MULHERES: UM ESTUDO SOBRE OS PERCURSOS EDUCACIONAIS DE ARTISTAS PLÁSTICAS E PROFESSORAS DE ARTES FIAMONCINI, Rosina Salete de Franceschi FURB rosinafr@terra.com.br Eixo: Educação e Arte /n. 16 Agência Financiadora: sem financiamento INTRODUÇÃO Este estudo propõe-se a investigar os percursos educacionais de mulheres artistas plásticas e produtoras de arte de Blumenau, no cruzamento da docência em arte e produção artística. Algumas questões são fundamentais para este entendimento. O que move estas mulheres ao optarem por trabalhar com arte na dupla profissão - produtora de arte e docente? Quais as disposições artísticas incorporadas por essas mulheres? Como se despertou este gosto? As agentes deste estudo são professoras de arte com formação específica em artes e, ao mesmo tempo, artistas plásticas. Logo nas primeiras sondagens, percebeu-se que estas são em número reduzido na dupla função. Os dados foram obtidos a partir de mapeamento feito em duas instituições: a BLUAP 1 - Associação Blumenauense de Artistas Plásticos, entidade que congrega artistas plásticos e a Universidade Regional de Blumenau (FURB), com as professoras ligadas ao Departamento de Artes, resultando em uma seleção de sete agentes de acordo com os critérios acima mencionados. Decidiu-se pela realização de entrevistas explorando o recurso metodológico de memória e história oral para obtenção do material empírico a ser analisado posteriormente. De acordo com Alberti (2004, p. 23), a respeito de história oral sua peculiaridade e a da história oral como um todo decorre de toda uma postura com relação à história e às configurações socioculturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu. Neste sentido, afirma ainda que não se pode pensar em história oral sem pensar em biografia e memória. Os relatos das agentes, com recurso à memória, procuram recuperar sua trajetória desde a infância, com foco nos percursos educacionais, passando por acontecimentos significativos vivenciados ou presenciados até o momento da entrevista, e o que determinou este cruzamento de atuação profissional. 1 Criada em 1986 com o objetivo de congregar os produtores de artes plásticas de Blumenau. Em 1996 foi elevada ao patamar de Entidade Pública.
2 Neste texto, encontram-se algumas falas das agentes em questão, aqui relatadas, que representam apenas uma parte desta pesquisa ainda em andamento. Destacam-se depoimentos de três agentes até este momento do trabalho. No âmbito da docência, a história pessoal de fomação educacional das mulheres deve contribuir para a recuperação da memória, que é um campo de pesquisa que vem crescendo, encontrando-se no bojo dos estudos sobre a condição feminina (CATANI; BUENO; SOUSA et al. 1997). A significação da educação escolar, no entender destas pesquisadoras, deve remeter às trajetórias educacionais, às relações dos indivíduos com a escola e o que esta tem propiciado aos mesmos. A iniciação em determinadas práticas escolares tem como consequência gerar disposições férteis para determinadas áreas da educação. De que modo, portanto, estas mulheres desenvolveram, em sua infância, suas experiências com a escola e com a arte? Quais sentimentos e marcas importantes desta experiência ficaram em suas memórias, mulheres hoje artistas e docentes? Indagada sobre suas lembranças no início de seu percurso escolar, Amábile responde: (...) eu me lembro mais de coisas que são dos anos iniciais do que das coisas do 5º ao 8º ano, dizem que geralmente a gente guarda aquilo que foi mais significativo eu tenho a impressão que de 5º ao 8º ano não foi tão significativo, porque me recordo pouca coisa. Este relato ilustra o que diz Bosi (1998, p.22), a respeito do que a memória faz com os recordadores. O que fica? Fica o que significa! Amábile acrescenta: (...) tenho dificuldade de lembrar quem eram os meus amigos na época... os colegas de classe que eu tinha. E como não lembra, segue contando outras representações que ficaram. Para Rosa, ao lembrar da pergunta que todos faziam, a respeito da profissão do futuro, sempre respondia quero ser pintora de quadros (...) eu me lembro que minha bisavó me ensinava desenhar, eu deveria ter apenas dois ou três anos de idade. Esta fala remete às questões da pintura como arte consagrada historicamente, e, no seu caso, não foi esta a grande descoberta na graduação, mas sim, o gosto pela modelagem nas aulas de cerâmica, onde descobriu a tridimensionalidade. (...) na graduação pintei apenas dois quadros, sempre me interessei pelo escultórico, queria ver todos os lados da minha obra.
