AVALIAÇÃO DA CONTAMINAÇÃO POR HIDROCARBONETOS POLICÍCLICOS AROMÁTICOS NAS ETAPAS DE FABRICAÇÃO DA CERVEJA Michael Rafael Dresch 1, Eniz Conceição Oliveira 2, Claucia Fernanda Volken de Souza 3 Resumo: Os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) são compostos presentes na natureza como contaminantes de solos, ar, água e alimentos, que apresentam atividade mutagênica e carcinogênica. A contaminação por HPAs em alimentos deve-se a processos como secagem, torrefação e defumação. O objetivo deste trabalho foi determinar a presença de HPAs em diferentes etapas do processo de fabricação de cerveja. Foram elaborados três lotes de cerveja no estilo Rauchbier e em diversas etapas foram coletadas amostras para extração e determinação do teor de HPAs. Somente o malte defumado apresentou contaminação por HPAs totalizando 1,19 mg.kg -1, sendo identificados o benzo[a]pireno e o fluoreno. Os resultados obtidos demonstram a necessidade de um maior controle no processo de elaboração de cerveja em relação à presença de HPAs na matéria-prima malte. Palavras-chave: Hidrocarbonetos policíclicos aromáticos. Cerveja. Malte. Torrefação. Defumação. 1 INTRODUÇÃO Os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) representam uma família de compostos orgânicos formados somente por átomos de carbono e hidrogênio, contendo dois ou mais anéis aromáticos condensados. Esses compostos são produzidos por atividades antropogênicas, principalmente pela queima incompleta de matéria orgânica (madeira, combustíveis fósseis, óleo e gás), ou por atividades naturais, como por exemplo, atividades vulcânicas (DANYI et al., 2009). Estes compostos, além de altamente tóxicos, apresentam atividade mutagênica e carcinogênica (INTERNATIONAL..., 1983). As bebidas e os alimentos são algumas das maiores fontes de exposição dos seres humanos aos HPAs. Os alimentos podem ser contaminados por HPAs por meio do contato com partículas do ar atmosférico, solo e água, ou durante as etapas de processamento, principalmente as que utilizam altas temperaturas como secagem, torrefação, defumação ou diferentes formas de cozimento (CARUSO; ALABURDA, 2008; SALGUEIRO et al., 2008). Vários estudos têm sido realizados comprovando a presença desses compostos em alimentos in natura ou processados, além de bebidas e águas (TFOUNI, 2007; CAMARGO; TOLEDO, 2002). Falcó et al. (2003) avaliaram a contaminação humana por HPAs em diferentes alimentos da dieta. As análises deste estudo estimaram a presença de 16 HPAs no consumo diário da população avaliada. Para homens adultos estimou-se a ingestão de 8,4 µg/dia, adolescentes de 8,2 µg/dia e crianças de 7,2 µg/dia. 1 Químico Industrial - Centro Universitário UNIVATES. mrdresch@yahoo.com.br 2 Doutora em Química - Professora do Centro Universitário UNIVATES. eniz@univates.br 3 Doutora em Biologia Celular e Molecular-Professora do Centro Universitário UNIVATES. claucia@univates.br - 35 -
A cerveja é uma bebida de ampla difusão e intenso consumo, sendo conhecida desde remota antiguidade em diversos países do mundo. Tem como principal mercado consumidor a Europa, sendo que a República Tcheca, Alemanha e o Reino Unido possuem o maior consumo per capita em litros por ano (BAMFORTH, 2005). O Brasil é o quarto maior produtor mundial de cerveja, sendo superado apenas pela China, Estados Unidos e Alemanha (MORADO, 2009). O malte de cevada é uma das principais matérias-primas da fabricação da cerveja. Durante o processo de maltagem, a cevada é submetida a diversos processos, tais como secagem, torrefação e, em alguns casos, defumação, processos estes que podem resultar na formação de HPAs (CARUSO; ALABURDA, 2008). Nesse contexto, o objetivo deste trabalho foi identificar e quantificar a presença de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos nos maltes empregados como matéria-prima para fabricação de cerveja e em diferentes etapas do processo de elaboração desse produto. 