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A CRIANÇA E O SINTOMA NA CONTEMPORANEIDADE Viviane Marques Alvim Campi Barbosa 1 Resumo: Este artigo tem como objetivo dar alguns subsídios para se pensar sobre a criança na contemporaneidade sob a ótica da Psicanálise e tenta entender o sintoma como uma possível resposta que a criança apresenta à contemporaneidade. Palavras-chave: Criança; Infância; Sintoma; Contemporaneidade. Abstract: This arthicle has as goal give some subsidies to think about the children in the contemporary life under the view of psychoanalysis and try to understand the symptom as a possible answer that the children presents to the contemporary life. Key words: Child. Childhood. Symptom. Contemporary life. 1 Psicóloga, Psicanalista, Pós-graduada em Saúde Mental e Psicanálise pela Newton Paiva e Coordenadora da Clínica Primeiros Cuidados

Introdução O trabalho com crianças freqüentemente nos traz questões, sejam estas relacionadas ao desenvolvimento, a sua história ou até mesmo a sua evolução. Sabemos que o desenvolvimento físico, o cognitivo, a alimentação, a higiene e o mundo social de fato, são importantes para a saúde e o bem-estar da criança, porém, todos esses fenômenos estão diretamente ligados a questões psicológicas. Podemos dizer que o próprio Freud (1856 1939) atenta para tal questão quando da construção de conceitos básicos relacionados à infância. Seus questionamentos possibilitaram a formulação de importantes teorizações e a perspectiva de um olhar diferenciado sobre a criança daquele que, existia na época. A criança passa, a partir de Freud, a ser vista como um ser de desejos. Sabemos que a criança só se constitui enquanto sujeito nas relações com um outro da espécie, que acolhe o pequeno em seu desamparo fundamental, constituindo entre eles uma relação de dependência necessária à constituição do sujeito. A família é um dos lugares de amparo primeiro, insuficiente no sentido de abolir todo o mal-estar do ser humano diante das questões da vida, mas necessária e estrutural. Isto se deve ao fato de que ela que introduz o sujeito na sociedade e é ela que transmite os interditos necessários à cultura. Cada criança, entretanto, recebe ao seu modo aquilo que é transmitido pela família, pela sociedade e escola, o que lhe deixará marcas em sua subjetividade. Assim, somos levados a pensar: o sintoma apresentado pela criança na contemporaneidade viria como uma resposta ao que lhe é oferecido ou como algo que faz questão para a criança?

Psicanálise e Infância No final do século XIX e início do século XX, Freud, com a Psicanálise, abre um campo de investigação antes desconhecido. Introduz a noção de inconsciente e descobre a sexualidade infantil, abalando a ideia de criança inocente e trazendo à tona um outro ser humano, passível de sonhar, amar, desejar, construir crenças, odiar e culpar-se. A Psicanálise, então, lança um novo olhar sobre o ser humano a partir de seus conceitos. Freud (1856-1939) inicia a construção de sua teoria com base nas leis biogenéticas e a partir de questionamentos de como podemos equilibrar as exigências de civilização com as exigências pulsionais. Seus questionamentos originaram importantes teorizações sobre a criança: a criança e a sexualidade, a criança e as formações inconscientes, a criança e a educação, a neurose infantil, dentre outros. Para ele, as crianças estão impregnadas de pulsões psíquicas e são detentoras de suas próprias regras de desenvolvimento e de certo encanto, curiosidade e verdade que devem ser atendidas em função do que ela é e não do que ela será. A descoberta da sexualidade infantil desde o início da vida da criança provoca protestos e espanto na sociedade do século XIX, já que até essa época a criança era vista como símbolo de pureza, um ser assexuado. Entretanto, o conceito de sexualidade em Freud está separado da sexualidade é considerado como uma função corpórea mais abrangente, que visa basicamente ao prazer e que pode, ou não, servir às finalidades de reprodução. Em 1905, Freud escreve os Três ensaios sobre a sexualidade infantil e atenta para a questão da sexualidade infantil, entendendo-a para além da sua dimensão

