NOITE e DIA na tradução dos poemas de B. Brecht



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NOITE e DIA na tradução dos poemas de B. Brecht Carlos Castilho Pais Universidade Aberta (DLCP) Como isto não acontece todos os dias, permitam-me que comece por abordar dois temas introdutórios àquilo que pretendo dizer, apontamentos de uma investigação em curso, e que como tal devem ser entendidos. São raras as ocasiões em que temos a oportunidade de explicitar, na nossa casa, o olhar próprio com que abordamos a nossa área de investigação privilegiada. Espero, evidentemente, que estes temas iniciais tragam alguma luz ao que vou dizer. Em primeiro lugar, a tradução afirma cada vez mais a sua autonomia enquanto disciplina universitária. Ela não é a Linguística Aplicada, ela não é a Literatura Comparada, como também não é uma qualquer aplicação das Línguas Estrangeiras. Tenho reivindicado para os Estudos de Tradução o estatuto que merecem pelo facto de a tradução ser uma prática da linguagem. Sempre que necessito de explicitar o seu objecto, lembro, por analogia, os estudos literários ou a literatura. Também na tradução existem obras (obras traduzidas), autores (tradutores), que, consoante as épocas em que viveram, produziram (traduziram) diferentemente, e uma história, universal e/ou local. Anima-me actualmente, no campo específico da tradução literária, entre outras coisas, desenvolver uma tarefa que considero urgente dar a conhecer as peças fundamentais daquilo a que poderá chamar-se de literatura traduzida em Língua Portuguesa. Incluo já nesta tarefa a apresentação de dois poemas traduzidos de Brecht, que terão a ocasião de ler através do écran, e que ilustram a actividade dos dois tradutores de que irei ocupar-me. 1

Em segundo lugar, um dado histórico. Encontramo-nos numas Jornadas sobre Brecht, escritor de língua alemã, não é descabido, por isso mesmo, lembrar que a tradução a partir do alemão foi sempre considerada tarefa complicadíssima, sendo os tradutores dela objectos raros (perdoem a expressão), não admirando que os dois tradutores de que vou falar, considerados dois tradutores de vulto da segunda metade do século XX, sejam também professores universitários. Poderia, para justificar este dado histórico, trazer para aqui, entre outros, o Almeida Garrett que nas Viagens na Minha Terra colocava reticências num trecho do Fausto que começara a traduzir, acrescentando que não se atrevia a colocar aí o resto da sua infeliz tradução. Se, para Garrett, o alemão era uma língua vasta e livre, já para Camilo o alemão era outra coisa. Dizia Camilo (1), numa nota a propósito do germanista José Gomes Monteiro, escritor e editor seu contemporâneo: Enquanto à harmonia, crês tu que os alemães possam ter harmonia? Uns homens que falam com espinhos de dois sáveis atravessados nos gorgomilos poderão rimar melodicamente? Eu creio que a Alemanha faz muita soma de filosofia bronca por não poder fazer versos suaves. Camilo Castelo Branco, Esboços de Apreciações Literárias, 2ª ed., Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1936: 199 Deixemos entrar também quem acaba mesmo agora de ser nomeado José Gomes Monteiro. Este Senhor foi, nada mais, nada menos, o grande defensor da tradução do Fausto por António Feliciano de Castilho (escritor romântico do século XIX), tradução que deu origem a uma polémica (a Questão do Fausto) do tamanho da famosa Questão Coimbrã. Constatem: como tudo isto está ligado! Até parece que estou num teatro brechtiano! Tenho-me esforçado por levantar a memória de António Feliciano de Castilho e não é que ele me surge a propósito de Brecht! Estou a referir-me aos principais tradutores de B. Brecht, que não nomeei há pouco: Paulo Quintela e Arnaldo Saraiva. Cito apenas este último por se referir a Castilho no prefácio dos seus Poemas de Brecht. Diz Arnaldo Saraiva que António Feliciano de Castilho foi um dos homens que mais fez pela tradução em Portugal. 2