2 MATERIAIS E MÉTODOS 2.1 Padrões e reagentes Foram utilizados os solventes metanol, n-hexano, ciclohexano, diclorometano e acetona, todos de grau cromatográfico, e da marca MERCK. Os padrões individuais de HPAs e a mistura padrão dos 18 HPAs na concentração de 2000 mg.l -1 eram das marcas Sigma-Aldrich e Supelco, respectivamente. 2.2 Processo de elaboração da cerveja A cerveja elaborada para este estudo foi do tipo defumada - Rauchbier, seguindo o padrão da Beer Judge Certification Program (BEER..., 2008). Para elaboração de 1 lote de 20 L de cerveja foi utilizada a seguinte formulação: 3 kg de malte Pilsen, 2 kg de malte defumado, 20 g de lúpulo Saaz, 11 g de levedura de baixa fermentação e 32 L de água mineral. Foram elaborados três lotes dessa mesma formulação. A Figura 1 mostra as etapas do processo de fabricação da cerveja empregado nesse trabalho, conforme descrito por Varnam e Sutherland (1994), com os respectivos pontos de coletas das amostras que foram analisadas quanto à presença de HPAs. - 36 -
Figura 1 - Etapas do processo de fabricação da cerveja Conforme mostra a Figura 1, o primeiro ponto de coleta foram os dois maltes utilizados como matérias-primas e os outros seis pontos foram coletados durante o processo de fabricação da cerveja. Assim, foram coletadas oito diferentes amostras de cada um dos três lotes elaborados, totalizando dessa forma 24 amostras que foram submetidas às etapas de extração, identificação e quantificação dos HPAs presentes. 2.3 Extração dos HPAs do malte Para a extração dos HPAs dos maltes Pilsen e defumado foram pesados de 2 a 4 g da amostra em um frasco de 22 ml, com tampa de polipropileno. A seguir, foram adicionados 10 ml de KOH metanólico 1,5 M e a mistura permaneceu em banho-maria a 80 ºC por 170 minutos para saponificação, sendo que a cada 20 minutos os frascos foram agitados. As amostras foram resfriadas até temperatura ambiente e, após a adição de 10 ml de cicloexano, os frascos retornaram para o banho-maria por mais cinco minutos. A seguir, as amostras foram novamente resfriadas até a temperatura ambiente, e centrifugadas a 3.000 rpm por 15 minutos. Coletou-se o sobrenadante e reduziu-se o volume da amostra em fluxo de argônio. Colocou-se a amostra em balão volumétrico de 1 ml, adicionou-se o padrão interno (bifenila) e completou-se o volume com diclorometano. Todas as amostras foram extraídas em triplicata. - 37 -
2.4 Extração dos HPAs das amostras do processo de elaboração da cerveja Para a extração dos HPAs das amostras coletadas ao longo do processo de elaboração da cerveja foi utilizado o método de extração em fase sólida (EFS), conforme Rivelino et al. (2007), com os cartuchos da Chromabond C18ec, de 6 ml com 500 mg de sílica Octadecil de fase estacionária. No condicionamento dos cartuchos para EFS utilizaram-se quatro alíquotas de 10 ml de diclorometano, quatro alíquotas de 10 ml de metanol e quatro alíquotas de 10 ml de água milli-q com um fluxo de 6 ml.min -1. As amostras foram adicionadas nos cartuchos utilizando o vácuo para forçar sua passagem. Os cartuchos foram lavados com 10 ml de água milli-q e para eliminar a água contida nos cartuchos utilizou-se o gás argônio por 30 minutos e vácuo. Após, os HPAs foram eluídos dos cartuchos com duas porções de 1 ml da mistura de solventes acetona/diclorometano na concentração de 1:1 (v/v). Evaporou-se o solvente sob fluxo de argônio, transferiu-se a amostra para um balão volumétrico de 1 ml, adicionou-se o padrão interno (bifenila) e completou-se o volume com diclorometano. Todas as amostras foram extraídas em triplicata. 