardíaca descompensada no Brasil. Limitações Trata-se de um estudo retrospectivo baseado na revisão de prontuário eletrônico e suas principais limitações devem-se ao registro incompleto e não padronizado de dados. O sistema de prontuário eletrônico no HUCFF ainda não foi implantado no serviço de emergência, portanto os exames laboratoriais e sinais vitais considerados basais referem-se a exames e sinais vitais da admissão dos pacientes nas unidades de internação. Esses resultados podem ter sido influenciados pelo tratamento iniciado na emergência. Além disso, existe uma grande diferença entre as duas casuísticas comparadas (HU e registro ADHERE) e, em decorrência do enorme número de pacientes do estudo ADHERE, pequenas diferenças sem significado clínico podem atingir significância estatística. Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica O presente estudo não está vinculado a qualquer programa de pós-graduação. Referências 1. Bonneux L, Barendregt JJ, Meeter K, et al. 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