É tempo de passar ao título daquilo que tenho para dizer sobre duas traduções de um (mesmo) poema de Brecht, actualmente disponíveis no mercado livreiro. O meu título alicerça-se literalmente nas duas traduções (cf. Anexos 1, 2 e 3), mas pode ser compreendido como metáfora geral do trabalho dos dois tradutores. Dia e noite diz a diferença entre as traduções, realizadas em tempos muito próximos. Mas não há qualquer desprestígio, da minha parte, nem do dia em relação à noite, nem da noite em relação ao dia. É sabido que há gente que se acha mais feliz durante o dia e é sabido que há gente que acha isso da noite. Decidi trabalhar este poema não por ele ser representativo da poesia didáctica de Brecht, porque aí a indecisão nunca mais acabaria, sabendo-se que Brecht escreveu cerca de dois mil poemas, mas por ser o mais traduzido e o primeiro a ser publicado em Língua Portuguesa do conjunto da sua poesia lírica. Pesou nesta decisão também o facto de integrar um conjunto de obras publicadas com pretensões de serem representativas da poesia de Brecht e que foram alvo de reedições recentes. O poema integra as obras Bertolt Brecht, Poemas, tradução, selecção, estudos e notas de Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, Lisboa, (sem data de edição, talvez de 1971), reeditada no Porto em 1998 pelo Campo das Letras; - Bertolt Brecht, Poemas e Canções, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela, Livraria Almedina, Coimbra, 1975, reeditada no volume IV das Obras Completas de Paulo Quintela, publicadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Paulo Quintela e Arnaldo Saraiva são, de facto, os tradutores da poesia lírica de Brecht que referi atrás. Indico apenas que o poema foi traduzido e publicado no Brasil e incluo a versão de uma edição brasileira (cf. Bibliografia) nos anexos a este texto (cf. anexo 5). Reservo, todavia, um lugar especial para o primeiro tradutor do poema: Jorge de Sena. Na antologia Poesia do Século XX (De Thomas Hardy a C. V. Cattaneo), Editorial Inova, Porto, 1978, que, como se sabe, reúne traduções de poemas representativos de um conjunto de escritores seleccionados pelo tradutor/antologiador, Jorge de Sena inclui a tradução do poema no conjunto dos poemas traduzidos de Brecht. (Esta antologia foi reeditada em Coimbra pela editora Fora do Texto, em 1994, e, em 2003, pela editora ASA). A Jorge 3

de Sena se deve, de resto, a primeira publicação da tradução do poema de Brecht, no jornal O Comércio do Porto, com data de 25 de Setembro de 1956 (cf. Maria Manuela Gouveia Delille: Bertolt Brecht em Portugal antes do 25 de Abril de 1974: um capítulo da história da resistência ao salazarismo, p. 63). Esta tradução apresenta nítidas divergências, comparada com as de Paulo Quintela e de Arnaldo Saraiva, conforme se pode constatar (cf. anexo 4). Como devem ter percebido já, não me compete, a mim, investigador da tradução, dizer o que está bem e o que está mal nas traduções que têm em frente (2). Fazer melhor é tarefa do futuro tradutor e não do crítico. Não se me peça aquilo que não se pede aos meus colegas críticos literários. Não irei, pois, explicar as traduções. Vou apenas apresentar alguns elementos que ajudem na compreensão das traduções deste poema de Brecht enquanto textos em Língua Portuguesa e assinalar um problema de tradução. No conceito de TEXTO inclui-se a noção de autor, neste caso, o tradutor, e é por aí que vou entrar, interessando-me sobretudo por indagar o trajecto de legitimação da tradução enquanto texto que é seguido pelos tradutores. Felizmente, os autores das traduções em causa deixaram-nos, em prefácios, notas e conferências, a explicitação do que entendiam ser a tradução ou, se quiserem, alguns dos elementos de uma teoria do traduzir. Também, graças aos textos de Brecht, a teoria do traduzir em Portugal nos anos sessenta/setenta se torna, para os investigadores de hoje, mais explícita e mais compreensível. Paulo Quintela Na Nota prévia que Paulo Quintela escreveu e publicou em 1975 para acompanhar a obra Brecht, Poemas e Canções já referida, dizia, logo de início: Dos muitos centos de poemas de Bertolt Brecht que para aí tenho traduzidos há anos e que, se publicados, dariam vários volumes como o presente -, fiz em tempos esta primeira apanha para imediata publicação. Efectivamente, até essa data, Paulo Quintela, TRADUTOR DE BRECHT (3), tinha-se revelado como tal apenas a um público específico (estudantes e professores de letras e intelectuais). Datam de 1962 e de 1968, respectivamente, as separatas da revista Vértice os Poemas e Fragmentos em que se inclui o poema em questão, p. 13 - e Três Poemas de Bertolt Brecht 4

