Teorias sobre alfabetização de crianças: de que debate se trata? Julia Maria Borges Anacleto Resumo: Considerando as formulações de Emilia Ferreiro a respeito do papel do outro no processo de aquisição da escrita pela criança, pretende-se contribuir para uma discussão acerca do dilema pedagógico que as interpretações feitas dessa autora geram. Ainda de forma inicial, pretende-se explorar a possibilidade de contribuição para esse debate a partir das formulações que têm procurado articular a teoria psicanalítica da constituição do sujeito e a aquisição da escrita. O presente trabalho pretende articular algumas das ideias que vimos desenvolvendo em nossa pesquisa de mestrado. A questão geral com que vimos trabalhando pode ser resumida na pergunta: o que está em jogo no processo de aquisição da escrita pela criança? A fim de desdobrar essa questão, temos realizado uma pesquisa bibligráfica em torno de algumas teorias sobre alfabetização, buscando analisá-las e interrogá-las à luz das formulações psicanalíticas acerca da constituição do sujeito. No Brasil, o discurso pedagógico acerca da alfabetização é perpassado de forma preponderante (assim como acerca da educação em geral), principalmente a partir da década de 1990, por uma influência explícita aos estudos empreendidos pela psicóloga argentina Emilia Ferreiro, bem como por uma série de outros pesquisadores que se envolvem também nessas pesquisas acerca da aquisição da escrita pela criança, tendo como base conceitual a epistemologia genética piagetiana. Tal discurso, nomeadamente construtivista, busca estabelecer parâmetros pedagógicos novos para o processo de alfabetização, baseados nas ideias que desde Piaget foram desenvolvidas acerca do desenvolvimento cognitivo. Assim, o discurso sobre a alfabetização que se gesta a partir dessas novas referências inaugura novos modos de se vislumbrar o processo de aprendizagem da criança, bem como traz também novos problemas. O que se verifica é que essas ideias, colocadas num circuito discursivo a serviço de pretensas orientações pedagógicas, acabam por gerar muitas polêmicas, dentre elas, a que diz respeito ao papel do professor numa proposta pedagógica de alfabetização que se diga construtivista.
Assim, Mello (2007), por exemplo, afirma que a principal e mais perigosa interpretação acerca da teoria em questão, tem sido, de acordo com alguns estudiosos, a de que a escola e o professor podem acreditar que não devam interferir no processo de apropriação da língua escrita pela criança, porque essa se alfabetiza sozinha, uma vez que se encontra no centro do processo de aprendizagem (p. 113). Em uma direção completamente oposta, há ainda interpretações que transformam a classificação de Ferreiro acerca dos estágios pelos quais as crianças passariam em seu processo de construção do conhecimento sobre a escrita em uma nova forma de teste de prontidão. Ou seja, em diversas ocasiões, vê-se as crianças serem divididas em pré-silábicas, silábicas ou alfabéticas, passando a ser ofertado a cada grupo diferentes tipos de atividades. Diante de tais polêmicas, nosso intuito é o de refletir sobre alguns aspectos da teoria desenvolvida por Ferreiro, a fim de localizar a questão do papel do outro no processo de aquisição da escrita conforme formulado por essa autora, bem como apontar algumas possibilidades de que a psicanálise possa contribuir para essa reflexão. Assim, nosso recorte está voltado para uma análise de formulações teóricas e não diretamente das práticas que elas engendram. Sem dúvida, tem-se como pano de fundo da investigação as vicissitudes que o professor enfrenta quando encontra-se sob essa malha discursiva hegemônica, supostamente ancorada nas formulações teóricas em questão. No entanto, nosso intuito é o de contribuir com a reflexão sobre esses malestares que o professor experiementa quando confrontado com o desafio de pôr em prática uma suposta educação construtivista, a partir de uma análise de alguns aspectos dessas formulações no que diz respeito ao modo como nelas comparece um papel atribuído ao outro no processo de aprendizagem da criança. Emilia Ferreiro, ao abordar a escrita como um objeto de conhecimento, desenvolve uma investigação acerca de sua aquisição a partir de uma filiação ao modelo de desenvolvimento cognitivo construtivo inaugurado por J. Piaget. Assim, contrapondo-se ao modelo associacionista no qual o aprendizado da escrita derivaria de uma adequação entre determinado estímulo e sua correspondente resposta, Ferreiro defende que a aquisição da escrita pela criança passa por uma construção conceitual ativa.
