CASOS LIMITES E A CLÍNICA CONTEMPORÂNEA

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Transcrição:

CASOS LIMITES E A CLÍNICA CONTEMPORÂNEA Introdução Aluna: Rafaella Coelho Coautor: André Carvalho Orientador: Monah Winograd Freud (1920) ao postular a pulsão de morte, o faz, para explicar outro motor de funcionamento do psiquismo, a saber, o da compulsão a repetição, cujo conteúdo da repetição é de caráter traumático, de experiências aflitivas. O trauma em 1920 é percebido como um excesso de intensidades que incide sobre o psiquismo, e este, por ser tomado de surpresa, ou por outras circunstâncias, encontra-se vulnerável, despreparado ao ataque, o que ocasiona o rompimento do escudo protetor. O escudo protetor é o próprio campo representacional, o ego. O que Freud (1920) procurou compreender foram os efeitos produzidos sobre o órgão da mente pela ruptura do escudo contra estes estímulos que irrompem, e os problemas que se seguem em sua esteira. A partir do modelo do trauma de 1920, percebemos que as intensidades, o excesso, seja de estímulos endógenos ou exógenos, incidem sobre o aparato psíquico já constituído, a questão que se formula é qual o efeito do impacto dessas intensidades em um aparato em constituição, desprovido de recursos para investir na absorção, ou metabolização dessas intensidades? A problemática do traumático é transposta para pensar sua ocorrência no momento constitutivo da organização psíquica, nos primórdios da vida, no processo primevo da constituição do psiquismo, no momento próprio de sua formação, no qual a criança, também está passando por um processo de desenvolvimento, no qual, os mecanismo de defesas estão em constituição, e que neste momento constitutivo, depara-se com as mais intensas experiências, de caráter excessivo, portanto, a criança diante dessas intensidades, não possuindo o psiquismo suficientemente desenvolvido, não seria capaz de processar inteiramente essas experiências intensas. Ou seja, a criança não estaria provida de recursos, de defesas mais desenvolvidas, para lidar com o excesso de estímulos. Decorrem dessa problemática as consequências desse impacto traumático sob o psiquismo nascente, nos destinos do trauma. De acordo com Bokanowski (2005) os excessos precoces não processados podem gerar feridas narcísicas, danos que vão ocorrendo no momento de constituição do Ego, este seria marcado por falhas, por buracos, fueiros, clivagens - gerando um Estado dentro do

Estado - este como um destino das intensidades excessivas, não processadas e, portanto, desorganizadoras. Um dos efeitos do traumatismo é o impedimento da transformação processual, produzindo efeitos destrutivos, engendrando processos defensivos como o da clivagem, autotomia, projeção. O traumático se mantém como energias livres hiperintensas, com as quais o sujeito não consegue processar e deslizar, mantendo-se refém de uma compulsão a repetição. A tradução clínica desse quadro clínico são os casos limites ou patologias narcísicas indentitárias. Nossa pesquisa buscou realizar, a partir de referências clássicas e contemporâneas plurais da psicanálise, a investigação teórica e metapsicológica, para compreensão da etiologia, funcionamento e o tratamento dos casos difíceis, que na atual literatura e problemática psicanalítica, são acolhidas dentro de um amplo espectro das patologias-limites, estados-limites, transtorno boderline, sofrimento narcísico identitário, etc. Estes casos e suas manifestações, constituem um desafio para clínica psicanalítica, dado que não são reduzidos às estruturas nosológicas clássicas, como a neurose, a psicose e a perversão. A clínica psicanalítica ao se deparar com tais casos é forçada a pensar, e produzir novos avanços no campo teórico e metapsicológico, que viabilizem intervenções clínicas mais eficazes. Foi no âmbito dessa problemática, da compreensão teórica e clínica destes casos, que nossa pesquisa buscou percorrer. Objetivos Aprofundamento das reformulações técnicas e teóricas sobre a concepção do trauma, relacionando aos efeitos dos traumas precoces, enquanto experiências que não foram passíveis de serem representadas, representado pela figura clínica dos chamados casos difíceis ou casos limites. Estudar a estruturação e funcionamento dos casos difíceis, bem como problematizar a técnica, buscando subsídios e ferramentas teóricas e práticas, que permitam operar manejos terapêuticos de tais casos. Dentre as ferramentas produzidas pela teoria e técnica psicanalítica, a abordagem da transferência e contratransferência, na postura e tato do analista, no desenvolvimento de uma capacidade empática com o analisando. Para atingir nossos objetivos, tivemos como metodologia uma revisão bibliográfica de autores clássicos e contemporâneos da psicanálise, buscando formular hipóteses e correspondência com os principais temas da pesquisa. Durante a pesquisa foram realizados encontros grupais e semanais com alunos da graduação e pós-graduação, com orientação da professora Monah Winograd, nos quais foram feitas leituras, análises e debates acerca dos textos.