sobre a América. As Obras Completas de Paulo Quintela vieram trazer-nos nova luz sobre o seu interesse por Brecht. Os compiladores das Obras Completas atribuem-lhe mais de quatrocentos poemas traduzidos de Brecht e apontam o ano de 1968 como sendo o ano de maior dedicação do Professor a este labor tradutório. Este trabalho destinava-se a ser publicada pela Portugália Editora na célebre colecção Poetas de Hoje, conforme anúncio, inserido em livro da mesma editora e da mesma colecção, com data de 1967 - Poemas de Nelly Sachs, na versão de Paulo Quintela. Ficamos também a saber que, em 1971, o tradutor de Brecht tencionava publicar uma ampla antologia, de três volumes, de poemas de Brecht em versão portuguesa. Enfim, não tenho razões para duvidar das palavras dos compiladores que afirmam que entre a galeria de poetas de quem Paulo Quintela se sentiu tão próximo que a transposição para português se lhe impôs como necessidade, Brecht ocupa um lugar ainda mais importante do que até agora podia suspeitar-se (cf. Paulo Quintela, Obras Completas, vol. IV, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 660). O volume das Obras Completas que tenho vindo a citar inclui um texto do tradutor de extrema importância para a compreensão da prática de traduzir de Paulo Quintela, texto que os próprios compiladores desconheciam no momento da publicação dos primeiros volumes das Obras. O texto Traduzir (cf. Obras Completas, vol. IV, pp. 641-651), datado de 1959, ser-nos-á de grande utilidade na compreensão da tradução do poema de Brecht, na direcção que acima ficou enunciada. Ressalta no texto, em primeiro lugar, a referência a Martim Lutero como criador da moderna língua alemã, como tradutor da Bíblia e como teórico da tradução. Lutero é citado em português, em tradução, como suponho, do próprio Quintela: Ao traduzir esforcei-me por dar um alemão puro e claro. Depois de ler isto, esperava, eu, pelo nome de António Feliciano de Castilho, sabendo da opção de Quintela pela tradução do Fausto de Agostinho d Ornellas, em detrimento da de Castilho. Pois, Castilho ali estava, como mau tradutor do Fausto, o que não constituía novidade (4), mas também como autor de traduções em texto português e como um grande tradutor em qualquer parte do mundo. 5

Estou em crer que Paulo Quintela não mudou de opinião desde essa data até ao momento do trabalho de tradução dos poemas de Brecht e que, hoje, podemos compreender melhor o seu trabalho de traduzir enquanto sentir e viver o poema pelo tradutor, já que não se traduz o que se quer, traduz-se o que se nos impõe, o que quer ser traduzido, o que apela para a nossa força íntima de identificação, de consubstanciação. Traduzir será, pois, em primeiro lugar, aderir, reviver, recriar uma situação poética. Arnaldo Saraiva Desconheço a relação entre o professor Paulo Quintela e o professor Arnaldo Saraiva e se relação existia. A verdade é que ambos traduzem Brecht num tempo muito próximo, sabemo-lo hoje melhor, após a reedição (1998) da obra de Arnaldo Saraiva, que inscreve a data de 1970 como data de escrita da parte introdutória da obra, informação que não constava na primeira edição. Em todo o caso, conhecendo-o ou não, o poema de que tratamos havia sido publicado em tradução de Paulo Quintela (e não só, como atrás foi referido), muito antes da data de publicação dos Poemas de Brecht, com selecção, tradução e notas de Arnaldo Saraiva (1971). Tratando-se de uma selecção, podia o tradutor deixar de o incluir no conjunto, uma vez que se encontrava traduzido. Poderá talvez, um dia, esclarecer-se este enigma. Arnaldo Saraiva faz acompanhar a sua obra de uma introdução de 44 páginas, divididas em apresentação do escritor Brecht Do Pobre B. B. em apresentação das razões da selecção dos poemas Da Presente Antologia e, por fim, em apresentação da tradução Da Presente Tradução. Sobre esta última parte recairá o nosso interesse, aqui expresso de modo abreviado, como se requer. Para Saraiva, traduzir não é só passar do significado para o significado, traduzir implica o trabalho do significante, definindo assim aquilo a que chama de maneira moderna de traduzir. O tradutor explicita o seu pensamento através de um esquema em que a tradução moderna se diferencia por estabelecer correspondências dos elementos da frase (letras A B C D ) com a própria frase. 6

