A LEI DO VALOR E O PROJETO SOCIALISTA



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Transcrição:

A LEI DO VALOR E O PROJETO SOCIALISTA Patrick Rodrigues Andrade 1 RESUMO: Uma questão que permeia as querelas envolvendo a planificação econômica de uma sociedade socialista é quanto à vigência da lei do valor. Contudo, para se analisar a pertinência e funcionamento dessa lei no socialismo, é mister compreender seu modus operandi capitalista; esse é o objetivo da primeira seção do artigo. Na segunda seção, tendo como referência o debate iniciado nos anos 60 do século passado em torno do funcionamento da lei do valor em Cuba, discorremos sobre sua concepção e funcionamento em uma sociedade organizada sob premissas socialistas, ou seja, de objetivo econômico não-mercantil. Na conclusão, contrapõem-se a lei do valor, em suas dimensões abordadas, e a necessidade de superação de categorias e leis econômicas (fetichizadas) inerentes à forma capitalista de produção de riqueza humana. O QUE É LEI DO VALOR 2? Apesar da lei do valor ser uma das idéias básicas e centrais da abordagem econômica marxista, suas características não são tão claras quanto parece. Tal lei pode ser compreendida basicamente sob três versões sucessivas e complementares, dentro do plano da economia nacional. Partindo do elementar-simples para o complexo-composto: a versão mais simples é a lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho, posteriormente tem-se a lei do valor como lei da distribuição do trabalho social (o que gera questionamentos sobre seu significado enquanto lei de equilíbrio na distribuição do trabalho social), por fim ela pode ser entendida como lei de minimização do tempo de trabalho abstrato, que se vincula às leis gerais de reprodução e desenvolvimento do modo de produção capitalista. A LEI DO VALOR NO CAPITALISMO Para Marx, a grandeza do valor de uma mercadoria é proporcional ao tempo de trabalho sociamente necessário para produzi-la, assim tem-se a lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho. Além de ser motivo de crítica por parte da economia 1 Departamento de Economia UFES. 2 O termo lei aqui utilizado significa que a formação do valor das mercadorias traz certas implicações e determinada lógica para o funcionamento da economia capitalista.

2 burguesa, essa conclusão inicial pode trazer certas confusões quanto à natureza da lei do valor. Em Salário, Preço e Lucro, ele (MARX, 2002: 57) declara que: Os preços do mercado não fazem mais do que expressar a quantidade social média de trabalho que, nas condições médias de produção, é necessária para abastecer o mercado com determinada quantidade de um certo artigo [...] Se a oferta e a procura se equilibram, os preços das mercadorias no mercado corresponderão a seus preços naturais, isto é, a seus valores, os quais se determinam pelas respectivas quantidades de trabalho necessários à sua produção Sem embargo, em O Capital, com maior cuidado e rigor teórico, Marx (2003: 129, grifo nosso) corrigirá tal assertiva já no capítulo III do Livro I: A magnitude do valor da mercadoria expressa uma relação necessário entre ela e o tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, relação que é imanente ao processo de produção de mercadorias. Com a transformação da magnitude do valor em preço, manifesta-se essa relação necessária através da troca de uma mercadoria com a mercadoria dinheiro, de existência extrínseca à mercadoria com que se permuta. Nessa relação, pode o preço expressar tanto a magnitude do valor da mercadoria quanto essa magnitude deformada para mais ou para menos, de acordo com as circunstâncias. A possibilidade de divergência quantitativa entre preço e magnitude de valor, ou do afastamento do preço da magnitude do valor, é, assim, inerente à própria forma preço.[...] A forma preço não só admite a possibilidade de divergência quantitativa entre magnitude de valor e preço, isto é, entre magnitude de valor e sua própria expressão em dinheiro, mas também pode esconder uma contradição qualitativa, de modo que o preço deixa de ser expressão do valor.... Ora, o valor tal como analisado por Marx no início d O Capital, objetivação do tempo de trabalho abstrato, só pode ser criado na produção ( imanente ao processo ). Durante a circulação ele se expressa como preço e sua manifestação concreta na sociedade se dá sob a forma dinheiro, de tal modo que o preço pode divergir do valor. Com a transformação dos valores em preços de produção, a partir do Capítulo VIII do Livro III, conclui-se que na realidade, dada a concorrência entre capitais e suas diferentes composições orgânicas e, por conseguinte, taxas de lucros diferentes das taxas de mais-valia, os preços não podem ser, na média, iguais ou proporcionais aos valores.