2.5 Análise cromatográfica dos HPAs Os HPAs foram determinados por um cromatógrafo a gás com detector de ionização em chama (CG-DIC) Agillent 6890N, com coluna capilar de sílica fundida OV-5 (metil silicone com 5% de grupos fenila) com 0,25 mm de diâmetro interno, 0,25 µm de espessura de filme de fase estacionária e 30 m de comprimento. Injetou-se no cromatógrafo o volume de 1 μl de cada amostra em triplicata. As condições cromatográficas definidas para os HPAs, baseadas em Simon; Palme e Anklam (2005), foram: 120 C (0 min); 10 C.min -1-220 C (0 min); 2 C.min -1-250 C (5 min); 5 C.min -1-280 C (10 min); temperatura do injetor: 280 ºC; temperatura do detector: 300 ºC; razão de split: 1:50. O gás de arraste utilizado foi o hidrogênio. 3 RESULTADOS E DISCUSSÕES A Figura 2 apresenta o cromatograma (CG-DIC) para a mistura padrão de HPAs e bifenila na concentração de 100 mg.l -1 utilizado para a determinação dos HPAs nas amostras dos maltes coletadas ao longo do processo de elaboração da cerveja. Na Tabela 1 podem ser observadas as concentrações médias dos HPAs determinadas nas amostras de malte e coletadas durante as diferentes etapas do processo de elaboração da cerveja. - 38 -
Figura 2 - Cromatograma da mistura de dezoito HPAs e bifenila na concentração de 100 mg.l -1 para cada padrão. Identificação dos picos: 1. naftaleno; 2. 2-metil-naftaleno; 3. 1-metil-naftaleno; 4. bifenila; 5. acenaftileno; 6. acenafteno; 7. fluoreno; 8. fenantreno; 9. antraceno; 10. fluoranteno; 11. pireno; 12. benzo[a]antraceno; 13. criseno; 14. benzo[b]fluoranteno; 15. benzo[k]fluoranteno; 16. benzo[a]pireno; 17. dibenzo[a,h]antraceno; 18. benzo[g,h,i]perileno; 19. indeno[1,2,3-c,d]pireno. Detectou-se a presença de HPAs apenas na amostra de malte defumado empregado como matéria-prima na elaboração das cervejas. Os HPAs identificados nessa amostra foram fluoreno e benzo[g,h,i]perileno. Em todas as outras amostras, tanto do malte Pilsen quanto das provenientes das diferentes etapas do processo de elaboração da cerveja, não foram identificados HPAs. Tabela 1 - Resultados * em mg.kg -1 dos HPAs identificados e quantificados nas amostras de malte e nas diferentes etapas do processo de elaboração da cerveja. Amostra HPA Fluoreno Benzo[g,h,i]perileno Malte Pilsen Nd Nd Malte defumado 0,35 ± 0,13 0,84 ± 0,66 Mistura malte/água Nd Nd Mosto após maceração Nd Nd Mosto após fervura Nd Nd Cerveja após fermentação Nd Nd Cerveja após maturação Nd Nd Cerveja engarrafada Nd Nd *Média de três lotes. Nd - Não detectado A Figura 3 apresenta o cromatograma do malte defumado com os picos dos HPAs identificados e quantificados nessa amostra. - 39 -
O presente estudo revelou a presença de dois HPAs dos 18 estudados, sendo que ambos são considerados prioritários pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (WENZL et al., 2006). Segundo a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer o composto benzo[g,h,i]perileno pertence à classe 2B, que é classificada como possivelmente cancerígena em humanos. Já o fluoreno pertence à classe 3, classificada como não cancerígena em humanos (INTERNATIONAL..., 1983). O teor de benzo[g,h,i]perileno quantificado no malte defumado do presente