Figura 1 Saraiva, 1971 Este esquema sofreu alteração na reedição da obra, tornando mais explícita a exigência de correspondências sintagmáticas e paradigmáticas da frase em relação ao texto. Figura 2 Saraiva, 1970/1998 Mas é sobretudo sobre uma concepção de tradução enquanto leitura que devemos reflectir, tanto mais que ela nos aparece enunciada, segundo 7

julgo, pela primeira vez, em Língua Portuguesa. Diz Saraiva que como todas as leituras, uma tradução é a leitura de quem a faz, como é também a leitura dos outros sobre aquele que a fez, o que conduz o tradutor ao corolário da tradução enquanto escrita outra do mesmo texto. A tradução não é a cópia, é texto na língua de chegada. Como vimos, Paulo Quintela não estaria em desacordo com esta concepção de tradução, e não é por acaso, certamente, que os dois tradutores referem o romântico do século XIX António Feliciano de Castilho (5). Assim avisados de que temos pela frente duas traduções, que se reivindicam enquanto TEXTOS, dois autores de um único texto de Brecht, construído por interrogações discursivas, tão características da poesia de Brecht, a nós, leitores, de construir o sentido ou os sentidos, num trajecto que não será diferente daquele que utilizamos em qualquer texto. Mais não posso fazer do que assinalar o problema de tradução, que se situa no sétimo verso dos poemas em causa, a sublinhado no quadro seguinte, assunto que aqui apenas afloro, pretendendo continuar a investigação. Wohin gingen an dem Abend, wo die chinesische Mauer fertig war, Die Maurer? Das große Rom Versos 7 e 8 do poema de Brecht Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta A Muralha da China? A grande Roma Versos 7 e 8 da tradução de Paulo Quintela No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde Foram os seus pedreiros? A grande Roma Versos 7 e 8 da tradução de Arnaldo Saraiva Figura 3 problema de tradução Compreendem-se as opções dos tradutores na resolução deste problema pelo facto de terem optado por modos diferentes da construção 8

frásica, talvez o motivo mais relevante, em meu entender, que encontramos para as diferenças detectadas entre as duas traduções. De qualquer forma, a noite pertence ao dia assim como a tarde, para lembrar a tradução de Jorge de Sena - e não é a maior ou menor precisão temporal que possamos detectar num ou noutro texto traduzido que me impedirá de dizer sobre eles: felizes os leitores que os têm. Muito obrigado. NOTAS 1. Devo a indicação destas palavras de Camilo à Professora Maria Manuela Delille, que as cita na obra que coordenou: Do Pobre B. B. Em Portugal. Aspectos da Recepção de Bertolt Brecht antes e depois do 25 de Abril de 1974. Escusado será referir quão preciosa foi a leitura dos estudos da Professora Delille para a investigação que conduziu a este texto. 2. Não foi intenção minha investigar as traduções do teatro de Brecht. Assim, não me ocupei das possíveis traduções do poema em causa, levadas a cabo nesse quadro. No entanto, devo assinalar que tive conhecimento, há pouco, de uma tradução do poema por Vera San Payo de Lemos, publicada no Programa do Teatro Nacional D. Maria II para a peça MÃE CORAGEM E OS SEUS FILHOS de Bertolt Brecht, Lisboa, 1986, p. 40. 3. Remeto para os estudos da Professora Maria Manuela Delille (cf. Bibliografia), onde se encontra informação mais pormenorizada sobre o trabalho de divulgação de Brecht levado a cabo por Paulo Quintela através do CITAC. 4. Em 1953 (ano da reedição da tradução do Fausto por Agostinho d Ornellas, patrocinada por Paulo Quintela), dizia ser a tradução do Fausto de Goethe por António Feliciano de Castilho (1972) um subproduto, desenxabido e emasculado. A referida tradução de Agostinho d Ornellas, segundo a edição preparada por Paulo Quintela em 1953, foi alvo de edição recente pela editora ASA. 9

