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Transcrição:

DÉBORA GÁRCIA: POESIA E LUTA FEMINISTA - A NEGRA QUER FALAR, SUA CONDIÇÃO DENUNCIAR. Juliana Cristina Costa (UFJF) 1 Resumo: Este artigo visa analisar dois poemas de Débora Garcia, Alforria e Academia, presentes no livro Coroações (2014) a partir da noção de poesia enquanto discurso capaz de emitir enfrentamentos ideológicos, constituindo uma luta simbólica, que utiliza da denúncia e reflexão do sujeito sobre si e do que estar em seu entorno social. Palavras-chave: Luta feminista negra; direito a voz; relações raciais, literatura negra brasileira. Ao se pensar a escrita feminina no Brasil, lembra-se do pioneirismo da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, mulher e negra, que no século XIX inseriu na escrita literária questões ligadas a realidade da população negra submetida ao regime escravocrata. Se for observada a historiografia literária será visível a escassez da presença feminina, mais escassa ainda a presença feminina negra. A categoria mulher não é uma categoria uniforme, pensá-la através da interseccionalidade possibilita uma melhor compreensão acerca dos femininos. A relação gênero e raça em um contexto social marcado pelo racismo estrutural sócio-historicamente construído permite pensar que a hegemonia racial da branquitude interfere nas percepções acerca do feminino, sendo que - como diz Angela Davis em Mulheres, raça e classe (2016) - no período da escravidão as mulheres negras eram consideradas desprovidas de gênero pelos senhores escravocratas. A poesia contemporânea negra está sendo configurada por diversas vozes que através da escrita esboçam como se dá a interação de sujeitos negros com o mundo social, este que é marcado por relações assimétricas de poder e também permeado de ideologias que fomentam desigualdades como a racial e a de gênero, por exemplo. A escrita de mulheres negras também se apresenta plural, sendo os textos literários das mesmas manifestando temáticas acerca da experiência de quem possui uma dupla condição, o de mulher e negra, como expressou Conceição Evaristo em Gênero e etnia: uma escrevivência de dupla face (2005), onde a escritora e crítica literária também manifesta 1 Mestranda em Estudos literários na Universidade Federal de Juiz de Fora, graduada em Letras/Literaturas pela Universidade Federal de Viçosa. Contato: jucostaletras@gmail.com 5528

que a maioria das representações literárias da mulher negra ainda é embasada na escravidão. As representações literárias realizadas por mulheres negras sobre o seu universo de experiência rompem com os estereótipos, tanto raciais como os de gênero, e também demonstram que textos femininos negros contemporâneos promovem uma reescrita do feminino a partir do evidenciamento das problemáticas que envolvem as relações raciais. A palavra se torna instrumento de luta e de denúncia para estas mulheres e um modo de romper com os mecanismos de silenciamento que por muito tempo impossibilitou a manifestação de uma diversidade de vozes na esfera discursiva da sociedade. A escritora Miriam Alves em um famoso poema publicado na antologia Ogum s Toques (2014) expressa Eu falo/ a minha fala é um falo/ que atravessa suas certezas culturais. Em um jogo de sentidos, fala e falo, trata da potencialidade do ato de falar, do discurso, para o questionamento das noções cristalizadas que envolvem cultura e sociedade. A partir da análise de dois poemas de Débora Garcia, Alforria e Academia, presente no livro Coroações (2014) este artigo visa demonstrar e analisar a construção poética como ato de luta, resistência, sendo a palavra poética, ou não, uma possibilidade de ser, como diz Fanon em Pele negra, máscaras brancas (2008) ao expressar que falar é existir absolutamente para o outro, o que pode ser complementado com o que diz a intelectual e ativista Audrey Lorde (1977) acerca de transformar o silêncio em linguagem e ação promovendo um processo de auto-revelação. Sendo assim, as escritas tanto de Débora Garcia como de outras escritoras negras se tornam enfrentamento epistemológico de processos de silenciamento e exclusão social. Com a palavra muitas mulheres negras promovem pela poesia uma luta simbólica que é ao mesmo tempo cognição, ato criativo e ato político. que Em Poesia negra no modernismo (2003) Benedita Gouveia Damasceno expressa Apesar das inúmeras tentativas da prática e teoria literária modernas para isolar a obra de arte de seu contexto sócio-cultural, à procura de sua especificidade, pode-se dizer que toda obra literária traduz de forma mais ou menos sutil, as manifestações da vida social. (DAMASCENO, 2003, p.11) A partir deste excerto é possível compreender que escritores e escritoras são sujeitos sociais, sendo assim podem ou não reproduzir determinadas ideologias as quais estão 5529