genital, pois, para Freud, o corpo é atravessado pela pulsão; um corpo de desejo em que os métodos de repressão não são efetivos para acabar com o desejo. A criança de que fala Freud não é um ser inocente e, sim, um sujeito desejante, submetido às leis da linguagem que a determina e que demanda amor e não só objetos que satisfaçam as suas necessidades. Ela nasce com um organismo que passará pelas etapas de desenvolvimento e maturação estudadas pela biologia, entretanto vai construindo um corpo marcado pela sexualidade e pela linguagem. Esse corpo, muitas vezes, não coincide com o organismo e que, muitas vezes, pode chegar a alterar o funcionamento desse organismo. Ele rompe com a ideia de uma natureza que poderia ser moldada, a partir do conceito de pulsão, e não acredita que a criança é um ser puro, ingênuo e adaptável. A visão de uma criança que cresce em harmonia é descartada por Freud (1930[1929]) quando reconhece o mal-estar da civilização e percebe que os ideais sociais consomem o sujeito. Diferentemente da ideia de um psiquismo que evolui de acordo com a evolução do corpo, Freud cria o aparelho psíquico, dando a ele outro estatuto. Em A interpretação dos sonhos (1900 1901), Freud discute a função do sonho e assegura que seu conteúdo é a representação de um desejo realizado e que a obscuridade se deve a alterações em material recalcado feitas pela censura. (FERREIRA, 2000, p. 31). Freud traz, com seu discurso, uma concepção muito peculiar sobre a criança, ou seja, a criança atravessada pela pulsão e que deixa seus traços em seus sucessos e em seus fracassos, em suas perversões ou sublimações. Ele desfaz a visão de imaculada castidade erguida ao redor das crianças e contesta a concepção de a infância como sendo um período calmo e tranqüilo, ao enfatizar que as crianças também precisam achar sentidos para muitas questões e enigmas que geram ansiedade. Reforça,

outrossim, o fato de que e enfatiza que elas também vivenciam conflitos e contradições diante de questões essenciais do ser humano, diante de si mesmo e dos grandes mistérios da vida. A partir da leitura de seus textos, podemos dizer que a criança é um sujeito produzido pelo desejo inconsciente e que tem um caráter de inacabado necessitando ser incluído na cultura para controlar suas pulsões e para ter certa adaptação social. A Infância na Contemporaneidade No mundo atual, observamos a crescente fragilização dos laços sociais, a explosão urbana com todos os problemas decorrentes de viver em grandes cidades, a globalização cultural. Tudo isso tem modificado as relações entre pais e filhos e entre crianças e adultos e tem acarretado, muitas vezes, uma ruptura de lugares, papéis e saberes sobre a infância. Vivemos, portanto, um tempo de muitas mudanças, com o ritmo bem acelerado. Nele, encontramos crianças pequenas com a agenda lotada, a televisão como companhia, os pais ausentes, o carinho transformado em objeto, o apagamento da relação de alteridade, o individualismo desencadeado pela ausência do outro. São crianças orientadas para o trabalho e para o ensino escolar, sobrando-lhes pouco tempo para o riso e a brincadeira. E estes são apenas alguns dos fragmentos que compõem o contexto das crianças no mundo contemporâneo. Encontramos pais que não se reconhecem em seus filhos, apesar dos laços de parentesco e da estreita relação, uma relação onde as diferenças se sobrepõem às semelhanças. Sem encontrar nos filhos seus traços, os pais vêem neles muito mais as marcas efêmeras do contemporâneo do que os valores e experiências transmitidos de

