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Transcrição:

RESENHA DE LIVROS RESENHAS DE LIVROS DE LIBERA, A. L art des généralités. Théories de l abstraction. Paris, Aubier Philosophie,, 703 p. volume 4 Editor de Roger Bacon, de Ulrich de Estrasburgo e de diversos sophismata anônimos do século XIII, tradutor de Tomás de Aquino, de Averróis e de Mestre Eckhart, autor de diversas obras sobre a Idade Média, Alain de Libera é hoje um dos mais renomados historiadores da filosofia medieval. Em L art des généralités, o A. discute temas de história e sobre a história da filosofia. A tese historiográfica é clara e original : reabilitar Alexandre de Afrodísia, pensador que ele considera o grande ausente da filosofia medieval. Para defendê-la, o A. adota uma estratégia não menos original que consiste no levantamento de um fundo comum de argumentos e de princípios permitindo estabelecer a influência de Alexandre sobre Abelardo (via Boécio) e de reconstruir um diálogo imaginário entre Avicena, Abelardo e Boécio (via os textos de Alexandre preservados em árabe). A esta tese, o A. acrescenta uma outra cujo interesse ultrapassa o círculo restrito dos especialistas no período medieval. O A. defende uma concepção heideggeriano-foucaultiana da história, ou seja, uma concepção relativista, holista e descontinuista acerca da atividade do historiador da filosofia. Nos quatro capítulos que compõem a obra, o A. retoma um problema que já o tinha ocupado em La Querelle des Universaux (Paris, Ed. du Seuil, 1996) : as disputas medievais acerca dos universais. Mas, desta vez, as análises são restritas apenas a quatro momentos chaves, personificados nas figuras de Alexandre, Boécio, Abelardo e Avicena. Livre da obrigação de percorrer um número bastante grande de pensadores, o A. encontra o espaço necessário para desenvolver seu estilo característico : a precisão no controle das fontes e na reconstrução dos dossiês ; a engenhosidade de argumentos destinados a provar a origem histórica de uma teoria ; o meticuloso julgamento de interpretações acerca de um filósofo medieval à luz da recepção histórica de sua obra ; a insistência no modo de transmissão de uma idéia entre pensadores de diversos períodos e culturas. O ponto de partida do livro é uma tese da ontologia aristotélica : a recusa das formas platônicas separadas. Aristóteles, no entanto, admite um certo lugar para as formas universais em seu sistema, seja como objeto da ciência, seja como conceitos derivados de objetos particulares. Esse processo de derivação do universal a partir do singular, conhecido como teoria da abstração indutiva, ocupa Aristóteles em diversas obras, como a Metafísica, os Segundos Analíticos e, sobretudo, o De Anima. O destino dessa teoria entre os antigos comentadores gregos de Aristóteles é marcado pela relação entre as teorias sobre o modo de ser dos objetos matemáticos e sobre a abstração dos universais. É nesse cenário que surge a contribuição de Alexandre de Afrodísia, pensador cuja originalidade, sustenta o A., consiste em não [mais] interpretar os objetos matemáticos como universais, mas, ao contrário, 143

volume 4 144 em interpretar a produção dos universais de acordo com o modelo de abstração dos entes matemáticos (p. 45). Considerada no contexto de sua recepção, essa tese permite argumentar que, ao contrário do que comumente se afirma, Porfírio, em seus comentários às Categorias (2a 14-16 ), não critica Alexandre. Na verdade, é a ele que Porfírio deve os diversos argumentos para explicar a natureza das substâncias segundas. Ao fim das 130 páginas dedicadas ao filósofo de Afrodísia, o A. nos ensina ser preciso distinguir quatro maneiras de considerar a essência na obra de Alexandre : 1) particularizada em um indivíduo ; 2) nela mesma ; 3) enquanto comum ; 4) enquanto universal. A primeira característica afirma a necessária realização de uma essência em ao menos um indivíduo, tese que decorre do que o A. denomina o argumento da supressão e que consiste em mostrar que a supressão de todos os indivíduos de uma espécie acarreta a supressão da espécie. Quanto à comunidade e à universalidade, elas devem ser tomadas como acidentes da essência, ou seja, como a afirmação do que o A. chama a indiferença da essência a ser comum ou universal. Com essa designação, o A. procura salientar que Alexandre, de certo modo, antecipou Avicena, constituindo-se assim em uma de suas fontes. O qualificativo de certo modo é importante, pois a teoria aviceniana sobre os acidentes da essência engloba também a sua realização em um particular, tese que vai além do que afirma Alexandre. O A. encerra o capítulo discutindo a orientação teórica de Alexandre. A literatura contemporânea divide-se sobre o ponto. Alguns especialistas consideram-no realista, outros nominalista. A posição do A. é conciliadora : sob um ponto de vista, Alexandre sustenta uma teoria nominalista do universal, pois o gênero universal é apenas um termo (um nome) predicado de vários (p. 152). De outro, Alexandre é realista, na medida em que suas definições tratam de coisas que são ditas comuns aos particulares. Uma observação deve ser feita acerca das formalizações utilizadas pelo A. no primeiro capítulo. Buscando formalizar a frase : a supressão das substâncias primeiras acarreta (com ela) a supressão dos gêneros (e das espécies) (p. 88), o A. propõe : ~ [( ai 1 ) & ( ai 2 ) & ( ai n )] ~( ag) Todavia, assim formalizada, a tese em questão diria que a supressão de uma única substância primeira (v. g., Sócrates) acarretaria a supressão do gênero correspondente (v. g., o humano), o que certamente não é o caso. Portanto, de acordo com as próprias convenções do A., teria sido preferível algo do tipo : [(~ ai 1 ) & (~ ai 2 ) & (~ ai n )] ~( ag) Entretanto, como o autor utiliza as formalizações apenas para ilustrar as suas análises, e não como parte integrante de seus argumentos, este detalhe não chega a comprometer a tese central do capítulo : apresentar Alexandre como a fonte de idéias que marcarão tanto o ocidente cristão quanto o mundo árabe.