imersos na vida social. Em Literatura negro-brasileira (2010) Luiz Silva Cuti considera a literatura como reflexo e reforço das relações tanto sociais como de poder. O que possibilita entender o porquê da literatura durante muitos anos não ter proporcionado a visibilidade de escritores dissonantes do perfil hegemônico da sociedade. Na contemporaneidade, embora haja uma diversidade de vozes no espaço literário, ainda se observa majoritariamente o reconhecimento de um restrito perfil, homens e brancos, como é apresentado por Regina Dalcastagnè no artigo Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira (2008). A literatura negra brasileira tem como uma de suas funcionalidades a denúncia do racismo internalizado nas relações cotidianas, entretanto não se restringe a isto, manifesta-se também como mecanismo de desnaturalização das ideologias que desumanizam os sujeitos negros, apresenta a multiplicidade dos aspectos das subjetividades. A poesia negra tem em si o conceitual. Pode ser vista através da concepção de poético do teórico argentino Daniel Link apresentada por Celia Pedro e Ida Alves na apresentação do livro Poesia Contemporânea: Voz, imagem, materialidades (2016): o poético como embate com os limites da subjetividade, da cultura, da história, nelas abrindo espaço para o enigmático e monstruoso, isto é, para o que desafia a formas institucionalizadas de nomeação e hierarquização, isto é, um poético longe de servir a ordem social dominante. No livro Coroações (2014) é possível observar estes aspectos, a temática é diversificada: amor, intelectualidade, luta, melancolia/tristezas, metalinguagem, por exemplo. O primeiro poema em análise, Alforria encontramos na primeira estrofe o seguinte: Minha poesia se libertou Não quer mais usar espatilho e meia fina Exigências do opressor (GARCIA, 2014, p.70) Nestes versos, a poesia se torna sujeito feminino, pode-se observar a recusa do padrão de feminilidade imposto através da metáfora do espartilho e meia fina que ainda permite compreender que a poesia proposta não busca agradar o sistema segregador sexista e machista. Na segunda e terceira estrofes observa-se que a poesia é colocada como aquela que deseja realizar condutas comumente associadas ao masculino, por 5530

exemplo, soltar pipas e brincar de bolas de gude. Ainda na segunda estrofe observa-se o seguinte verso quer percorrer páginas jamais percorridas, que possibilita remeter a educação das mulheres que em alguns séculos era direcionado a concepção masculina da feminilidade, longe de ser uma educação pautada para o desenvolvimento intelectual da mulher, mas para a restringir ao ambiente doméstico. Estes versos também fazem referência a leitura, evidenciando que o acesso a uma diversificada produção intelectual ou literária não ocorre de modo igualitário na sociedade. Na quarta estrofe é possível perceber a reflexão sobre o gênero e o racial: Minha poesia saiu da alcova Revelou os meus segredos Se olhou no espelho Viu a cor do seu traço A textura de suas vírgulas (GARCIA, 2014, p.70) O espaço privado se tornou por muito tempo o espaço destinado as mulheres, quando nos versos acima é manifestado que a poesia saiu da alcova, demonstra que a poesia feminina começa a falar do espaço público. E a poesia tem cor, como as peles tem que escreve, e seus elementos tem textura, como os cabelos; há também nestes versos a questão da autocontemplação, o autoconhecimento do sujeito sobre sim mesmo como ato de tomada de consciência de si e do mundo. Na quinta estrofe é apresentado Foi a macumba e descobriu seu axé Na biqueira, viu a vida real Na leitura, descobriu mundo Devorou conhecimentos (GARCIA, 2014, p.70) Nestes versos observa-se a religiosidade e a questão do saber. A poesia colocada como algo que necessita de conhecimentos, tanto os adquiridos pela experiência como os que estão presentes nos livros. Há também a referência a biqueira, gíria urbana que se refere a boca de fumo, ponto de vendas de drogas, espaço presente nas periferias. Macumba, biqueira, leitura são termos apresentados como espaços, o físico e o simbólico se misturam. No último verso da referida estrofe, pode-se observa a questão da antropofagia cultural durante o processo de aquisição de conhecimento. Na sexta estrofe ocorre a crítica a tradição eurocêntrica da escrita, a poesia é aquela que 5531