uma geração a outra. Por outro lado, os filhos já não se veem mais nos pais, suas semelhanças esvaem-se na ânsia de viver um futuro que deve ser radicalmente diferente de tudo que se passou antes: A semelhança com os pais é desarraigada dos filhos, e estes são projetados em direção a um amanhã que, mesmo conservando os problemas e a miséria de hoje, só pode ser qualitativamente diverso em absoluto. [...] O desprendimento do passado e a falta de relação (mesmo ideal e poética) com o futuro são radicais. (PASOLINI, 1990, p. 135). As crianças na contemporaneidade desafiam e delimitam o tempo da infância para compartilhar de signos da cultura midiática que devastam as fronteiras etárias. São crianças que, com roupas, danças e trejeitos, provam ter requisitos para participar e ingressar na cultura antes definida como exclusiva dos adultos. Fronteiras rígidas que separam adultos e crianças vão tornando-se instáveis. Diante de tal situação, algumas questões surgem: o que significa ser criança no mundo contemporâneo? Existe infância na contemporaneidade? Neil Postman (1999), escritor e crítico americano que escreveu vários livros abordando as relações entre os meios de comunicação e a educação, em seu livro O desaparecimento da infância, aponta para o aparecimento de uma nova relação com a criança, na qual aparece indiferenciada do adulto. Segundo Postman: as evidências do desaparecimento da infância vêm de várias maneiras e de diversas fontes, indicando uma declinante distinção entre infância e a idade adulta (POSTMAN, 1999, p. 134). É necessário, então, uma compreensão das representações da infância na contemporaneidade. Ironicamente, podemos perceber, com Postman (1999), que o mesmo período que serviu para sedimentar a infância, também serviu para começar o seu desmoronamento. A invenção do telégrafo foi responsável por tal acontecimento, pois

esse foi o primeiro meio de comunicação a transformar a informação, antes um bem pessoal, em mercadoria de valor coletivo. Tal acontecimento trouxe repercussões para o mundo infantil, já que pouco a pouco a criança passa a ter mais acesso a informações antes controladas pelos adultos. O controle da informação deixa de ser privilégio das famílias e das escolas, e passa a ser feito pelo telégrafo. Paralelamente, os homens são colocados frente à revolução gráfica, que traz anúncios e imagens de todas as formas, como também de uma série de máquinas de comunicação que surgem no rastro do telégrafo. Seu ponto culminante deu-se no ano de 1950, data escolhida por Postman (1999) para marcar o desaparecimento da infância, quando a televisão instala-se na maioria das casas americanas juntando-se a revolução gráfica e elétrica. Postman (1999) enxerga na televisão a base histórica de uma linha divisória entre a infância e a idade adulta, uma vez que, ao contrário dos livros, não há hierarquia de compreensão - a imagem é para todos. Para o autor, assistir à televisão não requer concepção e, sim, recepção. Vale destacar que o autor diz que não apenas a forma simbólica da televisão, mas também a física, não se presta a exclusividade. A televisão destrói a linha divisória entre infância e idade adulta por três motivos: primeiro, porque não requer aprendizagem específica; segundo, porque não faz exigências complexas à mente ou ao comportamento; e terceiro, porque não segrega o público. O novo ambiente midiático que surgiu fornece a todos as mesmas informações sem segredos. A televisão escancara tudo: torna público o que antes era do domínio privado e elimina a exclusividade do conhecimento mundano. Ela é uma tecnologia com entrada franca. Todavia, contradições podem permear o debate sobre a infância na contemporaneidade se pensarmos que as fronteiras entre crianças e adultos estão sendo

sempre redesenhadas, ao passo que o terreno simbólico em que estas se constituem também vai assumindo novas facetas. Podemos perceber que Postman (1990) traz, com a ideia do desaparecimento da infância, um conceito de infância e vida adulta apartados de transformações, um conceito fixo. A ausência de segredos, o convívio e o envolvimento das crianças em assuntos antes considerados da vida adulta podem, também, apontar para construção de outros sentidos e imagens sobre o mundo infantil e não apenas para sua derrocada. As relações estabelecidas entre crianças e adultos, em cada tempo e cultura, criam e recriam fronteiras entre a infância e a vida adulta. A contemporaneidade tem-se caracterizado pelas relações de produção e de consumo permeando as interações sociais. Temos acompanhado mudanças nas relações estabelecidas entre adultos e crianças, bem como o surgimento de uma nova produção da subjetividade em função da organização do cotidiano pela mídia e o modo como a experiência das crianças vem se transformando na sociedade de consumo. Entretanto, os homens são seres diferentes uns dos outros, apesar de aparentemente terem algumas semelhanças. Propomos que compreendamos as crianças na sua interação com o mundo considerando-as como objeto, mas também como agentes do mundo em que fazem parte. Percebendo que elas recebem significados do meio em que vivem, mas que também atribuem significados aos fatos e acontecimentos da vida, produzindo sentido e construindo a sua história. A Psicanálise nos possibilita recolocar o debate, em um contexto, para além do biologismo e do culturalismo, e a passar do universal para o singular. Por meio do sintoma, percebemos de que maneira as crianças manifestam suas dificuldades e conflitos.