5. Não resisto em colocar aqui estas palavras de António Feliciano de Castilho, escritas a propósito da sua tradução das Metamorfoses de Ovídio (1841): Foi, nesta parte, o meu difícil empenho, conciliar língua portuguesa, de lei, e bons quilates, com suma clareza, e elegância, quer de estilo, quer de versificação. (Cf. a minha antologia de textos António Feliciano de Castilho O Tradutor e a Teoria da tradução, Coimbra, Quarteto, 2000, p. 48). BIBLIOGRAFIA 1. Publicação de traduções dos poemas de Bertolt Brecht, em livro, fascículo ou separata, (ordenados por ano de publicação até 1975): - Notícias do Bloqueio, Fascículos de Poesia, nº 2, Porto, 1957 (três poemas, um deles traduzido pelo poeta Egito Gonçalves e os outros dois por Mário Henrique [escritor Mário Henrique Leiria]); - Bertolt Brecht, Poemas e Fragmentos, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela, separata da revista Vértice, Coimbra, 1962; - Três Poemas de Bertolt Brecht sobre a América, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela, separata da revista Vértice, Coimbra, 1968; - Bertolt Brecht, Poemas, tradução, selecção, estudos e notas de Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, 1971; reedição recente: Porto, Campo das Letras, 1998; - Bertolt Brecht, Poemas e Canções, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela, Coimbra, Almedina, 1975; reedição recente: Vol. IV de Obras Completas de Paulo Quintela, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999; - Poemas de Brecht, versão portuguesa de Paulo Quintela, separata da revista Vértice, Coimbra, 1975. 2. Estudos sobre a recepção de B. Brecht em Portugal - Delille, Maria Manuela Gouveia, Bertolt Brecht em Portugal antes do 25 de Abril de 1974: um capítulo da história da resistência ao salazarismo, 10

Dedalus, Revista Portuguesa de Literatura Comparada, nº 1, Dezembro de 1991; - Delille, Maria Manuela Gouveia (Coord.), Do Pobre B. B. Em Portugal. Aspectos da Recepção de Bertolt Brecht antes e depois do 25 de Abril de 1974, Editora Estante, Aveiro, 1991. 3. Outros - Branco, Camilo Castelo, Esboços de Apreciações Literárias, (1865), Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1936; - Brecht, Bertolt, Poemas, 1913-1956, Selecção, tradução e pósfácio de Paulo César Souza, Editora Brasiliense, S. Paulo, 1986 - Carvalho, Orlando de, Breves Notas de Um Leitor de Poesia, a Propósito das Traduções de Paulo Quintela da Obra Poética de Reiner Maria Rilke, separata da revista Biblos, Coimbra, 1976 (miscelânea em honra de Paulo Quintela); - Castilho, António Feliciano de, Prefácio à tradução de As Metamorfoses, in António Feliciano de Castilho O Tradutor e a Teoria da Tradução, Org. de Carlos Castilho Pais, Coimbra, Quarteto; - Príncipe, César, Os Segredos da Censura, Lisboa, Editorial Caminho,1979; - Sá, Vítor Matos e, Da Tradução Como Lição de Alteridade (A propósito dos Poemas de Rilke traduzidos por Paulo Quintela), separata da revista O Tempo e o Modo, Lisboa, 1968; - Sena, Jorge de, Poesia do Século XX (De Thomas Hardy a C. V. Cattaneo), Antologia, tradução e notas de Jorge de Sena, Editorial Inova, Porto, 1978. 11

Carlos Castilho Pais, Noite e Dia na tradução dos poemas de B. Brecht Anexo 1 PERGUNTAS DUM OPERÁRIO LEITOR Quem construiu a Tebas das sete portas? Nos livros estão os nomes dos reis. Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra? E a várias vezes destruída Babilónia Quem é que tantas vezes a reconstruiu? Em que casas Da Lima refulgente de oiro moraram os construtores? Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta A Muralha da China? A grande Roma Está cheia de arcos de triunfo. Quem os levantou? Sobre quem Triunfaram os Césares? Tinha a tão cantada Bizâncio Só palácios para os seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida, Na noite em que o mar a engoliu, bramavam Os afogados pelos seus escravos. O jovem Alexandre conquistou a Índia. Ele sozinho? César bateu os Gálios. Não teria consigo um cozinheiro ao menos? Filipe de Espanha chorou, quando a Armada Se afundou. Não chorou mais ninguém? Frederico Segundo venceu na Guerra dos Sete Anos. Quem Venceu além dele? Cada página uma vitória. Quem cozinhou o banquete da vitória? Cada dez anos um Grande Homem. Quem pagou as despesas? Tantos relatos. Tantas perguntas. Bertolt Brecht, Poemas e Canções, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela, Livraria Almedina, Coimbra, 1975; Paulo Quintela, Obras Completas, vol. IV, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999 12