RESENHA DE LIVROS A importância de Boécio no cenário medieval é bem conhecida. Suas traduções e comentários de Aristóteles e Porfírio, assim como as suas obras sobre o silogismo hipotético, marcaram a lógica medieval por um período que se estende até o século XII. Menos conhecidas, no entanto, são as suas fontes. Teria ele tido acesso direto a vários comentários gregos (tese de S. Ebbesen) ou teria conhecido apenas os escólios que acompanhavam a sua cópia grega do Organon (tese de J. Shiel)? A resposta oferecida pelo autor é conciliadora : Por que Boécio não poderia ter tido acesso simultaneamente aos manuscritos de Aristóteles acompanhados dos escólios e de uma cópia completa do Kata peusin? (p. 166). Esta solução possui vários méritos. O primeiro é o de permitir uma investigação sobre as dívidas de Boécio para com Alexandre e Ammonius sem o ônus de admitir uma leitura completa de suas obras. O segundo é o de permitir descrever o papel absolutamente marginal ocupado pelo pensador romano em sua época. Valendo-se da teoria neoplatônica dos três estados do universal (anterior ao múltiplo, no múltiplo e posterior ao múltiplo) como indício, o A. sustenta que Boécio a desconhecia completamente, ao passo que todos os seus contemporâneos gregos ou sírios discutiam-na amplamente. Afastado da corrente neoplatônica, resta a Boécio transmitir o modelo de Alexandre, ou seja, o da extensão da teoria da abstração matemática ao problema acerca da natureza dos universais. Assim, as doutrinas de Alexandre, mesmo permanecendo ignoradas quanto à sua verdadeira origem histórica, marcaram o debate sobre os universais até a segunda metade do século XII. Foi apenas com as traduções de Avicena que os Latini descobriram a teoria dos três estados do universal, tal como esta se encontra, por exemplo, em Alberto o Grande ou em Tomás de Aquino. Os comentários de Boécio a Porfírio são marcados pela construção do que o A. chama uma aporia acerca do universal. O ponto de partida da aporia é uma alternativa que pareceria determinar completamente a solução para o problema : i) os gêneros e espécies existem ou subsistem ou ii) são unicamente construções do pensamento ou do intelecto. O caráter aporético surge no momento em que Boécio fornece argumentos, tirados do próprio Porfírio e de Alexandre, para recusar os dois lados da alternativa. Em sua solução final, dependente em boa parte dos argumentos utilizados para construir a aporia, Boécio sustenta que os gêneros e as espécies são incorpóreos que existem nas coisas corpóreas e sensíveis, mas que são concebidos como distintos dos sensíveis, de tal maneira que a sua natureza pode ser contemplada e o seu caráter específico perfeitamente estabelecido. Ao problema de saber como se determina essa natureza passível de ser contemplada, Boécio responde pela distinção entre a abstração e a cogitatio collecta. A primeira teria por função isolar uma natureza comum, a segunda, a formação de um universal ou de um conceito coletivo. O A. conclui o capítulo afirmando que, apesar de ter sido o responsável pela transmissão das teses de Alexandre, Boécio não as transmitiu em sua versão mais clara nem mais precisa, sobretudo no que diz respeito à distinção entre o universal e a natureza comum. Na verdade, as oscilações de Boécio explicam em boa parte por que no século XII todas as teorias, sejam elas nominalistas ou realistas, podem pretender encontrar nele a autoridade que as atesta. volume 4 145

volume 4 146 Para Abelardo, assim como para todos os lógicos do século XII, a leitura e a interpretação de Boécio determinava de uma tal maneira os problemas que deveriam ser tratados e os limites de suas soluções que as escolhas ontológicas eram quase que conseqüência do método de leitura adotado. Neste sentido, a divisão filosófica entre Reales et Vocales/Nominales repousa sobre a maneira de interpretar os textos de Aristóteles concernentes ao gênero e à espécie. Obviamente isto não significa que a única razão para que afastava Abelardo do vocalismo de Roscelin de Compiègne ou do realismo de Guilherme de Champeaux fosse a maneira de ler Aristóteles. Havia ainda as razões filosóficas, mas que se manifestavam justamente na exegese dos textos. A clara delimitação dos textos de Aristóteles como o cenário das batalhas travadas