Ferreiro sustenta, portanto, que é na interação da criança com a escrita como objeto de conhecimento que ela passará a construir hipóteses sobre a lógica que subjaz a esse sistema de representação, submetendo essas hipóteses a testes, o que levaria a reformulações sucessivas em direção a hipóteses mais evoluídas e complexas, culminando no domínio do sistema alfabético de escrita. Analisando algumas obras da autora em questão, podemos encontrar diversas colocações que dialogam com a realidade escolar e as práticas alfabetizadoras. Mais diretamente, a autora tece diversas críticas ao modelo bastante corrente dos ditos testes de prontidão. Trata-se de um modelo segundo o qual há um nível básico de maturidade psicológica que a criança deve alcançar para ser introduzida no aprendizado da escrita, e, mais que isso, tal maturidade deve ser alcançada através de estímulos basicamente voltados para um desenvolvimento motor e perceptivo. Assim, Emilia Ferreiro posiciona-se, em inúmeras oportunidades, em contraposição a esse modelo, tanto sustentando que o aprendizado da escrita não é de ordem técnica, mas sim conceitual, quanto questionando, a partir daí, que se queira controlar o contato da criança com a escrita, tornando-a um objeto escolar e não cultural. Assim, ela sustenta que é justamente através do contato precoce da criança com os usos sociais da escrita que ela irá ter a possibilidade de interagir com esta e apreender suas propriedades fundamentais. Focando nossa análise nesse aspecto, buscamos chamar a atenção daquilo que Ferreiro concebe como sendo o papel do adulto na inserção da criança no universo social da língua escrita. Isso porque consideramos que ao deslocar a questão da aprendizagem da escrita do âmbito da aquisição de uma técnica para a de uma construção conceitual, ou seja, de uma apreensão da lógica de funcionamento do sistema, ela acaba por destacar também a importância de que a criança seja de alguma forma inserida num contexto social que lhe possibilita entrar em contato com a língua escrita. Ou seja, na medida mesma em que formula a aquisição da escrita como um processo endógeno engendrado por uma construção lógica, sustenta que há um papel do outro como aquele que estabelece essa entrada da criança no mundo dos objetos sociais de conhecimento. Assim, a autora afirma, por exemplo: A tão famosa maturidade para leitura-e-escrita depende muito mais das ocasiões sociais de estar em contato com a linguagem escrita do que de qualquer outro fator que se invoque. Não tem sentido deixar a criança à margem da linguagem escrita
esperando que amadureça. (...) os tradicionais exercícios de prontidão não ultrapassam o nível do treinamento perceptivo motor quando, em verdade, é o nível cognitivo que está envolvido no processo (e de modo crucial) (Ferreiro, 1986, p. 101). Com isso, a autora outorga de certa forma ao outro o papel de precipitador do contato da criança com a escrita. Mais ainda, interpretando as passagens a seguir apresentadas, podemos considerá-las como um apontamento da importância de algo que parece ser da ordem da suposição. À criança seria oferecida a entrada no mundo letrado onde ela é convocada a se posicionar e com isso ir construindo conhecimento. E ainda: Aqueles que conhecem a função social da escrita dão-lhe forma explícita e existência objetiva através de ações inter-individuais. A criança se vê continuamente envolvida, como agente e observador, no mundo letrado. Os adultos lhe dão a possibilidade de agir como se fosse leitor ou escritor oferecendo múltiplas oportunidades para sua realização (livros de histórias, periódicos, papel e lápis, tintas etc.). O fato de poder comportar-se como leitor antes de sê-lo, faz com que se aprenda precocemente o essencial das práticas sociais ligadas à escrita (Ferreiro, 1986, pp. 59-60, grifo meu). Imitando a mãe que age como se o