Dentre os principais textos estudados destacamos o do autor Thierry Bokanowski, o qual faz uma diferenciação das variações do conceito de traumatismo a partir das considerações fundamentais de S. Freud, propondo uma diferenciação das palavras trauma, traumático e traumatismo. Designou traumatismo como um nível de desorganização relacionado ao processo secundário que não abrangia a relação de objeto nem as ligações pulsionais e que se refira ao traumatismo sexual da teoria freudiana da sedução, representando a concepção genérica do traumatismo, que nos remete à teoria da sedução e ao sexual. Já o trauma parece mais apropriado para representar a lógica traumática mais precoce, mais arcaica, a qual comprometa os investimentos narcísicos e, consequentemente, a constituição do ego. O termo trauma designa essencialmente a ação negativa e desorganizadora da ação traumática, atacando o processo de ligação pulsional, negativizando assim o conjunto das formações psíquicas. Em contrapartida, o autor propõe a noção de traumático para descrever um tipo de funcionamento psíquico comum às duas variedades traumáticas, ligadas aquilo que da marca traumática, impele à compulsão, à repetição. O autor faz uso do termo traumático para designar o aspecto mais especificamente econômico do traumático, em relação ao despreparo, assim como a um desfeito para-excitatório. Em se tratando do manejo clínico foi estudado o texto Transferências, contratransferências e outras coisinhas mais do autor Luis Cláudio Figueiredo, foi entendido como contratransferência uma dimensão fundamental do modo do analista colocar-se diante ou, melhor dizendo, deixar-se colocar diante do analisando e ser por ele afetado. (FIGUEIREDO, 2003, p.59). Entretanto, o autor destaca a tendência ao equívoco: o de supor que a posição do analista é apenas da ordem de uma resposta e de uma reação às transferências de que é efetivamente alvo por parte do analisando. Menciona também o termo contratransferência primordial, a qual é definida como um deixar-se colocar diante do sofrimento antes mesmo de se saber do que e de quem se trata. Segundo o autor, esta contratransferência primordial corresponde justamente à disponibilidade humana para funcionar como suporte de transferências e de outras modalidades de demandas afetivas e comportamentais profundas e primitivas, vindo a ser um deixar-se afetar e interpelar pelo sofrimento alheio no que tem de desmesurado e mesmo de incomensurável, não só desconhecido como incompreensível. Ainda foi apresentada uma bibliografia complementar que possibilitou uma ampla compreensão dos aspectos metapsicologicos do nosso objeto de estudos.

Resultados Freud (1920) na atualização do pensamento metapsicológico e clínico vai repensar a sua compreensão sobre as pulsões, propondo um novo dualismo pulsional, e nos apresenta a noção da pulsão de morte e de pulsão de vida, que passam a englobar as pulsões de autoconservação e pulsões sexuais, a pulsão de vida é pensada como uma pulsão investida pelo impulso de ligar energias livres, promovendo a união de unidades, enquanto a pulsão de morte é pensada como uma energia que promove o desinvestimento, desligamento das unidades. Podemos pensar como dois princípios universais, catabolismo e anabolismo, a quebra de moléculas para gerar energia e a síntese. As pulsões de vida, por exemplo, como vínculo com as pessoas e as pulsões de morte o desvincula. Segundo Garcia Roza (1986) em Acaso e Repetição, a pulsão é externa ao aparelho psíquico, as pulsões são identificadas e caracterizadas pela maneira como elas se presentificam no psiquismo. Não havendo uma diferença de natureza, mas uma diferença na expressão no psiquismo, ou seja, no seu modo de atuação e seus efeitos; Até 1920 Freud vinha pensando a hegemonia do princípio do prazer como principio organizador do aparato psíquico, e logo depois da segunda guerra mundial, Freud começa a atender pacientes egressos da guerra, e na clínica em geral, que colocará em questão seus pressupostos teóricos na explicação do fenômeno da repetição da pulsão sexual, com a identificação de um tipo de repetição que não repete do passado conteúdos que estão sob o domínio do princípio de prazer. Na clínica, portanto, emerge um fenômeno que deflagra um problema sobre a hegemonia do princípio de prazer, a saber, da compulsão a repetição de conteúdos que repetem do passado experiências que nunca foram da ordem do prazer, e sim do desprazer. Em além do Princípio de Prazer, Freud (1920) vai colocar em questão se os processos psíquicos visam sempre a obtenção de prazer, ele enuncia que seria incorreto pensar na dominância do princípio de prazer sobre o curso dos processos mentais. O Princípio de Prazer vai então ser pensado como uma tendência, e não como um domínio. Aponta ele, que se tal dominância existisse uma quantidade imensa dos nossos processos mentais seria acompanhada pelo prazer ou conduziria a ele, e que em realidade não é o que ocorre. Conclui que o máximo que podemos afirmar é que existem nos processos psíquicos uma forte tendência no sentido do princípio de prazer. Ao invés de pensar em termos de dominância do princípio, ele nos convida a pensar o princípio do prazer como uma forte tendência, pois observamos que o princípio não atinge sempre o seu fim. A questão que podemos formular com Freud é; quais circunstâncias