estudo (0,84 mg.kg -1 ) foi oito vezes maior que o determinado por Joe et al. (1982), que analisaram diferentes amostras de malte e encontraram teores máximos de 0,1 mg.kg -1. Figura 3 - Cromatograma da amostra de malte defumado Embora a matéria-prima malte defumado tenha apresentado uma contaminação elevada de benzo[g,h,i]perileno e fluoreno, não foram detectados HPAs nas amostras coletadas ao longo das diferentes etapas de elaboração da cerveja. Provavelmente isso ocorreu em função dos processos de diluição e/ou degradação a que foram submetidos esses compostos durante o processo de - 40 -
fabricação da cerveja. Como as amostras de maltes foram diluídas na razão de 1 kg para 6,4 L de água e sofreram os processos de fervura, resfriamento e aeração durante as etapas de preparação do mosto, esses compostos podem ter sido degradados. Apesar dos HPAs serem quimicamente estáveis eles são suscetíveis à oxidação e à foto-degradação pela luz, sendo que a velocidade de degradação diminui com o aumento do número de anéis aromáticos (WORLD..., 1998). 4 CONCLUSÃO Os resultados apresentados neste estudo mostram que apesar do malte defumado estar contaminado pelos HPAs benzo[g,h,i]perileno e fluoreno, as amostras coletadas ao longo do processo de fabricação da cerveja não apresentaram contaminação. Os resultados obtidos demonstram a necessidade de um maior controle no processo de elaboração de cerveja em relação à presença de HPAs na matéria-prima malte. REFERÊNCIAS BAMFORTH, C.W. Food, Fermentation and Micro-organisms. Davis: Wiley-Blackwell, 2005. BEER JUDGE CERTIFICATION PROGRAM - BJCP. Beer Judge Certification Program for Beer, Mead and Cider. 2008. Disponível em: < http://www.bjcp.org/docs/2008_guidelines.pdf >. Acesso em 10 jun. 2011. CAMARGO, M.C.R.; TOLEDO, M.C.F. Avaliação da contaminação de diferentes grupos de alimentos por hidrocarbonetos policíclicos aromáticos. Brazilian Journal of Food Technology. v.5, p.19-26, 2002. CARUSO, M.S.F.; ALABURDA, J. Hidrocarbonetos policíclicos aromáticos - benzo(a)pireno: uma revisão. Revista do Instituto Adolfo Lutz. v.67, n.1, p.1-27, 2008. DANYI, S. et al. Analysis of EU priority polycyclic aromatic hydrocarbons in food supplements using high performance liquid chromatography coupled to an ultraviolet, diode array or fluorescence detector. Analytica Chemica Acta. v.633, p. 293-299. 2009. FALCÓ, G. et al. Polycyclic aromatic hydrocarbons in foods: human exposure through the diet in Catalonia, Spain. Journal of Food Protection. v.66, n.12, p.2325-2331, 2003. INTERNATIONAL AGENCY FOR RESEARCH ON CANCER - IARC. Monographs on the evaluation of carcinogenic risk of chemicals to humans: Polynuclear Aromatic Compounds. v.32. Lyon: IARC, 1983. Disponível em: http://monographs.iarc.fr/eng/monographs/vol32/volume32.pdf, Acesso em: 20 jul. 2011. JOE, F.L.Jr.; SALEMME, J.; FAZIO, T. High performance liquid chromatography with fluorescene and ultraviolet detection of polynuclear aromatic hydrocarbons in barley malt. Association of Official Analytical Chemistis. v.65, n.6, p.1395-1402, 1982. MORADO, R. Larousse da Cerveja. Editora Larousse do Brasil. 2009. RIVELINO, M. et al. Utilização da extração em fase sólida (spe) na determinação de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos em matrizes aquosas ambientais. Química Nova. v.30, n.3, p.560-564, 2007. SALGUEIRO, L.R. et al. Effects of toasting procedures on the levels of polycyclic aromatic hydrocarbons in toasted bread. Food Chemistry. v.108, p.607-615, 2008. - 41 -
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