Carlos Castilho Pais, Noite e Dia na tradução dos poemas de B. Brecht Anexo 2 PERGUNTAS DE UM OPERÁRIO LETRADO Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis. Mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilónia, tantas vezes destruída, Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas Da Lima dourada moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde Foram os seus pedreiros? A grande Roma Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio Só tinha palácios Para os seus habitantes? Até a lendária Atlântida, Na noite em que o mar a engoliu, Viu afogados gritar por seus escravos. O jovem Alexandre conquistou as Índias. Sozinho? César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha Chorou. E ninguém mais? Frederico II ganhou a Guerra dos Sete Anos. Quem mais a ganhou? Em cada página uma vitória. Quem cozinhava os festins? Em cada década um grande homem. Quem pagava as despesas? Tantas histórias Quantas perguntas. Bertolt Brecht, Poemas, tradução (com a colaboração de Sylvia Deswarte), selecção, estudos e notas de Arnaldo Saraiva, Ed. Presença, Lisboa, 1971; Campo das Letras, Porto, 1998 13

Carlos Castilho Pais, Noite e Dia na tradução dos poemas de B. Brecht Anexo 3 Fragen eines lesenden Arbeiters Wer baute das siebentorige Theben? In den Büchern stehen die Namen von Königen. Haben die Könige die Felsbrocken herbeigeschleppt? Und das mehrmals zerstörte Babylon, Wer baute es soviele Male wieder auf? In welchen Häusern Des goldstrahlenden Lima wohnten die Bauleute? Wohin gingen an dem Abend, wo die chinesische Mauer fertig war, Die Maurer? Das große Rom Ist voll von Triumphbögen. Über wen Triumphierten die Cäsaren? Hatte das vielbesungene Byzanz Nur Paläste für seine Bewohner? Selbst in dem sagenhaften Atlantis Brüllten doch in der Nacht, wo das Meer es verschlang, Die Ersaufenden nach ihren Sklaven. Der junge Alexander eroberte Indien. Er allein? Cäsar schlug die Gallier. Hatte er nicht wenigstens einen Koch bei sich? Philipp von Spanien weinte, als seine Flotte Untergegangen war. Weinte sonst niemand? Friedrich der Zweite siegte im Siebenjährigen Krieg. Wer Siegte außer ihm? Jede Seite ein Sieg. Wer kochte den Siegesschmaus? Alle zehn Jahre ein großer Mann. Wer bezahlte die Spesen? So viele Berichte, So viele Fragen. Bertolt Brecht, Poemas de Svendborg, 1939 14

Carlos Castilho Pais, Noite e Dia na tradução dos poemas de B. Brecht Anexo 4 UM TRABALHADOR, AO LER, PERGUNTA... Quem construiu a heptápila Tebas? Nos livros há só nomes de reis. Foram os reis quem transportou as pedras? E a tantas vezes destruída Babilónia Quem tantas vezes a reconstruiu? E em que casas De Lima, a cintilante de oiro, os construtores moraram? Para onde foram, na tarde em que acabaram a Muralha da China Os alvanéis? A grande Roma Está cheia de arcos triunfais. Quem os ergueu? E sobre quem Triunfaram os Césares? Tinha a celebrada Bizâncio Só palácios para os habitantes? Até na Atlântida fantástica Gritava, na noite em que o mar a engolia, Quem se afogava, pelos seus escravos. O jovem Alexandre conquistou as Índias. Sozinho? César bateu as Gálias. Não tinha com ele sequer um cozinheiro? Filipe de Espanha chorou, quando a Armada Foi ao fundo. Mais ninguém chorou? Frederico II ganhou a Guerra dos Sete Anos. Quem a ganhou para ele? Em cada página uma vitória. Quem cozinhou o banquete triunfal? Cada dez anos um grande Homem. Quem pagou a conta? Tantas histórias. Outras tantas perguntas. Jorge de Sena, Poesia do Século XX (De Thomas Hardy a C. V. Cattaneo), Antologia, tradução e notas de Jorge de Sena, Editorial Inova, Porto, 1978 15

Carlos Castilho Pais, Noite e Dia na tradução dos poemas de B. Brecht Anexo 5 PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilónia várias vezes destruída - Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas Da Lima dourada moravam os construtores? Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida Os que se afogavam gritaram por seus escravos Na noite em que o mar a tragou. O jovem Alexandre conquistou as Índia. Sozinho? César bateu os gauleses. Não levava sequer um cozinheiro? Filipe de Espanha chorou, quando sua armada Naufragou. Ninguém mais chorou? Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem venceu além dele? Cada página uma vitória. Quem cozinhava o banquete? A cada dez anos um grande homem. Quem pagava a conta? Tantas histórias. Tantas questões. Bertolt Brecht, Poemas, 1913-1956, Selecção, tradução e pósfácio de Paulo César Souza, Editora Brasiliense, S. Paulo, 1986 16