impedem o princípio de prazer de realizar a sua finalidade? O que vamos assistir em 1920 é que os processos psíquicos ao invés da busca pelo prazer, vão operar em uma outra dimensão do funcionamento do aparato psíquico, relacionado com o trauma e com a pulsão de morte. A figura clínica nessa problemática é a neurose traumática. Os casos limites pensados a luz da metapsicologia, são compreendidos como sendo impulsionados pela pulsão de morte. A compulsão a repetição pode ser pensada em sua face negativa e positiva. O que ocasiona o desencadeamento de um processo de repetição caracterizado como mobilizado pela pulsão de morte, é que esta repete do passado experiências que não são nem nunca foram prazerosas, sendo desencadeada por um trauma. Freud (1920) ao postular a pulsão de morte, o faz, para explicar um outro motor de funcionamento do psiquismo, a saber da compulsão na repetição de conteúdos traumáticos, de experiências que diferem da repetição impulsionada pela pulsão sexual. O trauma em 1920 é percebido como um excesso de intensidades que incide sobre o psiquismo, e este por ser tomado de surpresa, ou por outras circunstâncias, encontra-se vulnerável, despreparado ao ataque, o que ocasiona o rompimento do escudo protetor. O escudo protetor é o próprio campo representacional, o ego. O que Freud (1920) procurou compreender foram os efeitos produzidos sobre o órgão da mente pela ruptura do escudo contra estímulos, e os problemas que se seguem em sua esteira. Dado a descrição do trauma de 1920, percebemos que as intensidades, o excesso, seja de estímulos endógenos ou exógenos, incidem sobre o aparato psíquico já constituído, causando uma efração. A partir desse modelo do trauma, a questão que se formula é: qual o efeito do impacto do excesso de intensidades em um aparato psíquico em constituição, nos momentos mais precoces da vida, no qual encontra-se desprovido de recursos para investir na absorção, ou metabolização dessas intensidades? Transportando a ideia do modelo econômico para os primórdios da vida, na qual o aparelho psíquico e as defesas ainda não se encontram desenvolvidas na sua sofisticação, Freud pensou através desse modelo o funcionamento da constituição psíquica diante dos excessos pulsionais, e que defesas e adoecimentos decorrem devido a prematuridade em lidar com excessos que acometem todo vivente. Na constituição do narcisismo, na constituição do psiquismo diante dos excessos pulsionais este aciona uma defesa primitiva, a autoclivagem narcísica e projeção, como processos de atomização, divisão da esfera egóica e encapsulamento dessas regiões mortíferas, que ocasionariam as chamadas patologias narcísicas indenitárias.

Estas falhas precoces do ego e do aparelho psíquico estão na origem dos estados de desamparo psíquico das quais as formas mais extremas podem ser inconscientes. Neste caso, elas se traduzem através de uma experiência psíquica destrutiva como agonia primitiva D.W. Winnicott ou Catástrofe interna (W. R. Bion 1962), que se traduzem em distúrbios de pensamento, estados de branco de vazios, sentimentos de não existência, de angústia de morte eminente, etc. (BOAKANOWSKI, 2005, P 32). Na constituição da organização psíquica, nos primórdios da vida, no momento próprio de sua formação, a criança está passando por um processo de desenvolvimento, no qual, os mecanismo de defesas estão em constituição, neste momento constitutivo, depara-se com as mais intensas experiências, de caráter excessivo, portanto, a criança diante dessas intensidades, não possuindo o psiquismo suficientemente desenvolvido, não seria capaz de processar inteiramente experiências muito aflitivas, avassaladoras e intensas, a criança não estaria provida de recursos simbólicos, ou de defesas mais desenvolvidas, para lidar com o excesso de estímulos, dependendo do meio para exercer um papel contenedor, de ligação dos excessos pulsionais. De acordo com Boakanowski (2005) os excessos precoces não processados têm a probabilidade de gerar feridas narcísicas, danos que vão ocorrendo no momento de constituição do Ego, este seria marcado por falhas, por buracos, fueiros, clivagens - gerando uma espécie de Estado dentro do Estado - este como um destino das intensidades excessivas, não processadas e, portanto, desorganizadoras. Esse destino para o traumatismo impede a transformação processual, produzindo efeitos destrutivos - energias livres hiperintensas, com as quais o sujeito não consegue processar e deslizar, mantendo-se refém de uma compulsão a repetição. Para S. Freud, o trauma é uma ferida precoce, ataque precoce ao ego, ferida de ordem narcísica, que pode dar lugar a zonas psíquicas mortas no interior do ego, um estado dentro de um estado (BOKANOWSKI, 2015, P. 31). Essas situações de desamparo e agonia experienciadas no momento de constituição do aparato psíquico são identificadas como sendo detonadas por respostas inadequadas do objeto primário. Ferenczi nos Textos Confusão de línguas e A Criança mal acolhida e Sua Pulsão de Morte nomeou esse desamparo e a situação traumática como sendo ocasionado pelo mal acolhimento do meio e o desmentido por parte das figuras cuidadoras. Ferenczi no seu texto A Criança Mal Acolhida percebeu que na ausência de ligação psíquica promovida pelo encontro vital com a família, a criança tenderia a autodestruição, à