Deixou de ser uma poesia deslumbrada Cheia de perfumarias Com grilhões de métrica e rimas (GARCIA, 2014, p.70) Há menção das regras estruturais do poema que por muito tempo eram vistas como indicadores de um bom poema e até mesmo como elementos indispensáveis deste gênero literário, nos versos acima estas regras são comparadas a grilhões, isto é, correntes as quais o poema era submetido. No segundo poema, Academia, pode-se observar já no título ao que se refere. Na primeira e na segunda estrofes fala da mulher negra e da religiosidade afro. A partir da terceira estrofe realiza uma crítica ao espaço acadêmico como que realiza a valoração da cultura negra apenas como forma de entretenimento, não sendo fornecida o reconhecimento da mulher negra em uma posição de fala, voltada para intelectualidade, por exemplo, como é manifestado na quarta estrofe apresentada a seguir: A negra quer falar Sua condição denunciar Ela sabe argumentar, Questionar, responder Ações afirmativas defender (GARCIA, 2014, p.83) A fala é representada como algo importante para dá visibilidade ao ponto de vista do sujeito negro acerca de questões que o envolve e também de manifestação da intelectualidade. Se observa o desejo pela fala e do debate público das ideias como possibilidade de denúncia no espaço acadêmico. Nos versos acima, há a referência as ações afirmativas que possibilitaram a inclusão de pessoas pobres, negras e indígenas no ambiente universitário, o que fornece a inserção dos mesmos em espaços construtores de discurso como o é a academia. Na quinta estrofe se apresenta: Gira roda Roda gira O salão esvaziou-se Na academia (GARCIA, 2014, p.70) 5532

O salão pode remeter aos salões burgueses do século XVIII e XIX onde a elite se reunia para desenvolver as conveniências e alianças políticas, um espaço restrito e majoritariamente branco que no poema é assemelhado ao espaço acadêmico, isto é, o que era os salões no passado se transformou na academia, uma crítica relevante já que muito vem se discutindo sobre o caráter branco das bases epistemológicas que constituem as grades curriculares de cursos superiores. Os versos finais expressam que cultura negra/ Entretenimento é., de forma afirmativa, transforma o que foi apresentado na terceira estrofe como uma pergunta em uma afirmação, enfatizando a crítica que realiza acerca da cultura negra e o espaço acadêmico. Débora Garcia com uma ironia sutil e com um jogo de sentidos, como faz com a palavra gira, enquanto parte da religiosidade ou como movimento das coisas, possibilita uma reflexão que envolve o sujeito negro em diferentes espaços (acadêmico ou terreiro, por exemplo). Os dois poemas analisados demonstram uma faceta da poesia negra, compreendendo-se neste artigo que sejam vastas as possibilidades de percepção do texto literário negro, apresenta a representação literária do sujeito enquanto subjetividade e coletividade, denuncia ao mesmo tempo que realiza uma reflexão de si mesmo em diálogo com o que está socialmente entorno. Ambos os poemas têm em comum a questão da intelectualidade e a denúncia, feita mais explicitamente no segundo poema. O livro Coroações (2014) consiste no primeiro livro da escritora Débora Garcia, intenso no seus dizeres fornece ao campo da literatura brasileira A tessitura poética apresentada neste poema permite inserir a escrita de Débora Garcia no espaço das lutas feministas, entretanto a partir da perspectiva interseccional, isto é evidenciado mais a finco nos versos a negra quer falar sua condição denunciar presente no poema Academia. A poesia enquanto ato de fala pode ser visto como uma possibilidade reivindicatória muitas vezes compreendida como ato meramente político, e não como uma junção na estética literária de uma voz política que eu ao mesmo tempo estética. Nenhuma linguagem é neutra, pelos usos lexicais ou construções sintáticas diz muito, este caráter ideológico do texto literário não é algo que se manifesta apenas nos textos produzidos por aqueles considerados parte de minorias sociais. Pensar que toda literária pode ser visto como um panfleto de uma época e um contexto social é entender que a literatura utiliza como principal matéria prima a língua, esta que é uma construção 5533

social e histórica. Na simbologia das coroações, remetendo a religiosidade, Débora Garcia constrói sua primeira obra se inscrevendo no espaço literário através de uma poética potente. Dessas coroações, ainda se tem muito o que cogitar e da reflexão referente a poética-mulher ou da mulher com seu poema, muito de sua voz para ouvir. Referências bibliográficas CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Feusp, 2005. (Tese de doutorado) CUTI, Luiz Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. DALCASTAGNÈ, Regina. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de literatura brasileira contemporânea, v. 31, p. 87-110, 2008. DAMASCENO, Benedita Gouveia. Poesia negra no modernismo brasileiro. Campinas- SP: Pontes, 2003. EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: uma escrevivência de dupla face. In: MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liana (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, Editora universitária UFPB, 2005. GARCIA, Débora. Coroações: Aurora de poemas Débora Garcia. São Paulo: Edição da autora, 2014. PEDROSA, Celia. ALVES, Ida. Poesia contemporânea: Voz, imagem, materialidades. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016. 5534