2 A relação homem/natureza. 2.1. O conceito de troca material de Marx



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Transcrição:

2 A relação homem/natureza 2.1. O conceito de troca material de Marx O homem foi abstratamente definido. Agora, há uma outra tarefa a realizar: expor o modo como Marx concebe a relação entre o homem e a natureza. O conceito inicial de Marx acerca da relação homem/natureza encontra-se nos Manuscritos de 1844. Neste texto, Marx apresenta a relação homem/natureza como um processo de humanização da natureza que coincide com o processo de naturalização homem, cuja história cunhada pelo trabalho se mostra de forma cada vez mais clara na equação naturalismo=humanismo. 1 Posteriormente, em suas análises econômicas, Marx se serve do conceito de Stoffwechsel (literalmente troca material) de uma coloração científiconatural, mas nem por isso menos especulativo, quando ele examina o insuprimível processo de apropriação da natureza pelo trabalho. Marx forjou o conceito de troca material a partir de algumas influências. Uma delas é a de Jacob Moleschott. Este autor quase totalmente esquecido nos dias de hoje foi um dos representantes do materialismo que adquiriu uma enorme força na Alemanha entre os decênios de 1850 e 1860. Contemporâneos da redação de O capital, os livros de Moleschott Physiologie des Stoffwechsels in Flanzen und Tieren [Fisiologia da troca material nas plantas e nos animais] (1851), Der Kreislauf des Lebens [O ciclo da vida] (1857), Die Einheit des Lebens [A unidade da vida] (1864) defendem um materialismo científiconaturalista inspirado na filosofia da natureza de Schelling. Eles analisam a natureza como um grande processo de transformação e troca. Em Der Kreislauf des Lebens, Moleschott manifesta sua concepção da seguinte forma: O que o homem elimina, nutre a planta. A planta transforma o ar em elementos sólidos e nutre o animal. Os carnívoros vivem dos herbívoros, que por sua vez são presas da morte e difundem uma nova vida que germina no mundo vegetal. A esta troca da matéria se denominou troca material. Esta palavra se pronuncia, com razão, não sem um sentido de 1 SCHMIDT, Alfred. El concepto de naturaleza en Marx. Madri: Siglo Veintiuno, 1976. p. 84.

35 veneração, pois assim como o comércio é a alma da troca, também o ciclo eterno da matéria é a alma do mundo. 2 Para Moleschott, a essência de toda a atividade sobre a terra consiste no movimento de transformação das formas da matéria. Nesse movimento, as matérias mudam de forma, mas a substância permanece eterna. Esta concepção de Moleschott, recorda muito um trecho citado com aprovação por Marx em O capital tomado do livro Meditazioni sull economia política do economista italiano Pietro Verri, onde se diz que todos os fenômenos do universo não constituem criações novas, mas apensas transformações da matéria: um movimento de associação e dissociação, um juntar e separar: Todos os fenômenos do universo, provocados pela mão do homem ou pelas leis gerais da física, não constituem na realidade, criações novas, mas apenas transformações da matéria. Associação e dissociação são os únicos elementos que o espírito humano acha ao analisar a idéia de produção; o mesmo ocorre com a produção do valor [...] e da riqueza, quando a terra, o ar e a água transformam-se, nos campos, em trigo, ou quando, pela intervenção do homem, a secreção de um inseto se transforma em seda, ou diversas peças de metal se ordenam para formar um despertador. 3 Mas o que significa o conceito de troca material de Marx? Este conceito busca designar o sistema de trocas que ocorre no interior de uma totalidade: a natureza. Para Marx, a natureza é o conjunto da realidade, é o todo que inclui tanto o homem como a realidade extra-humana, tanto a natureza não apropriada pelo homem como aquela que ele transformou. Enfim, a natureza é a totalidade do mundo sensível, do qual o homem faz parte. Entretanto, para compreender o conceito de natureza 2 MOLESCHOTT, Jacob. Der Kreisfauf des Lebens. In: SCHMIDT, Alfred. El concepto de naturaleza en Marx. Madrid: Siglo Veintiuno, 1986. p. 84.