O sintoma como resposta Na clínica com crianças, frequentemente nos deparamos com demandas de tratamento onde a queixa inicial nos chega como os nomes de TDH, agressividade, dificuldade de aprendizagem, déficits, agitação. isto é, com esses enigmas colocados para o Outro. Etimologicamente, infância é uma palavra originária do latim e que significa aquele que não fala. Sabemos que a teoria psicanalítica, criada por Sigmund Freud, no início do século XX, versa sobre o inconsciente, sobre a formulação de um aparelho psíquico composto por diferentes instâncias. No início dos escritos psicanalíticos, Freud também relacionou o termo infantil aos atributos das crianças e àquilo que seria próprio da infância, mas no posterior desdobramento da teoria, distanciou-se de ideias possivelmente desenvolvimentistas e passou a entender o infantil como sendo as inscrições que marcam o psiquismo desde muito cedo. Como nos coloca Tânia Ferreira (2000, p. 51): o termo infantil, em Freud, refere-se menos à questão da idade do que à da posição do sujeito frente ao modo de satisfação pulsional. Podemos dizer, com Lacan (1998), que ele se refere à posição do sujeito frente ao gozo. É desse sujeito criança que iremos falar, da sua maneira de manifestar suas dificuldades, perturbações e seus conflitos inconscientes. A Psicanálise inicia seus trabalhos se ocupando do estudo da neurose e dos sintomas. Sua trajetória, do sintoma ao inconsciente, à pulsão e à sexualidade, nos ensina que a neurose é a expressão de conflitos entre o eu e as pulsões que, por serem incompatíveis com a integridade ou com os padrões éticos do eu, são recalcadas, ou seja, são impedidas de se tornar conscientes, bem como são afastadas, de início, da possibilidade de satisfação. O recalcamento, no entanto, facilmente fracassa e a libido

represada, insatisfeita, que foi repelida pela realidade, procura outras saídas do inconsciente, outras vias de satisfação, seguindo por caminhos indiretos. Ela regride a fases anteriores do desenvolvimento infantil e a atitudes anteriores para com os objetos pontos de fixações infantis e irrompe na consciência, obtendo satisfação. O resultado desse processo é o sintoma e, consequentemente, em sua essência, uma satisfação sexual substitutiva para desejos sexuais não realizados, ou seja, um substituto de algo que foi afastado pelo recalcamento, indicação de um retorno do recalcado; uma satisfação substituta deformada, irreconhecível, uma vez que o sintoma não escapa inteiramente à censura, submetendo-se, assim, a modificações e deslocamentos. Freud (1916-1917[1915-1917]), ao abordar a questão do sintoma na Conferência XVII, em O sentido dos sintomas, vai demonstrar que, a partir do estudo dos casos de histeria, foi possível perceber que o sintoma tem um sentido e uma conexão com a história de vida do sujeito; o sintoma quer dizer alguma coisa mesmo que o sujeito nada saiba sobre isso. Tais apontamentos, como nos alerta Tânia Ferreira (2000), em seu livro A escrita da clínica: Psicanálise com crianças, possuem importante valor clínico por trazerem em seu conteúdo aspectos singulares de cada sujeito. Segundo a autora: Freud assinala que o sintoma tem um sentido (sinn) inconsciente e está estritamente ligado à experiência daquele que teceu o texto do sintoma, na medida em que este só se interpreta a partir dos primeiros encontros do sujeito com a realidade sexual. Esta postulação é de muito valor clínico, na medida em que nos alerta para o fato de que mesmo aqueles sintomas típicos de uma dada estrutura não podem ser tratados da mesma maneira, posto que têm um sentido inconsciente, a marca, o sê-lo do sujeito. (FERREIRA, 2000, p. 58). O sintoma fala, mesmo que o sujeito não saiba ou queira ouvi-lo trazendo, paradoxalmente, satisfação e sofrimento. O discurso psicanalítico surge porque Freud soube ouvir o discurso do neurótico. Mas foi a partir do discurso da histérica que ele