bebê estivesse falando quando produz seus primeiros balbucios, o professor teria que aceitar as primeiras escritas infantis como amostras reais de escrita e não como puros rabiscos (idem, p. 62). No entanto, ao enfatizar o papel do outro como aquele que, supondo que a criança é capaz, lhe oferta um contato ativo com o mundo das letras, Ferreiro não está propondo que se retorne à ideia de que é o meio externo que molda e define a aprendizagem. Em consonância com a maquinaria piagetiana (cf. Lajonquière, 2010), ela sustenta um processo de evolução regular da aquisição da escrita. Segundo ela, as crianças (...)expressam com convicção ideias que não poderiam ter recebido, tal qual, dos adultos(...) (Ferreiro, 2004, p. 150). Assim, haveria aí uma certa distância entre aquilo que lhes é ensinado e o que de fato fazem com isso. Para ela, então, ainda baseada em Piaget, o problema que a criança enfrenta na aprendizagem da escrita é de ordem lógica, estrutural. Seu problema é compreender a natureza do sistema de escrita que a sociedade lhes oferece. Para compreendê-lo enquanto sistema estão obrigadas a reconstruí-lo internamente, em vez de recebê-lo como um conhecimento pré-elaborado (Ferreiro, 1986, p. 95). É a partir dessa perspectiva que Ferreiro afirmará ainda que o papel da escola não deveria ser o de dar inicialmente todas as chaves secretas do sistema alfabético,
mas o de criar condições para que a criança as descubra por si mesmas (Ferreiro, 1986, p. 60). Analisando esses trechos das idéias de Ferreiro podemos perceber como não se trata simplesmente de negar o papel do outro no processo de aprendizagem da criança, nem tampouco de sustentar a possibilidade de controlar o aprendizado das crianças através de uma ação pedagógica mais eficaz. Apesar dessa dupla negação, de um lado da ausência de papel, do outro lado da exacerbação desse papel, as interpretações feitas com o intuito de extrair possíveis modos de conduta do professor, têm, de modo geral, girado em falso, pendendo ora para a posição de que o melhor professor é aquele que não atrapalha, ora para uma tentativa de, munidos de novos conhecimento sobre o funcionamento psicológico das crianças, melhor controlar o processo de aprendizagem. Nenhuma das duas condutas pode ser deduzida diretamente das formulações de Emilia Ferreiro, nem tampouco de Piaget. Aliás, a respeito do modo como os profissionais da psicopedagogia interpretam a teoria da equilibração de Piaget, Lajonquière (2010) afirma que eles supervalorizam a definição dos estágios contida nessa teoria, quando em verdade o principal estaria na ênfase no sujeito e sua trajetória de desenvolvimento. Assim, afirma: Entre várias outras coisas, esses profissionais supõem, de antemão, em qual nível do desenvolvimento encontra-se uma criança, daí para frente, é possível esperar pacientemente que mature, como se fora um fruto, ou, pelo contrário, programar (metódica e cientificamente) uma série de atividades (psico)pedagógicas tendentes a exercitar e reforçar noções ainda não adquiridas (Lajonquière, 2010, pp.86-87). Assim, Lajonquière aponta que a teoria piagetiana acaba por estar a serviço ora do pré-formismo ora do empirismo, ambas as correntes as quais Piaget procurou ao longo de suas pesquisas se opor. Nos parece que o dilema gerado nas interpretações que se faz da teoria piagetiana, bem como do modo como esta é trabalhada por Ferreiro, acerca da influência das informações do adulto no processo de aprendizagem da criança, pode ser não propriamente solucionado, no entanto, reequacionado recorrendo-se a alguns estudos que tratam da questão da aquisição da escrita a partir de alguns aspectos da teoria psicanalítica da constituição do sujeito. Faremos nesta ocasião apenas uma menção a esses estudos, destacando, no entanto, os pontos que a nosso ver poderiam contribuir com a discussão enfocada.