3 Fica claro, portanto, que a relação entre valores e preços é mais profunda do que simples formulação: o preço é expressão do valor em dinheiro, haja vista que a transferência de valor é determinada já na produção. Segundo Paul Sweezy (1967: 81): a lei por Marx chamada lei do valor resume as forças que atuam numa sociedade produtora de mercadorias e que regulam: a) as razões de troca entre as mercadorias, b) a quantidade de cada mercadoria produzida, c) a distribuição da força de trabalho aos vários ramos da produção [...] Usando uma expressão moderna, a lei do valor é essencialmente uma teoria do equilíbrio geral desenvolvida em primeiro lugar com referência à produção de mercadorias simples e mais tarde adaptada do capitalismo Entramos no segundo entendimento da lei do valor: lei da distribuição do trabalho social, derivada do próprio desvio dos preços em relação aos valores. Devido à apropriação distinta da produção por parte dos capitais, tal lei surge como a única possibilidade de regulação da distribuição do produto de uma economia de produção privada, sem planificação. Há a necessidade de corrigir o excesso ou escassez de determinadas mercadorias [...] este movimento de preços leva à correção tendencial dos desequilíbrios (BORGES NETO, 2002: 235). Todavia, concluir daí que a lei do valor é uma teoria do equilíbrio geral é, a nosso ver, um equívoco 3, pois uma destacada característica do capitalismo é a de ser um sistema que tende predominantemente ao desequilíbrio e, além disso, inferir equilíbrio ao pensamento de Marx é negar sua démarche dialética enquanto método e ontologia. Resumindo, João Antônio de Paula (2000: 13) afirma: [...] haverá sempre diferença entre valores, preços de produção e preços de mercado, na medida mesmo em que estão se alterando, continuamente, tanto as condições técnicas, quanto as relações econômicas, o quadro político, a luta de classes, a ação do Estado e do outras instituições. Analisando-se o terceiro sentido da lei do valor, lei de minimização do tempo de trabalho abstrato, o desequilíbrio característico do capitalismo fica mais claro. 3 Cf. BORGES NETO, 2002: 237.

4 Enquanto a concorrência capitalista intersetorial, buscando maiores taxas de lucro, conduz os preços de mercado aos preços de produção através da tendência à igualação das taxas de lucro, equilíbrio. A concorrência intra-setorial, em que cada capitalista busca reduzir o valor unitário das mercadorias via mais-valia extra, é um processo em si ad infinitum. A efemeridade da mais-valia extra envolvida nesse tipo de concorrência determina o caráter desequilibrador da lei de minimização do tempo de trabalho abstrato. Portanto, a lei do valor refere-se à constituição e reconstituição permanentes de uma norma produtiva [...] qualquer equilíbrio tendencial é desfeito muito antes de poder realizar-se (BORGES NETO, 2002: 240). Como tentamos denotar brevemente, a lei do valor é uma lei dinâmica, base das leis gerais da economia capitalista. Se o capital deve ser compreendido na démarche de Marx como o próprio valor em um grau superior de desenvolvimento ( valor substantivado ), a lei do valor e sua configuração social deve ser também compreendida de forma mais clara como a lei do valor-capital, lei da subordinação crescente do trabalhador ao capital. Dessa forma, a lei do valor não pode ser compreendida simplesmente como lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho ou lei reguladora da distribuição do trabalho social, ela transcende essas formas, assim como o valor transcende a mercadoria e se torna sujeito histórico enquanto valor-capital. Destarte, a lei do valor é uma lei da produção capitalista, característica apenas a essa forma de produção de riqueza humana. A LEI DO VALOR NO SOCIALISMO Entre os temas que se discutiu no episódio da história cubana que ficou conhecido como Grande debate sobre a economia em Cuba, a questão do funcionamento da lei do valor em tal sociedade foi recorrentemente abordada. O tema central do debate girava em torno do sistema de planificação a ser adotado e a forma de gestão empresarial, expressão concreta de distintas perspectivas acerca da forma de planificação e construção do socialismo em Cuba. No sistema de autogestão financeira ou cálculo econômico, o fundamento era a existência da lei do valor, lei essa de caráter trans-histórico e que, dessa forma, teria vigência tanto no