pôde demonstrar que o sintoma possui um sentido inconsciente e tem como finalidade a satisfação pulsional. Em outro momento, no texto Os caminhos da formação dos sintomas, Freud (1916, 1917) esclarece que os sintomas são resultado de um conflito que surge como forma de satisfazer a libido. Sendo formado por duas forças que entram em luta, por isso se torna tão resistente: a libido insatisfeita (o recalcado), que procura maneiras de se satisfazer, e a força repressora, que compartilhou da sua origem. Pelo caminho indireto, antigas fixações e via inconsciente, a libido consegue achar sua saída até uma satisfação restrita e que mal se reconhece como tal. Para romper o recalque, a libido encontra as fixações necessárias nas experiências da sexualidade infantil, nas tendências parciais abandonadas e nos objetos da infância que foram abandonados. Sendo assim, o autor observa:...o sintoma emerge como um derivado múltiplas-vezes-distorcido da realização de desejo libidinal inconsciente, uma peça de ambigüidade engenhosamente escolhida, com dois significados em completa contradição mútua. (FREUD, 1916, 1917, p. 363). O sintoma é visto como a expressão do recalcado. Durante algum tempo, Freud (1916, 1917) acreditou que o trauma era a base do sintoma, porém, a partir de suas experiências clínicas, ele conclui que o trauma pode ser suposto e que as cenas da infância nem sempre são verdadeiras. Isso faz com que Freud abandone a teoria do trauma e a teoria da fantasia em que o trauma é visto como parte da realidade psíquica do sujeito e fundamento da fantasia. O sintoma passa a ser definido, por Freud, como a realização de uma fantasia de conteúdo sexual, ou seja, representa, na totalidade ou em parte, a atividade sexual do sujeito provinda das fontes das pulsões parciais, normais ou perversas.

A fantasia passa a ocupar papel importante na formação dos sintomas e a libido encontra o caminho para chegar aos pontos de fixação nos objetos e tendências que a libido não abandonou. Tais objetos e tendências, ou seus derivados, são ainda mantidos, com alguma intensidade, nas fantasias. Assim, a libido necessita apenas retirar-se para a fantasia, a fim de encontrar aberto o caminho que conduz a todas as fixações reprimidas. (FREUD, 1916, 1917, p. 375) Freud conclui a Conferência XXIII dizendo que o sintoma é uma satisfação substituta de fantasias e de recordações de experiências traumáticas vividas no início da vida sexual e que utilizam como mecanismo a condensação e o deslocamento. Mais tarde, em seu trabalho Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926[1925]) discute os mecanismos psíquicos envolvidos no sintoma, na inibição e na angústia. O sintoma pode ser encontrado na expressão de uma fobia, em um ritual obsessivo, em uma conversão histérica. A inibição na fobia manifesta-se, por exemplo, quando um sujeito não consegue sair de casa, ou na neurose obsessiva, perturbando a realização de uma atividade em função de uma distração. E na histeria, na inibição de uma atividade, apresenta-se quando ocorre uma conversão histérica. Sendo assim, a inibição e o sintoma estão intrinsecamente relacionados nas neuroses, o que não implica que a inibição seja sempre subsumida no sintoma. Freud (1926[1925]) apresenta o sintoma como o sinal e um substituto da uma satisfação instintual que permaneceu em estado jacente; é uma consequência do processo de repressão. (p. 95) O sintoma seria o substituto de uma satisfação pulsional que não foi consolidada, o resultado do processo de recalcamento. O recalcamento parte do eu, que, eventualmente por encargo do superego, não que tomar parte em um investimento pusional incitado pelo id. E por meio do recalcamento, o eu consegue que a