doença e à apatia, pois a pulsão mais arcaica a de morte não seria ligada e continuaria exercendo seus efeitos no psiquismo (ASSUNÇÃO MORENO e COELHO JUNIOR, 2013, p. 39). Para as autoras Mello e Herzog (2012) os traumas precoces, enquanto experiências que excedem as forças de enfrentamento, provocam o engendramento do indivíduo sob o impacto da pulsão de morte, instaurando um funcionamento psíquico situado além do princípio de prazer, ou seja em traumático, movido pela compulsão a repetição. Quase sempre quando pensamos em reposta inadequado, pensamos em uma falha, em um déficit, mas é importante que resposta inadequada é uma resposta que também pode ocorrer tanto como ausência ou excesso dos cuidados do meio. Desqualificante na medida em que não reconhece as capacidades da criança, e exige mais que aquele sujeito em formação tem como recurso em seu repertório para lidar. Essas respostas inadequadas por parte do meio e dos cuidadores não conseguem conter, metabolizar, simbolizar, ligar a descarga pulsional, através dos recursos simbólicos, representativos. Segundo Bokanowisck; Pelo fato das respostas inadequadas e desqualificantes por parte do objeto, que não pode nem conter, nem metabolizar, nem ligar, a descarga pulsional por uma ação fantasmática, a criança se vê presa a um estado de terror e horror, pela falta de capacidade de introjetar o crescimento pulsional. A intensidade do trauma provoca então um curto-circuito nos mecanismos de recalcamento reforçando os mecanismos de negação e de clivagem, de identificação projetiva patológica, de fragmentação, etc. (BOKANOWSKI, 2005, p. 31). A resposta inadequada do ambiente pode se dar por falta ou por excesso, e o resultado é que ela impede a criança de gerir as suas pulsões libidinais e com isso constituir um espaço psíquico para poder transformá-las. A resposta inadequada do ambiente atrapalha a construção dos limites desse espaço psíquico, incide sobre a possibilidade de gestão e de manejo das próprias pulsões. Decorrem dessas situações os efeitos de danos precoces do ego em formação, que se convencionou chamar de feridas narcísicas. O trauma referido aos momentos mais primitivos da constituição egóica, é pensado a partir de processos defensivos patológicos mais primitivos, como a autoclivagem narcísica, caraterizada pelo estilhaçamento, como algo que não pode ser representado, ou seja, assimilado, metabolizado, simbolizado. O trauma ocorre na tensão com o meio, nos cuidados

e descuidados que são ofertados à criança, no manejo e auxilio da ligação e destino de sua pulsionalidade, e das intensidades que lhe atravessam. Knobloch (1998) ressalta que pra Ferenczi a criança vivência a intensidade da expressão do adulto, ocorre uma confusão de línguas, entre a linguagem da paixão do adulto e a linguagem da ternura da criança. A criança demandante de ternura e verdade não entendem as manifestações de ameaças e punições vivenciando como um choque violento, como um terrorismo. Na confusão de línguas, os adultos ao desmentirem o que as crianças estão vivenciando intensamente, violentamente, negam que algo tenha acontecido, por parte do adulto a experiência é desvalorizada, afirmando para criança que não é nada, não aconteceu, ocasionando o que Ferenczi nomeou de desmentido e seus efeitos traumáticos patológicos. Este é ponto central da constituição do traumatismo. O que é desmentido é algo vivido como intenso, violento e traumático. A criança por meio de seu relato, busca uma mediação por parte do adulto como auxílio para assimilar a experiência, dar um destino a intensidade que lhe acometeu, ela busca a confirmação de algo que não entendeu, a realidade daquilo que viveu. Assunção Moreno e Coelho Junior (2013) no artigo Estar fora de si, comentam que em relação aos desdobramentos psicopatológicos dos traumatismos precoces, estes que ocorrem no momento de constituição do psiquismo infantil, ocasionam a probabilidade do trauma ter como resultado a constituição de um psiquismo desestruturado, fissurado. Produzindo sintomas como sentimento de vazio, não reconhecimento de seus sentimentos, indiferença frente a fatos relevantes e ainda a constituição de uma falta de sentido para vida. A noção de desmentido em Ferenczi segundo as autoras nos possibilita uma compreensão da etiologia do trauma precoce, o desmentido é um fator fissurante, portanto, este é entendido como potencial traumático. O trauma não elaborado psiquicamente se manifesta em passagens ao ato, em somatizações, em adições, em projeções ou em delírios. O desmentido é um fator patogênico, pois a criança ao se dirigir ao adulto buscando confirmar a experiência vivida, por não entender determinados acometimentos aflitivos, com sua impossibilidade de representar, simbolizar o que está se passando com ela, recorre ao adulto, e diante do relato da linguagem da criança, o adulto, desmente, nega a experiência, afirmando que nada ocorreu. Essa negação da experiência violenta inviabilizaria a inscrição psíquica do evento, produzindo um movimento de clivagem, encapsulamento, um fueiro". Como a criança não consegue dar sentido ao que vivência, buscando no adulto aquilo que ele não dá, na negação, essa significação é negada e desmentida, não permitindo, portanto, uma inscrição. "É essa incompreensão, ou melhor, esse desmentido, essa negação