O trabalho de Sonia Borges, resultado de sua pesquisa de doutorado, publicado sob o título O quebra-cabeça, a alfabetização depois de Lacan (2006), realiza a transposição para o campo da aquisição da escrita de uma discussão que vinha sendo empreendida, principalmente por Claudia Lemos, professora do Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, no âmbito da aquisição da linguagem oral. Claudia Lemos buscou ao longo de sua trajetória como pesquisadora da área de Aquisição da Linguagem construir uma perspectiva teórica acerca do tema a partir de sua filiação à psicanálise 1. Dessa forma, opera uma mudança inovadora nesse campo de estudos, porque desloca do primeiro plano o cognitivo, para tratar a aquisição da linguagem como uma questão propriamente linguística, na medida em que coloca como mediadora da relação entre a criança e o outro a própria linguagem (cf. Lemos, 1998). Segundo afirma Lemos (2002), ancorada em formulações psicanalíticas, a língua exerceria a função de captura, ao contrário da idéia mais corrente na perspectiva cognitivista, onde o sujeito é que passaria, através da inteligência, a dominar a linguagem. Nessa perspectiva, tanto a criança quanto o adulto empenhado em sua educação estão capturados pela linguagem, ou seja, passam a ocupar posições numa estrutura. Lemos irá utilizar a noção de especularidade para tentar dar conta de explicar as mudanças da criança no campo da linguagem, em sua relação com o outro. Dentro dessa noção a relação entre a criança e o outro é pensada como uma relação de interpretação, onde tanto a fala do adulto tem efeito na fala da criança e vice-versa, quanto a fala da criança tem efeito sobre si própria. O que pretendemos destacar aqui no que diz respeito à elaboração dessa noção de especularidade é o fato de que, com ela, Lemos pretendeu construir uma alternativa à ideia de imitação, sem, contudo, segundo ela, recair na solução inatista (cf. Lemos, 2002). Para Borges (2006), ao assumir a noção de especularidade, Lemos estaria estabelecendo uma analogia entre o processo de constituição do sujeito e o de aquisição da linguagem. Analogia essa que ela mesma irá assumir também no campo da aquisição da escrita. Isso porque, segundo Borges, trata-se de afirmar, com Lacan, que a entrada 1 Na verdade talvez fosse mais correto dizer que sua filiação à psicanálise é decorrência dos impasses que o contato com as falas das crianças colocaram para suas formulações (cf. Lemos, 2002).
no campo simbólico depende de um significante-mestre, uma marca, advinda do campo do Outro. Assim, assumir, também no campo da aquisição da escrita, a noção de especularidade possibilitaria a analogia (...) entre a constituição da imagem própria da criança e a constituição de sua escrita. Em um e outro caso, é o Outro quem dá as cartas com as quais a criança pode jogar (Borges, 2006, p. 151). Assim, recorrendo a uma analogia entre a aquisição da linguagem, seja oral ou escrita (consideradas no entanto as especificadas de cada uma), e a constituição do sujeito, tanto Lemos quanto Borges acabam por oferecer uma possibilidade de se repensar a questão do papel do outro nesses processos, redimensionando o dilema entre a ideia de que o sujeito aprenderia sozinho ou de que, por outro lado, aprenderia imitando ou replicando as informações que recebe do outro. Isso porque, do ponto de vista da constituição do sujeito, se, de um lado, esta pressupõe uma alienação ao discurso do Outro, ou a um significante-mestre, por outro lado, também não há sujeito propriamente constituído sem que haja uma separação em relação ao desejo do outro. De todo modo, trata-se, em última instância de uma tentativa de introduzir, na consideração das formulações de Ferreiro acerca do processo de aquisição da escrita pela criança em sua relação com o outro, as contribuições advindas da psicanálise, principalmente no que tange a uma teoria do significante como constituidor da subjetividade. No entanto, resta, sem dúvida, considerar a validade dessa analogia proposta por Lemos e assumida por Borges. Será que é possível tratar a aquisição da escrita, enquanto aquisição de um conhecimento, como algo análogo ao que se passa no plano subjetivo? Por ora, pensamos ser necessário considerá-la em suas possibilidades e limites. Referências bibliográficas: AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo, Ática, 1995. BORGES, Sonia. O quebra-cabeça a alfabetização depois de Lacan. Goiânia, Ed. da UCG, 2006. FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Editora Artmed, 1989. FERREIRO, E. Com todas as letras. São Paulo, Cortez, 1993. FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo, Cortez, 1986.
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