pelos lógicos do século XII traz consigo um resultado inesperado : a descoberta de Alexandre de Afrodísia como o ponto de equilíbrio entre as teorias concorrentes. O A. insiste sobre a estratégia adotada por Abelardo, a qual consiste em acrescentar uma questão diretiva ao questionário de Porfírio : saber quais são as propriedades distintivas dos universais e se elas se aplicam somente às palavras ou se estendem até as coisas. A resposta do filósofo do Pallet caracteriza-se por ser uma retomada da tese de Alexandre, mas apresentada como dizendo respeito a nomes: estes deixam de ser universais quando as coisas a que se aplicam são suprimidas. O A. salienta ainda que a influência de Alexandre não se limita a Abelardo. Para atestar este ponto, o A. recorre novamente a Boécio, responsável pela transmissão de uma teoria cuja origem remonta a Alexandre : a teoria do sujeito único. Segundo essa teoria, há um único e mesmo sujeito para a singularidade e para a universalidade. O sujeito é singular quando ele é sentido nas coisas em que ele existe e universal quando ele é concebido pelo intelecto. Todavia, a determinação precisa da natureza desse sujeito único gerou, do ponto de vista histórico, três alternativas : 1) o sujeito é uma coisa considerada como anterior seja com respeito aos particulares a que ela se aplica, seja com respeito ao universal que lhe advém como acidente ; 2) o sujeito é o particular concreto (ou os vários particulares concretos), isto a que o particular se relaciona por acidente ; 3) o sujeito é o próprio universal considerado como isto a que o particular se relaciona por acidente. Buscando identificar os partidários de cada tese, o A. encontra em (3) a teoria da essência material de Guilherme de Champeaux e em (2) uma tese bastante próxima da teoria da collectio de Gauthier de Montagne. A identificação de (1) sendo mais difícil, o A. propõe aproximá-la da teoria aviceniana da indiferença da essência. O capítulo 4 versa sobre Avicena, pensador que já ocupou o A. em trabalhos anteriores. A importância concedida a esse filósofo de origem persa é manifesta mediante a sua comparação com as discussões de Frege sobre o terceiro reino, de Tarski sobre os objetos arbitrários, com o debate Locke- Berkeley sobre a abstração ou ainda com Meinong (apresentado desta vez em oposição a Avicena). Muito mais do que uma simples fonte da escolástica latina ou do que um pensador limitado à tradição muçulmana, Avicena é apresentado como um filósofo que utiliza de maneira original as fontes de origem grega para fazer frente aos teólogos de sua época. A prova de que Avicena pertence à tradição greco-alexandriana é obtida mostrando-se que na Metafísica V, 1, Avicena compartilha a tese de

RESENHA DE LIVROS Alexandre (defendida na Quaestio 2.7) sobre a acidentalidade do universal. O pensador árabe distancia-se do seu antecessor grego por afirmar que mesmo a particularidade é um acidente da essência. Avicena recusa, portanto, o famoso argumento da supressão e nisto repousa a sua originalidade. Mas como explicar que nenhum pensador antes dele realizou esse passo? A tese proposta pelo A. é novamente fruto do cuidado prestado ao controle das fontes. As nuanças das traduções árabes de Alexandre ofereciam uma gama de alternativas ausentes, por exemplo, na transmissão de Boécio. Foi explorando uma dessas alternativas que Avicena ofereceu a sua solução ao problema dos universais. Uma observação deve ser feita acerca da recepção de Avicena entre os ocidentais. Em uma célebre passagem da Metafísica V, 1, o filósofo árabe distingue três modos de considerar o universal, o segundo deles sendo : O universal se diz também da intenção (ma nâ) que é possível ser predicada de vários, não sendo requerida a existência destes em ato. O exemplo fornecido para ilustrar este ponto é a casa heptagonal. Ora, o A. sustenta que os Latini não possuiam nenhuma idéia do que é a casa heptagonal (p. 512), o que explica terem preferido usar a ave mitológica fênix para ilustrar a distinção. Agindo assim, acrescenta o A., os latinos abandonaram uma parte da classificação de Avicena, perdendo o seu sentido geral. Entretanto, se consultarmos a Summa de Mirabili Scientia Dei (Opera Omnia, t. 34, p. 7 11-17 ) de Alberto o Grande, veremos que este pensador reproduz