36 de Marx é preciso não se deixar impressionar por sua terminologia nem sempre unívoca, como frisou Alfred Schmidt: Marx descreve a realidade extra-humana, independente dos homens mas ao mesmo tempo mediada por eles ou, em todo o caso, mediável, com termos que utiliza como sinônimos: matéria, natureza, substância natural, coisa natural, terra, momentos existenciais objetivos do trabalho, condições objetivas ou concretas do trabalho. Como inclusive os homens constituem uma parte integrante desta realidade, o conceito marxista de natureza resulta idêntico ao de realidade no seu conjunto [...]. O mundo sensível e os homens finitos em seu respectivo entrelaçamento social essência e aparência ao mesmo tempo são as únicas magnitudes que tem em conta a teoria marxista. Só existe para Marx, no fundo, o homem e seu trabalho, de um lado, e a natureza e sua substância material, de outro. 4 Após essa observação, trata-se de saber em que consiste a troca do homem com a natureza. Para esta pergunta, há duas respostas. Em primeiro lugar, o que o homem troca com a natureza são mediações. 5 O homem só pode conservar a sua existência por meio da natureza. É através da natureza que o homem obtém tanto os meios de subsistência imediatos como os meios de realização de sua atividade produtiva. No entanto, é apenas através do homem que a natureza chega à consciência de si mesma e alcança um nível superior de seu desenvolvimento. Utilizo-me aqui das reflexões de Alfred Schmidt: As diversas formações socioeconômicas que se sucedem historicamente são outros tantos modos de automediação da natureza. Desdobrada em homem e material a trabalhar, a natureza está sempre em si mesma apesar 3 PIETRO, Verri. Meditazioni sulla economia política, na edição os economistas italianos supervisionada por Custodi, impresso primeiro em 1771, v. XV, p. 21, 22. apud MARX, Karl. O capital. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1998. Livro I, p. 65, nota 13. 4 SCHMIDT, Alfred. El concepto de naturaleza en Marx. Madrid: Siglo Veintiuno, 1986. Ibdem. p. 24, 25. 5 BALOD, Flávio Costa. A dialética da natureza em Marx. Rio de Janeiro,1993, 156p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Universidade Federal do Rio de Janeiro. p. 28.

solo. 8 Marx antecipa aqui um problema que veio a se tornar muito mais grave com o 37 deste desdobramento. No homem a natureza chega à autoconsciência e em virtude da atividade teórico-prática deste reúne-se consigo mesma. 6 É também através do trabalho que o homem leva muito mais adiante o processo de criação realizado pela história da natureza. Ainda segundo Schmidt: À medida que os homens desatam as potências adormecidas na material natural, liberam esse material: ao transformar o morto em-si em um vivente para-nós, prolongam de certo modo a série dos objetos produzidos pela história natural e a prosseguem em um estado qualitativamente mais elevado. Mediante o trabalho humano a natureza leva adiante seu processo de criação. O transtorno produzido pela práxis chega assim a adquirir uma significação não apenas social, mas também cósmica. 7 Em segundo lugar, essa troca se dá num nível imediatamente fisiológico, como uma simples troca de elementos entre as sociedades humanas e o meio natural. O homem se apropria dos elementos da natureza e após o seu consumo os devolve à natureza. O caráter imediatamente fisiológico desse conceito de troca material torna-se evidente na crítica de Marx acerca da separação entre a cidade e o campo, típica das sociedades dominadas pelo capital, onde ele vê sensivelmente alterado a troca material entre o homem e a terra, isto é, a volta à terra dos elementos do solo consumidos pelo ser humano sob a forma de alimentos e de vestuário, violando assim a eterna condição natural da fertilidade permanente do desenvolvimento das sociedades submetidas ao domínio do capital, sobretudo quando esse retorno à natureza dos elementos apropriados pelo homem passou a se dar em enormes quantidades de refugo, lixo e poluição, com todas as suas desastrosas conseqüências. 6 SCHMIDT, Alfred. El concepto de naturaleza en Marx. Madrid: Siglo Veintiuno, 1986. p. 87. 7 Ibdem. p. 84, 85. 8 MARX, Karl. O capital., livro 1, vol I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 570.