3 ARTE E MAGISTÉRIO: UMA OPÇÃO NATURAL? Pode-se observar que as agentes artistas-professoras, procedem de grupos sociais onde o ensino é valorizado pela família; cursaram o ensino fundamental e médio em escola pública. Rosa diz, é o que era possível. Percebe-se, também, que tiveram uma educação baseada no modelo tradicional feminino, onde o ensino de atividades artísticas como a pintura, a música e os trabalhos manuais fizeram parte da representação imaginária do ideal feminino e eram símbolos de status. Sobre a docência, Maria afirma: (...) ser professora era uma profissão muito nobre, muito respeitada na época. Desta forma, o contato feminino com as artes é favorecido pelo ambiente social que vivenciaram, cuja influência foi determinante em suas escolhas. De acordo com Cruz (2002, p. 106), (...) Apesar de diluído na sociedade contemporânea, esta representação do feminino enquanto esposa e mãe, característica de uma sociedade patriarcal, ainda orienta as escolhas e estabelece a predisposição feminina para o aprendizado e exercício da arte. Embora tenham ocorrido mudanças, percebe-se ainda hoje, em determinados contextos, essa forte influência patriarcal nos rumos e encaminhamentos profissionais dos filhos. Por que se tornaram professoras e artistas plásticas? Os aprendizados e as marcas de certas experiências e influências familiares, foram decisivas para outra entrevistada. Quanto a sua opção pelo magistério, Maria diz: (...) fui fazer magistério, porque era o sonho da minha mãe ser professora (...) o sonho dela era ser professora, e hoje eu tenho certeza que isto acabou influenciando. Comenta ainda que em sua família havia várias tias que eram professoras, e que sua mãe queria ter sido também. Conta que seus pais mobilizaram os recursos que podiam para que viesse a ser professora, principalmente a mãe, que a matriculava em todas as oportunidades de cursos que surgissem na área de artes, encaminhando a filha para a docência em artes. Por sua vez, Amábile conta: (...) decidi fazer artes porque sempre gostei, mas não tinha noção do que iria aprender, o que eu tinha claro era da formação docente. Eu queria ser professora de artes, isso eu sabia, era uma vontade que eu tinha desde o ensino fundamental. Para Rosa, o incentivo que recebeu na família e na escola, a princípio, era para a arte apenas. Ela era a artista da família. Quanto à docência (...) meus pais demonstraram uma certa preocupação quando decidi pela graduação em
4 artes devido ao pouco retorno financeiro. Mas fui atrás do meu sonho...a docência me proporcionou a reflexão, a sustentação teórica para a arte...nela se consegue compartilhar, o que não ocorre com a produção artística, que é muito solitária. Apesar de inicialmente Rosa querer ser apenas artista, hoje confessa que a docência é seu equilíbrio, do financeiro ao emocional. Cursou mestrado em educação, centrando seus estudos na arte tridimensional. A decisão por magistério e arte representou para Maria a união de algo com que já sonhava, aliado ao desejo da mãe: (...) eu tinha na minha cabeça que seria professora, e de educação artística, unindo a influência da minha mãe (...). Maria já havia feito vários cursos de pintura desde a adolescência, por isso a arte seria a área escolhida por ela. Segue contando porque sua mãe não se tornara professora: (...) meu pai não permitiu que minha mãe trabalhasse porque naquele tempo mulher não podia trabalhar fora do lar. Isto no contexto de uma pequena cidade do interior, na década de 60, representava uma afronta às exigências do marido, que esperava que a mulher cumprisse seu papel de esposa e mãe em seu lar, sendo, portanto, um caminho natural para esta agente, que foi encaminhada tanto à arte quanto à docência em arte desde menina. Teria sido uma estratégia da mãe, para fugir à dominação e ao sentimento de relegação, dar este encaminhamento à filha? Porque a escolha por arte? Segundo Maria: (...) então eu pensei: já que eu gosto de desenhar e de pintar, vou estudar arte... vou fazer Educação Artística porque quero conhecer um pouquinho mais dessa coisa, dessa coisa no bom sentido, que me atrai, que é a pintura (...). Para Amábile: eu passei a falar de arte mesmo, quando entrei na graduação... nas aulas de História da arte e nas visitas a exposições e museus proporcionadas por estas aulas.... (...) eu realmente passei a viver arte a partir dali. Percebe-se nestes relatos que as disposições e práticas familiares influenciaram estas mulheres desde muito cedo, e depois a escola veio aprimorar por meio das aulas de artes algo que já tinha sido despertado desde a primeira infância. A respeito da arte praticada na escola, lembra ela: (...) eu sempre gostei muito das aulas de arte. Desde lá do prezinho sempre gostei muito de desenhar, de pintar (...). E Rosa: (...) eu desenhava muito e presenteava as pessoas com meus desenhos. Para mim, a família e a escola foram um meio para cultivar este princípio artístico. A maioria dos depoimentos indica como foi decisivo o incentivo e investimento dos pais. Maria diz, (...) eu sempre tive nos meus pais meus grandes incentivadores, pra tudo o que eu quisesse fazer em termos de curso, de estudo, de qualquer coisa!