a distinção aviceniana e mantém o exemplo «casa heptagonal». Além disto, o A. cita Nicolau de Cornouailles como autoridade representativa da apregoada mudança. No entanto, a autoridade de Alberto é bem mais eloqüente. A primeira tentativa, realizada no século XIII, de utilizar de maneira sistemática as idéias lógicas de origem árabe é exatamente a paráfrase de Alberto ao Organon, onde novamente encontramos a distinção aviceniana (Comentário à Isagoge de Porfírio, edição A. Borgnet, t. 1, p. 10b). Como é sabido, os comentários de Alberto ao Organon fornecem provas textuais sobre a existência de traduções de Avicena que hoje estão perdidas. Ademais, o número de citações por parte de pensadores dos séculos XIII e XIV atesta a grande circulação da Lógica de Alberto, podendo servir de melhor indício para a difusão de uma idéia. Após praticar por mais de 600 páginas sua concepção holística de história da filosofia, o A. dedica a conclusão para explicar em que medida o seu método de historiador participa de uma certa visão do trabalho filosófico. Para isto, o A. começa por recusar a chamada oposição entre as tradições continental e analítica como pertinente para caracterizar a diversidade do trabalho filosófico. Afirmações de que o comentário a textos não desempenha (leia-se não deve desempenhar ) nenhum papel na aprendizagem da filosofia e que é esta ausência que caracteriza a filosofia analítica como uma atividade democrática (tese de B. Smith) são vistas pelo A. como pertinentes para defender os interesses do mercado editorial, mas irrelevantes para elucidar a natureza da atividade filosófica. O problema que interessa e divide historiadores da filosofia e filósofos é de outra ordem: diz respeito à noção de verdade filosófica. O paradigma escolhido pelo A. é a tese de Pascal Engel segundo a qual é possível discutir uma verdade filosófica fora da obra ou do volume 4 147

volume 4 sistema a que ela pertence. O A. não recusa esta tese, pois não recusa a aplicação da noção de verdade em filosofia. Ele apenas pondera que não devemos aplicá-la em história da filosofia (p. 623). Contrariamente ao filósofo, o historiador da filosofia trata de teses filosóficas e não de verdades filosóficas. É por essa razão que o historiador move-se internamente a um complexo de teses ou de conceitos próprios a um determinado sistema filosófico. Na verdade, com essas afirmações o A. está retomando discussões anteriores tidas com C. Panaccio e H. Pasqua sobre o relativismo em filosofia. Dizer, como parece ter pretendido o A., que o sentido de uma tese somente pode ser determinado internamente a um sistema, implica a impossibilidade da prática do historiador. Visando evitar este perigo, o A. opta por uma noção mais fraca de relativismo. O historiador da filosofia não deve negar a continuidade semântica entre o que foi afirmado pelo autor medieval X e o enunciado p apresentado como tendo sido afirmado por X. Essa continuidade é mesmo pressuposta por uma atividade cujo objetivo é compreender do que trata um determinado enunciado e que busca reconstruir a sua gênese. Como apêndice, Marc Geoffroy propõe uma nova tradução de duas versões árabes da Quaestio 1.11a de Alexandre de Afrodísia sobre a natureza do universal e de três seções (I, 5 ; V, 1-2) da Metafísica do Sifâ de Avicenne. Alfredo C. Storck CHARLES KAHN, Sobre o Verbo Grego Ser e o Conceito de Ser. Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga (Depto. de Filosofia da PUC-Rio), Rio de Janeiro, 1997. Tradução de Maura Iglésias e outros. 227 páginas. 148 Haveria, no registro ordinário, pré-filosófico da língua grega, alguma peculiaridade no uso do verbo ser que se revelasse fundamental e imprescindível para a compreensão da ontologia dos filósofos clássicos? E, no caso em que houvesse, ela determinaria uma natureza intrinsecamente limitada e mesmo paroquial de tal ontologia, que, diante desse quadro, seria assim incapaz de validar suas pretensões fora de seu domínio original? Essa é a questão sobre a qual se debruçou, durante anos, Charles Kahn, tendo inclusive dedicado-lhe um livro inteiro, The Verb Be in Ancient Greek, 1973. O volume que o Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga da PUC-RJ nos apresenta, porém, consiste numa série de artigos, inteligentemente dispostos