por parte do adulto, de que algo de fato ocorreu para essa criança, que inviabiliza a inscrição psíquica de todo o evento traumático". (KNOBLOCH, 1998, p. 51). Esse mecanismo de defesa mais primitivo conceituado de autoclivagem narcísica também é nomeado de autotomia. A metáfora de entendimento desse modelo é o do despedaçamento, da fragmentação. A imagem da autotomia é a de um processo de fragmentar-se em partes, partes de si mesmo que vão ser deixadas - para sobreviver o ego deixa partes de si mesmo, fragmentando-se. A clivagem é um processo também de encapsulamento disso que foi clivado. Regiões não processadas ocasionando por este tipo de traumatismo, gerando um traumatismo em vácuo, porque o que se constitui são pontos de vácuo, é como se houvesse um traço de alguma coisa que não se inscreveu, é um traço, de um não traço. É diferente da inscrição de um traço psíquico, há o traço, mas não de forma plena, porque não pode ser metabolizado, ou seja, a metabolização psíquica, não ocorre por falta de um ego auxiliar, pela resposta inadequada e desqualificante do objeto ou do ambiente. O processo autoclivagem narcísica, além de ser um processo de defesa, ocasiona uma impossibilidade de inscrição de algo que foi experienciado violentamente, e esta experiência não ganha expressão psíquica, significa que foi uma experiência que não foi assimilada, representada, simbolizada, que teve como destino a autoclivagem narcísica. Como e porque ocorre a autotomia enquanto processo de autoclivagem? Segundo Knobloch (1998) Ferenczi compreende o trauma como uma comoção, uma reação a uma excitação interior ou exterior, que modifica o Eu, produzi uma modificação, gerando no Ego uma neoformação. Implicando uma destruição parcial ou total da dissolução do Eu precedente. Um novo Ego se forma a partir dessa explosão e atomização. Ferenczi descreve as vicissitudes intrapsíquicas do trauma como um choque psíquico acompanhado de uma desintricação pulsional, que gera uma tendência à autodestruição, denominada autoclivagem narcísica. Esta clivagem, segundo o autor, ocorre na própria esfera psíquica e se trata de uma defesa, sendo que a parte sensível ao trauma é brutalmente destruída e desinvestida o que também explica a amnésia retroativa - enquanto a que sobrevive sabe tudo, porém não sente nada. Desta forma, Ferenczi descreve o que em 1938 será teorizado por Freud como cisão egóica, decorrente da recusa de uma situação traumática. (MORENO e COELHO, 2013, p. 36).

A comoção é vivida como angustia devido a incapacidade para adaptar-se à situação desagradável. Este sentimento de desagradabilidade produzida pelo esfacelamento seria eliminado, caso fosse eliminada, ou se o ego se subtraísse a ela. Com efeito, a possibilidade de eliminar essa irritação, a válvula de escape se dá pela possibilidade de autodestruição, ou seja, de auto fragmentação do próprio Ego, clivando e encapsulando no seu interior partes que não conseguiram ser metabolizadas. A defesa tem, portanto, como reação a autoclivagem. Um processo no qual uma das consequências é a não inscrição das marcas mnésicas, destas impressões dolorosas. Para Mello e Herzog (2012) a ação da clivagem afeta diretamente as fronteiras psíquicas entre interioridade e a exterioridade, os limites entre as instâncias psíquicas e a interseção psicossoma. Nesse sentido, no lugar de uma construção de sólidos organizadores tópicos, dinâmicos e econômicos do funcionamento mental, conta-se com a fabricação de barreiras protetoras, simultaneamente, rígidas e frágeis. (MELLO e HERZOG, 2012 p. 76) Estas experiências que não são inscritos, não são investidos como experiências psíquicas do passado. Ficam como experiências sempre presentes, é como se o sujeito não as superasse, é o presente que não passa e que não se torna passado, pois para se tornar passado é preciso ser absorvido pela rede representacional e historicizado, isso é obra da simbolização, das processualidades psíquicas. Aqui é como se essas processualidades psíquicas encontrassem um ponto de parada. Segundo Boakanowski (2005), um psiquismo constituído de fueiros, de zonas mortas, torna-se mais vulnerável aos ataques pulsionais, mais vulneráveis no seu tecido representacional do para-hesitação. Um dos efeitos do trauma precoce são defesas primárias, nesses casos existem compulsões a repetição a fixação em defesas primárias, ou a dificuldade de emergir defesas secundárias, e também os buracos psíquicos, os fueiros, ficam como buracos operantes, que resultam numa fragilidade egóica, ocasionada por intensidades não processadas. Destacamos com Bokanowski os aspectos do impacto da clivagem narcísica; Essa clivagem acarreta uma evacuação/expulsão/ejeção de uma parte do ego; a parte do ego esvaziada é substituída por uma identificação ao agressor, com seus afetos do tipo terrorismo do sofrimento, a parte expulsa/projetada do ego torna-se então onisciente, onipotente e sem afetividade. Como escreve Ferenczi, o sujeito cliva sua própria pessoa em uma parte dolorida, e brutalmente destrutiva, e em outra parte onisciente e insensível. (BOKANOWSKI, 2005, p. 36).