5 Quanto ao incentivo a práticas culturais, a mesma entrevistada relata: (...) lá em casa sempre foi aquela coisa de ter muito livro, aparecia um vendedor, meu pai comprava. Isso sempre foi muito importante para ele, o que eles não tiveram, ofereciam pra gente. Conforme estudos de Catani; Bueno; Sousa et al. (1997); Bruschini (1988); Louro (1997a); Louro (1997b), dentre outros autores, a saída das mulheres do reduto doméstico rumo à docência, obedecia a uma ligação natural, quase maternal, ou seja, para as mulheres, ensinar era uma extensão dos cuidados e educação dados aos seus filhos. E a arte, neste sentido, estava também de alguma forma ligada aos atributos domésticos e decorativos do próprio lar, pois a Academia, até meados do século XIX, era reduto composto por homens, e excluía a presença feminina, conforme Simioni (2002), quando descreve a persistência de certas artistas que ousaram romper com esta tradição. Os estudos sobre questões de gênero, de acordo com Costa; Bruschini (1992), também apontam para uma visão histórica marcada pelas diferenças. As ousadias das mulheres pintoras não eram percebidas, uma vez que a arte genial, criativa e legitimada era produzida por homens. De acordo com Louise Bourgeois 2 (apud LOPONTE, 2005, p.246) Uma mulher não tem lugar como artista até que ela prove repetidamente que não se deixará eliminar. A afirmação desta artista expressa, a partir de sua própria experiência, as dificuldades de ser reconhecida no mundo masculino das artes. Segundo a autora, a emergência do tema da diferença na contemporaneidade, traz a questão do outro, (a mulher como um outro). O gosto é também é uma construção social e, de acordo com Bourdieu (2003), que, analisando as disposições artísticas e práticas culturais em sua investigação, afirma que a necessidade cultural é produto da educação familiar e da ação da escola. Neste sentido, de acordo com os relatos obtidos até aqui, as aulas de artes no ensino fundamental e médio, até mesmo em tempos muito confusos nesta disciplina, parecem ter contribuído para o desenvolvimento técnico das habilidades incentivadas pela família. A graduação em artes, de acordo com relatos das agentes, representou uma espécie de lapidação e aprimoramento de técnicas, conceitos e códigos específicos que a arte contemporânea exige para sua fruição, produção e o exercício da docência em artes. 2 Artista plástica nascida em Paris, França, participou da XXIII Bienal Internacional de São Paulo. Vive e trabalha em Nova York (EUA).
6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES O presente artigo apresenta algumas reflexões a partir dos dados até aqui analisados, que apontam para as influências familiares e educacionais como fatores muito importantes para as escolhas profissionais destas mulheres, tanto em arte quanto na docência. Percebe-se que desde cedo houve influências, como o estímulo e a educação familiar, o meio social, o que a escola proporcionou, os investimentos dos pais na construção dessas trajetórias, somando-se ainda as estratégias e lutas delas próprias buscando seu sonho. Salienta-se, ainda, a importância significativa da graduação em Artes, definindo o cruzamento das trajetórias de cada agente. Ancorado nos autores já mencionados, este texto apresenta uma análise de parte do material empírico já coletado em entrevistas, com destaque para as falas de três agentes, dentre um universo maior a ser ainda pesquisado. REFERÊNCIAS ALBERTI, V. Manual de história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 5. ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998. BOURDIEU, P. O amor pela arte: os museus de arte na europa e seu público. São Paulo: EDUSP/Zouk, 2003. BRUSCHINI; A. Estudos sobre mulher e educação: Algumas questões sobre o magistério. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 64, p. 4-13, fev. 1988. CATANI, D.B.; BUENO, B.O.; SOUSA, C. P. de et al. (Org.). Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras, 1997. COSTA, A. de O.; BRUSCHINI, C. (Org). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro/ São Paulo: Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, 1992. CRUZ, L.C.G. As mulheres e a arte no contexto social pernambucano. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2002. LOPONTE, L.G. Gênero, educação e docência nas artes visuais. Educação & Realidade. Porto Alegre, v.30, n.2, p. 243-255, jul./dez. 2005. LOURO, G.L. Gênero, sexualidade e educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1997a.. Mulheres na sala de aula. In: DELPRIORE, M. (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997b.
SIMIONI, A. P. C. Entre convenções e discretas ousadias: Georgina de Albuquerque e pintura feminina histórica no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, RBCS, n.50, v. 17, p. 143-157, 2002. 7