38 A troca material entre o homem e a natureza é um processo que ocorre ao longo de toda a existência humana. Enquanto o homem existir ele terá que dedicar parte do tempo da sociedade para se apropriar dos objetos da natureza e de transformá-los em objetos de uso humano através do trabalho. Essa é uma necessidade insuprimível da realidade humana. No entanto, é importante observar que se é verdade que o homem jamais poderá deixar de se apropriar dos objetos da natureza por intermédio do trabalho, o modo como ele realiza essa apropriação é historicamente cambiante. A compreensão do modo como os homens se apropriam e transformam a natureza está indissociavelmente ligado às formas como os homens se relacionam entre si e ao desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. É a partir do conceito de troca material que se torna possível interpretar um conceito que, malgrado Marx jamais o tenha formulado explicitamente, mostra-se bastante oportuno para apreensão da concepção do autor em questão acerca da relação homem/natureza: o conceito de dialética da natureza. 2.2. O conceito de dialética da natureza de Marx O conceito de dialética da natureza que se pode interpretar das obras de Marx é essencialmente diferente daquele que foi exposto por Engels em A Dialética da natureza e no Anti-Dühring. Nessas duas obras, Engels formula a idéia de que haveria nos processos naturais uma dialética puramente objetiva, que se realizaria sem qualquer intervenção humana. Nos textos de Marx, porém, o conceito de dialética da natureza surge do insuprimível processo de troca material entre o homem e a natureza mediado pelo trabalho. É a atividade mediadora do trabalho que faz com que a relação entre o homem e a natureza engendre um processo dialético. Está claro que há uma diferença bastante grande entre os dois referidos conceitos de dialética da natureza. Enquanto em Engels a dialética da natureza ocorre de forma inteiramente objetiva, em Marx, que jamais cogitou tratar a natureza como um domínio separado da práxis, a dialética da natureza surge dos processos de transformação realizados pelo homem através de sua atividade produtiva. Todavia, é importante assinalar que, ainda que haja uma diferença substancial entre os dois referidos conceitos de dialética da

39 natureza, não é possível estabelecer uma nítida linha de demarcação entre os pensamentos de Marx e Engels. Por mais que Marx jamais tenha enveredado por especulações semelhantes àquelas realizadas por Engels nas duas obras citadas, não é certo que ele discordasse das formulações engelsianas. Muito pelo contrário. Vale lembrar que o próprio Anti-Dühring, obra na qual Engels apresentou o que ele chama de visão comunista de mundo, com a sua correspondente dialética da natureza, foi lido e revisto por Marx antes de ser publicado. Em Marx, o conceito de dialética da natureza surge como um processo através do qual o homem transforma a realidade natural imediatamente dada, a primeira natureza, e produz, sobre essa base, uma segunda natureza, artificial, humanizada. Essa realidade criada pelo homem consiste numa superação dialética do dado natural, numa Aufhebung da natureza. 9 Façamos um breve esquema. A natureza imediatamente dada representa o primeiro momento do processo dialético, o momento da tese, digamo-lo assim, enquanto o trabalho representa o segundo momento desse processo, a antítese, a negação da realidade imediatamente dada. O trabalho é a atividade que transforma não apenas a natureza externa ao homem como transforma a própria natureza humana. O conjunto dos objetos produzidos pelo homem, bem como os próprios homens que se transformam nesse processo, humanizando-se, constituem a síntese desse processo. No entanto, é importante dizer que nem os objetos naturais nem os homens deixam de ser aquilo que são em sua origem, ou seja, não deixam de ser natureza, apenas adquirem novas formas, que o homem introduz por meio do trabalho. A substancia natural, transformada pelo fogo vivo do trabalho, torna-se um objeto útil ao homem, adquire um valor de uso, enquanto o homem, por meio desse processo que ele próprio engendra, enriquece a sua natureza dada. Esse é um processo que não cessa ao longo de toda a existência do homem. O homem não pára de 9 Se não receássemos abusar das exposições dialéticas, diríamos que o mundo forjado pelo trabalho é a Aufhebung do dado natural: é a sua realização na medida em que a satisfação da necessidade nele se torna efetiva e onde o desejável deixa de ser objeto de procura indefinida e fonte de sofrimento para tornar-se convite à obra; é também a sua negação, pois o universo artificial se opõe à realidade natural que nos é tão difícil conceber, a menos que, como dizia Marx, imaginemos algum arquipélago polinésio recentemente surgido como o dominado ao não dominado, o humano ao inumano; constitui, finalmente, sua sublimação porque o resultado do trabalho, a obra, participa dos dois registros e se apresenta, ao mesmo tempo, como produto da vontade do homem, de seu desejo e de sua coragem como fato submetido ao devenir próprio e inumano do dado. É em suma, o lugar em que se defrontam e se organizam efetivamente, e não apenas no