O trauma precoce é entendido como experiências de algo visto ou ouvido, experiências ou impressões relacionado ao que por sua intensidade foi vivido sem a possibilidade de ser digerido psiquicamente, podendo ser de ordem externa ou interna, trauma é o que por sua intensidade foi vivido sem ser digerido psiquicamente, ou seja, foi experimentado corporal ou sensorialmente, resultando em marcas vestígios ou impressões que por sua intensidade resultou em marcas, que por sua inscrição como estando anterior a aquisição da linguagem só puderam ser minimamente processados, através de defesas primárias e ainda rudimentares. Casos de situações limites, entre neurose e psicose, e situações limites, os casos difíceis apresentam casos de traumas precoces, que afetaram a constituição egóica, o ego se tornou frágil, daí suportar a vida se torna uma tarefa árdua e difícil. São processos de defesas daquilo que eles não processaram, pois não tinham recursos, se deu em um momento muito precoce. Bebês que tem que dar conta de intensidades muito grandes para os recursos que possuem, lançando mão de defesas como a clivagem, produzindo partes psíquicas encapsuladas, tendo como consequência uma nervura, que frente a uma situação que atualize aquela, são essas situações que se repetem. Bokanowisck sublinha como Freud descreve em Moises e o monoteísmo (1939) a clivagem narcísica nos efeitos negativos do trauma : Impede o processo de ligação pulsional, cria efeitos na constituição do narcisismo e acarreta importantes carências representativas que mutilam o ego para sempre; Engendra uma paralisia psíquica ou uma sideração, mantendo um terrorismo do sofrimento e uma dor podendo levar à desesperança, em relação a interiorização de um objeto primário pouco confiável. Ocasiona, enfim, uma sensação de desamparo primário que durante toda vida é reativado nas menores ocasiões e dá lugar a transferências passionais, a depressões de transferência ou de reações terapêuticas negativas etc., todas as testemunhas da importante destrutividade psíquica gerada. (BOKANOWSKI, 2005, p. 30). Casos difíceis em Ferenczi são precursores do estudo de casos limites, estes possuem um prognostico de difícil de manejo clínico, devido a não serem experiências que estão no domínio da representação. Nesses casos, as repetições têm como motor a pulsão de morte, é uma repetição que Freud em 1920 identificou na sua face mais mortífera e igualmente na sua força de ao repetir, permitir que nesse próprio processo de repetição, essas forças possam ser processadas, assimiladas, inscritas, representadas e simbolizadas.

A clínica e o manejo da transferência e da contratransferência Ao fazer a leitura de textos acerca do assunto, estudo dirigido e debates nos encontros do grupo de pesquisa o qual possibilitou a realização deste trabalho, ficou entendido como transferência um fenômeno essencial em que se baseia o processo de qualquer terapia analítica. Inicialmente Freud a considerava como uma forma de resistência ao tratamento, uma forma de amor que a paciente desenvolvia pelo médico. Posteriormente a considerou resultante de reimpressões e como novas edições de antigas experiências traumáticas. Dizia, este amor consiste em novas edições de antigas características e que ele repete reações infantis (FREUD, 1915, p. 218). Ao falar mais posteriormente a respeito da transferência Freud (FREUD, 1905, p. 113) escreve: Que são transferências? São as novas edições, ou fac-símiles, dos impulsos e fantasias que são criados e se tornam conscientes durante o andamento da análise; possuem, entretanto, esta particularidade, que é característica de sua espécie: substituem uma figura anterior pela figura do médico. Em outras palavras: é renovada toda uma série de experiências psicológicas, não como pertencentes ao passado, mas aplicadas à pessoa do médico no momento presente. Podem ser repetidas a partir da preservação do setting terapêutico, que é a soma de todos os procedimentos que organizam, normatizam e possibilitam o funcionamento grupal (ZIMERMAN, 1999, p. 444). Este espaço mantido e preservado traz ao paciente uma representação de segurança, onde ele poderá experimentar novamente e modificar as vivências anteriores que não foram bem resolvidas. O percurso do tratamento se move dentro do drama e da trama transferencial, caminhando entre passado e presente, entre obstáculo e função terapêutica, entre alianças e repúdios ao manejo clínico, configurando dificuldades que revelam a singularidade de cada paciente. E aí é que está: o acolhimento a esta singularidade leva o paciente a se sentir reconhecido em sua humanidade. Luís Claudio Figueiredo vai destacar esse ponto ao abordar a questão da contratransferência:

Aquém das contratransferências no sentido estrito, que são respostas do analista às transferências do paciente, um aspecto essencial da dinâmica do trabalho analítico embora seja também uma fonte de impasses, há uma condição da possibilidade de psicanalisar que se configura como uma contratransferência primordial, um deixar-se colocar diante do sofrimento antes mesmo de se saber do que e de quem se trata. Esta contratransferência primordial corresponde justamente à disponibilidade humana para funcionar como suporte de transferências e de outras modalidades de demandas afetivas e comportamentais profundas e primitivas, vindo a ser um deixar-se afetar e interpelar pelo sofrimento alheio no que tem de desmesurado e mesmo de incomensurável, não só de desconhecido como incompreensível. Todo o psicanalisar, no que implica lidar com as transferências e outras coisinhas mais depende desta contratransferência primordial (Figueiredo, 2002, p. 2). Aqui o analista se vê confrontado com o que Figueiredo vai chamar uma reserva de alma. Diz ele: nesta reserva de alma residem nossas teorias, nossos desejos, nossa capacidade de pensar, falar, simbolizar e sonhar. Mas aí reside, fundamentalmente, nossa capacidade de ser afetado e interpelado pelo sofrimento (Figueiredo, 2002, p. 18). Dessa forma, estamos diante de uma ampla disponibilidade em ir sendo junto com o paciente, podendo chegar lá, diante do irreconhecível, do estranho, do absurdo. No meio do caminho clínico, existem transferências e contratransferências que podem revirar uma história de vida e engendrar novas perspectivas pessoais. Ou não. Pode dar errado. Sobre isso, Ferenczi acrescenta em seu artigo sobre a Elasticidade da técnica: Em hipótese alguma deve-se ter vergonha de reconhecer, sem restrições, os erros passados. Que nunca se esqueça que a análise não é um procedimento sugestivo, em que o prestígio do médico e sua infalibilidade devem ser preservados a qualquer custo. A única pretensão levantada pela análise é a da confiança na franqueza e sinceridade do médico, e a esta, o reconhecimento sincero de um erro não ameaça (Ferenczi, 1928/1988, p. 307).

Portanto, a possibilidade de alcance sobre o que se passa na clínica está em manter uma tensão entre o que é partilhável as palavras que são comuns e as que são singulares, específicas de cada um e algo que não se compartilha a não ser através da arte, ou da transferência. E que talvez não seja redutível a nenhuma narrativa científica. Há que viver, experimentar; o que se impõe são as forças do acontecimento, o desenrolar da vida. Nesse desenrolar, a transferência ocorre espontaneamente em todas as relações humanas, já que é incessante este movimento de dentro para fora, de fora para dentro. Logo, a transferência emerge da vida, porque ela vai apontar para um infindável vir-a-ser; nesse sentido ela é estruturante. Na clínica psicanalítica ela passa a ser acolhida como a tradução viva dos vínculos humanos, e é a partir daí que se enraízam a manutenção e a validade do tratamento. Aplicando os conhecimentos teóricos à clinica ampliada, se faz necessário que haja uma consciência por parte do analista de seus afetos, para que estes não sejam atuados, tendo em vista que é sentido diretamente o efeito das atuações e transferências do analisando pelo analista. É necessário que o sentir do terapeuta seja utilizado como um instrumento de crescimento pessoal para eles e também para seus pacientes. O terapeuta pode guiar-se por sua contratransferência, e essa atitude indica uma comunicação de inconsciente para inconsciente. Segundo Freud (apud LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p. 147): Todos possuem no seu próprio inconsciente, um instrumento com que podem interpretar as expressões inconscientes do outro. Pensando no conceito de identificação projetiva em que o paciente atribui ao terapeuta características que imaginam ser dele, é preciso pensar no terapeuta em relação a estas projeções. Neste ponto, contratransferência e identificação projetiva podem se confundir e faz-se necessário uma diferenciação entre elas, pois como saber se o que o terapeuta sente é uma emoção projetada ou uma emoção contratransferencial. Bion fala sobre os sentimentos do analista na clínica: A experiência da contratransferência parece-me possuir uma qualidade inteiramente distinta, que deveria capacitar o analista a diferenciar a ocasião em que é objeto de uma identificação daquela em que não é. O analista tem uma perda temporária de insight, uma sensação de experienciar sentimentos intensos, e ao mesmo tempo, a crença de que