representação que era portadora da moção desagradável seja mantida afastada do consciente. Com isso, o recalque seria o processo psíquico por excelência na formação de sintoma, um processo de defesa do eu contra a pulsão, atestando, por um lado, o poder de influência do eu, e por outro, o enfraquecimento do eu resultante na formação de sintoma. O eu demonstra sua força pelo ato de recalcamento. Entretanto, sua impotência também se revela nesse mesmo ato, pois é em consequência do processo de recalque que surge o sintoma, através do qual a libido insatisfeita encontra uma satisfação substituta. O eu sempre se enfraquece no recalcamento. Quando entra em um conflito, ele inibe e lesiona parte do id, mas também lhe dá uma porção independente, abdicando de sua soberania. Nas palavras de Freud (1926[1925]), O processo mental que se transformou em um sintoma devido ao recalcamento mantém agora sua existência fora da organização do eu e independente dele (p. 101). Freud (1926[1925]) afirma que existe uma trabalhosa elaboração psíquica presente na formação de sintoma. No sintoma existe um trabalho psíquico de deslocamento, condensação, de compromisso com as outras instâncias e na inibição uma espécie de congelamento ou impedimento já que sua ação leva a uma renúncia de trabalho. No curso de sua investigação, Freud (1926[1925]) vai referir-se ao sintoma retomando a análise da fobia do pequeno Hans. Nesse escrito, considera que o sintoma é incorporado e que apresenta um ganho secundário. O medo de ser mordido por cavalos que irrompe em Hans é apresentado como um sintoma fóbico. A partir da análise da fobia do Hans, conclui que a angústia e a essência da fobia provêm não do processo de recalcamento, mas do próprio agente recalcador; a angústia está na origem

e coloca o recalcamento em movimento e consequentemente a formação de sintoma em movimento. A articulação significativa entre a angústia e formação de sintoma é apontada por Freud (1926[1925]) nos casos de fobia. De acordo com ele, o reconhecimento do perigo da castração, pelo sinal da angústia dada pelo eu, inibe o processo de investimento ameaçador no id. A angústia recebe outro objeto, ou seja, ocorre uma formação substitutiva - o sintoma. O sintoma é que possibilita o controle do perigo, quando permite evitar ou suspender o desenvolvimento da angústia. A angústia, segundo Freud (1926[1925]), manifesta-se sob a forma de medo a um perigo real iminente ou julgado real pelo sujeito. Ela é a reação a esse perigo e o sintoma é formado para evitar o surgimento do estado de angústia. O perigo é aquilo que é temido, isto é, a própria energia pusional. Assim, podemos dizer que o sintoma é recurso que o sujeito utiliza como resposta aos conflitos que vivência e as exigências impostas pelo mundo moderno, assim como nos indica o modo particular como o sujeito se arranja com isso. Quando algo fica insuportável para o sujeito, a resposta é o sintoma. Na medida em que a angústia, motor de sua criação, transborda, ele aparece. Ele é a via metafórica e subjetiva, seja como formação clínica ou estrutural. Cabe a cada sujeito construir os caminhos que o levaram à sua existência. Não para erradicá-lo, mas para dar lugar às palavras que o marcam. Se voltarmos agora para as crianças, podemos pensar que o sintoma é a saída que elas, muitas vezes, encontram para manter a sua estrutura em funcionamento, já que na contemporaneidade as crianças têm que suportar a carga dos objetos de luxo que constantemente lhes são oferecidos e as consequências do fato de que, em nosso mundo, busca-se uma criança como mercadoria. Nesse sentido, o sintoma faz-se

presente para nos apontar a dificuldade da criança em nosso mundo; ele surge como forma de a criança responder ao contemporâneo, é um modo singular do sujeito fazer borda ao real, na ausência de outros recursos subjetivos, é a assinatura inconsciente do sujeito. Os sintomas que as crianças constantemente nos apresentam na clínica são, muitas vezes, testemunhos dos efeitos do mundo contemporâneo, do sentido inconsciente dado pela criança às situações de seu mundo e o psicanalista se encontra confrontado com essa nova realidade. Partindo do pressuposto de que a apresentação dos sintomas é fruto de sua época, percebemos como as mudanças sócio-econômicas e ideológicas ocorridas na contemporaneidade contribuem para o surgimento de novas modalidades de subjetivação. A análise dos sintomas apresentados pelas crianças na contemporaneidade nos leva a ver a interferência da cultura e dos acontecimentos sociais na organização psíquica das crianças, ou dito de outro modo, como o sujeito se arranja com isso. Sendo assim, o sintoma pode se apresentar como uma resposta ao que o Outro, a escola, o mundo social e o seu entorno lhe oferecem, mas sempre com a assinatura de cada sujeito, aquilo que o singulariza. Referências Bibliográficas CIRINO, Oscar. Psicanálise e psiquiatria com crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. 155 p. FERREIRA, Tânia. A escrita da clínica: Psicanálise com crianças. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 141 p.

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