5 socialismo quanto no capitalismo. A lei do valor seria o determinante da efetivação da troca segundo o tempo de trabalho socialmente necessário e garantia da alocação ótima dos fatores de produção de maneira a estimular o desenvolvimento das forças produtivas. Nesse modelo de planificação as empresas possuíam identidade jurídica própria (autonomia) e seu financiamento e controle era feito pelo sistema bancário. O critério de desempenho de tais empresas era a lucratividade. Esse sistema foi amplamente defendido pelo economista polonês Oskar Lange e se tornou a forma adotada na planificação da economia soviética. Ernesto Che Guevara, desenvolveu um sistema de planificação distinto do modelo mercantil de Lange. No seu Sistema Orçamentário de Financiamento, as empresas eram consideradas unidades produtivas de uma única empresa estatal (Empresa Consolidada), dessa forma as transações entre elas seriam simples transferências entre organismos, sem transferência de propriedade e, portanto sem caráter mercantil. Como já se pode observar tal distinção não é apenas uma questão jurídica ou administrativa, remete a inter-relações econômicas importantes: o dinheiro, por exemplo, no cálculo econômico, além de unidade de conta e meio de troca, possui a característica social de determinar as relações entre as empresas e os bancos (similar à relação empresa capitalista banco capitalista); enquanto que no Sistema Orçamentário de Financiamento o dinheiro é considerado apenas unidade de conta, os preços são fixados de acordo com os custos de produção. Essa divergência quanto à forma de planificação será base da discussão do papel da lei do valor no processo de transição do capitalismo e no próprio socialismo. Alberto Mora (1963: 23) afirma em seu artigo que: A lei do valor funciona, se expressa o fato de que, como critério econômico, a produção é regulada pelo valor. Que os produtos são trocados de acordo com o valor de cada um. Enfim, que a lei do valor é, economicamente, um regulador da produção. Como vimos, apesar de estar parcialmente correto, a lei do valor não pode ser compreendida simplesmente como lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho (nem no capitalismo as trocas são realizadas seguindo o tempo de trabalho socialmente necessário). A lei do valor vai além, remete à lógica de funcionamento da economia capitalista. Como destaca Borrego Díaz (2002: 381):

6 [...] A ação desta lei [lei do valor] gera a diferenciação dos produtores e a pequena produção mercantil engendra capitalismo e burguesia constantemente, a cada dia, cada hora, espontaneamente e em massa. Segundo Charles Bettelheim (1964: 204), outro crente da a-historicidade da lei do valor: [...] o papel da lei do valor e um sistema de preços que deve refletir não somente o custo social dos diferentes produtos, mas também expressar as relações entre a oferta e a demanda destes produtos e assegurar, eventualmente, o equilíbrio entre esta oferta e esta demanda quando o plano não possa assegurá-lo a priori e quando o emprego de medidas administrativas para realizar este equilíbrio comprometeria o desenvolvimento das forças produtivas. Destacamos já na primeira seção, que nem mesmo no capitalismo, a lei do valor se configura concretamente como lei de equilíbrio na distribuição do trabalho social. Inferir tal característica à lei do valor é não compreendê-la plenamente ou vir a crer na possibilidade de uso consciente da mesma. Guevara (1963: 193 e 194) destaca passagem do manual de economia política da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS): Por oposição ao capitalismo, onde a lei do valor atua como força cega e espontânea, que se impõe aos homens, na economia socialista se tem consciência da lei do valor e o Estado tem e em conta e a utiliza [grifo do autor] na prática da direção planificada da economia. Em seguida, Che (GUEVARA, 1963: 194) pondera: Primeiro: [a lei do valor] está condicionada pela existência de uma sociedade mercantil. Segundo: seus resultados não são suscetíveis de medição à priori [destacamos anteriormente que preço se distingue de valor, pois enquanto esse é determinada na produção, aquele é determinado na circulação] e devem refletir-se no Mercado onde produtos e consumidores comercializam. [...] Quarto: dado seu caráter de lei econômica, a sua tendência lógica é desaparecer. Seguindo seu raciocínio, Che (GUEVARA, 1963: 195) conclui contrastando a lei do valor e seu modelo: Negamos a possibilidade de uso consciente da lei do valor, baseados não na existência de um mercado livre que expresse automaticamente a contradição entre produtores e consumidores; negamos a existência da categoria mercadoria em relação às empresas estatais, e consideramos todos os estabelecimentos como parte da única grande empresa que é o Estado (embora, na prática, ainda não ocorre em nosso país).