a existência destes é inteira e satisfatoriamente justificada pela situação objetiva (Bion, apud Hinshelwood, 1992, p. 198). Todos estes conceitos e idéias reforçam o fato de que a psicoterapia analítica se dá através do vínculo, onde se revivem antigas e se criam novas situações, onde sentimentos e afetos são vividos intensamente. Conclusões Os aspectos etiológicos dos casos limites, das patologias narcísico indentitários, decorrem do impacto dos traumas precoces, no momento de constituição do aparato psíquico, produzindo um quadro sintomatológico de amplo espectro, tais como sentimento de vazio, desamparo, dificuldade de simbolização, etc. O conceito de trauma precoce está no centro da clínica contemporânea, a clínica contemporânea interessou-se cada vez mais pelos traumas primários. O trauma primário gera uma ação negativa desorganizadora, incidindo sob a própria constituição psíquica. Um dos aspectos do favorecimento do trauma precoce pode estar ligado a situações de desesperança e de agonia, ainda devido a respostas inadequadas e desqualificantes do meio, na gestão e simbolização, de papel contenedor, cuidador, que não pôde nem conter, nem metabolizar, nem ligar, a descarga pulsional por uma ação fantasmática, a criança se vê presa a um estado de terror e horror. A constituição subjetiva é fundamentalmente mediada na relação com o meio, com o outro, com os cuidadores. O ingresso da criança na cultura e na linguagem é uma experiência catastrófica por implicar um movimento de estruturação e reestruturação, de organização e reorganização, a assimilação da realidade mediada pelo outro pode ser catastrófica, o papel de mediador do outro pode ocasionar um movimento estruturante ou desestruturante e traumático, pelo que Ferenczi nomeou de desmentido. O conceito de desmentido e sua atualidade permitem uma compreensão dos efeitos traumáticos por ausência ou excesso de cuidados do meio, em outras palavras, o desmentido é uma espécie de reposta inadequada, como uma falha, em um déficit, do meio, e ainda, igualmente importante que essa resposta inadequada é uma resposta também excessiva, portanto os extremos das repostas do meio como ausência ou excesso. O trauma ocorre na tensão com o meio, nos cuidados e descuidados que são ofertados à criança. O trauma está referido a uma etiologia que remonta a constituição narcísica, ao momento de constituição do Ego, que tem como um dos fatores preponderantes o papel do meio, ou seja, a ação do ambiente no amparo constitucional do sujeito. As primeiras

impressões dos objetos articuladas a ação do ambiente vão reforçar ou não as primeiras operações de defesas, acionando tipos de defesas mais precoces, como a negação, a autotomia e a projeção, de tal maneira que na vida adulta esses sujeitos vão poder apresentar esses modos de defesas primários. De acordo com Bokanowisk (2005), esse tipo de caso produz uma qualidade transferencial atravessado por um ódio, devido ao tipo de investimento que submete os novos objetos a uma compulsão de anulação ou desvalorização dos vínculos. O ódio reativo durante a análise, as angústias, as fixações masoquistas e mortíferas, são o motor da transferência, abrindo uma grande problemática ao trabalho do psicanalista e de sua contratransferência. Enfim, sobre o processo de transferência e contratransferência na clínica ampliada, faz-se necessário entender e colocar em prática o quanto o analista precisa se perceber para poder então perceber o que está sendo dito, mesmo quando este dizer não se faz na linguagem verbal. Para esta compreensão é preciso estudo teórico, mas acima de tudo é preciso ter disponibilidade para viver com o paciente toda intensidade de sentimentos, emoções e sensações trazidas por eles. Teoria e a vivência se completam e uma não teria o mesmo sentido sem a outra. Referências bibliográficas 1- ASSUNÇÃO, M. M. e COELHO. N. E. Estar fora de si traumatismo precoce e a atualidade do conceito de desmentido. Percurso 51; p 33-44; dezembro de 2013. 2- BION, Wilfred Ruprecht O Aprender com a Experiência. Rio, Imago, 1991. 3- BOKANOWSKI, T. Variações do conceito de traumatismo: traumatismo, traumático, trauma. Revista Brasileira de Psicanálise, v.39, n.1, p.27-37. 2005. 4- FERENCZI. S. A Criança Mal Acolhida e Sua Pulsão de Morte. Obras Completas (Vol. 4). São Paulo: Martins Fontes. 1992. (Trabalho original publicado em 1929) 5- FERENCZI, S. (1988). A elasticidade da técnica psicanalítica. In Escritos psicanalíticos 1909-1913. Rio de Janeiro: Taurus. (Trabalho original publicado em 1928.) 6- FIGUEIREDO, L. Transferência, contratransferência e outras coisinhas mais. Revista de Psicanálise, n.168, p.58-81, abril. 2003.

7- Figueiredo, L. C. (2002). Transferência, contratransferência e outras coisinhas mais. Trabalho apresentado em encontro da Formação Freudiana (Rio de Janeiro). 8- FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise). In: Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996. 9- (1974). Recordar, repetir e elaborar. ESB, vol. 12. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914.) 10- (1920). Além do princípio do prazer. In: Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996. 11- (1974). Fragmentos da análise de um caso de histeria. ESB, vol. 7. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1901) 12- JUNQUEIRA, C. Rumo à metapsicologia dos limites: o diálogo ente teoria pulsional e a teoria das relações de objeto e algumas de suas consequências Freud, Winicott e Green. Tese (Doutorado programa de Pós-Graduação em Psicologia.) Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 2010. 13- KNOBLOCH, Felícia. O tempo do traumático. São Paulo: Escuta, 1998. 14- LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1983. 693p. 15- MELLO, R. e HERZOG, R. Psiquismos clivados: vazio de sentido e insistência no existir. Cad. Psicanál. CPRJ. Rio de Janeiro, v 34, n. 27, p. 65-81, jul/dez. 2012. 16- ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica & uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 1999. 478 p.