7 Destarte, Che responde também a crítica dos proponentes do cálculo econômico quando afirmam que a lei do valor continua existindo devido à permanência do caráter social do trabalho (produção para consumo alheio) e, portanto, da forma valor. Ao considerar o Estado como uma grande empresa nega-se a existência de relações mercantis na transferência de valores de uso entre as unidades produtivas. Assim, dentro do socialismo, quando toda a propriedade for socializada, seria extinta a forma mercadoria e a lei do valor perderia completamente a vigência (CARCANHOLO & NAKATANI, 2006: 18; grifos nossos). Não existe uma pluralidade de proprietários dos produtos como o afirma Lange (1973) e, portanto, não há razão pela qual a produção em uma economia socialista seja produção de mercadorias (e, portanto submetida à lei do valor). Ora, no capitalismo a lei do valor, apesar de ser determinada na produção, só se manifesta no ato de troca, o que é em si contraditório ao cálculo econômico. A lei do valor não pode ser base das decisões econômicas dado que ainda não se concretizou. Essa incompreensão por parte dos defensores do cálculo econômico foi inclusive criticada por economistas burgueses como Hayek e Mises. Não obstante, Guevara (1963: 194) considera a lei do valor como parcialmente existente, devido aos restos subsistentes da sociedade mercantil e, principalmente, nas relações econômicas com o exterior. Contudo, segundo ele, a planificação deve ser conduzida visando liquidar, o mais vigorosamente possível, as categorias antigas, entre as quais se incluem mercado, o dinheiro... e a própria lei do valor. CONCLUSÃO Tentamos demonstrar sucintamente que a lei do valor possui várias dimensões não abrangidas pela concepção daqueles que a defendem enquanto lei econômica fundamental a ser seguida e utilizada como instrumento de equilíbrio e distribuição do trabalho social. A análise das várias dimensões da lei do valor demonstra que ela corresponde a uma determinada forma social e histórica de produção de riqueza, no caso a mercantilcapitalista, dessa forma a lei do valor pode ser mais precisamente compreendida como

8 lei do valor-capital e suas características são, simultaneamente, causa e resultado dessa forma de organização social da produção. Como observa Marx (1988, vol. V: 296, grifos nossos): O caráter histórico dessas relações de distribuição é o caráter histórico das relações de produção, das quais elas só expressam um lado. A distribuição capitalista é diferente das formas de distribuição que se originam de outros modos de produção e cada forma de distribuição desaparece com a forma determinada de produção da qual ela se origina e à qual ela corresponde. Buscar a manutenção de categorias mercantis-capitalistas como a lei do valor traz outros problemas não discutidos no artigo, mas que se pode inferir brevemente e que cremos ser motivo fundamental para a negação da lei do valor por parte do Che. Obviamente, se mantendo a distribuição através da lógica mercantil, os homens continuariam dependentes de mercadorias, se relacionariam através dos produtos de seus trabalhos, ou seja, perpetuariam a alienação e fetiche da mercadoria. Um contrasenso, dado que o objetivo último do socialismo é plena libertação do homem das amarras fetichizadas e exploratórias das demais organizações sociais, o relacionamento direto entre seres humanos. Conclui-se que é logicamente impossível manter a lei do valor em uma sociedade com projeto socialista. Sendo a lei do valor o mecanismo de regulação da produção, consumo, emprego, acumulação... O homem não detém o controle direto da produção da riqueza e renuncia sua capacidade de transformação consciente da sociedade, de tal forma que a condução de um novo projeto com o objetivo de emancipação completa do homem, para além do capital e seus fetiches, fica comprometido e que acaba culminando (como demonstrado historicamente) no retorno pleno da lógica capitalista de produção.

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