40 modelar o mundo e, simultaneamente, de produzir-se a si próprio. Mas todo esse processo ocorre no interior da natureza, da natureza concebida como a totalidade do real. A natureza revela o seu caráter dialético apenas porque o homem e, junto com ele, a sua atividade vital, o trabalho, são momentos constitutivos da realidade natural. Assim, a dialética da natureza revela-se como a dialética do trabalho, a dialética do sujeito e do objeto, das partes constitutivas da natureza. 10 Poder-se-ia dizer então que, através do trabalho e, portanto, do homem, a natureza realiza uma automediação de si mesma, sendo esta a própria dialética da natureza. 11 A dialética do trabalho identifica-se com a dialética da natureza. Esse processo dialético desencadeado pela atividade mediadora do homem jamais se interrompe ao longo de toda a história humana. Ele só poderia ser interrompido se o homem deixasse de existir. Enquanto continuar existindo, o homem deverá necessariamente prosseguir realizando a necessidade natural do trabalho e, por conseqüência, engendrará o processo que estamos chamando de dialética da natureza. Se a dialética é um processo que ocorre ao longo de toda a história humana, o modo como esse processo ocorre depende do modo como os homens se relacionam entre si. Só é possível compreender concretamente o modo como os homens se relacionam com a natureza quando se compreende o modo como os homens produzem/reproduzem a sua vida material. O trabalho realiza a mediação primária entre o homem e a natureza, mas essa atividade só pode ser realizada no âmbito das mediações secundárias historicamente cambiantes, colocadas pela forma de organização social da vida humana. É apenas através da compreensão do funcionamento dessa mediação da mediação que se torna possível compreender o caráter específico da forma como o homem se apropria da natureza. A dialética da natureza é um processo que ocorre ao longo a história humana. Mas o modo como esse processo acontece na história altera-se com o próprio devir das sociedades pensamento, a negatividade humana e a pura positividade natural. CHÂTELET, François. Logos e práxis: Rio de Janeiro, 1972. p. 212. 10 SCHMIDT, Alfred. El concepto de natureza en Marx. Madrid: Siglo Veintiuno, 1986, p. 12. 11 A relação entre o homem e a natureza é automediadora num duplo sentido. Primeiro, porque é a natureza que propicia a mediação entre si mesma e o homem; segundo, porque a própria atividade mediadora é apenas um atributo do homem, localizado numa parte específica da natureza. Assim, na atividade produtiva, sob o primeiro desses dois aspectos ontológicos, a natureza faz a mediação entre si mesma e a natureza; e, sob o segundo aspecto ontológico em virtude do fato de ser a atividade produtiva inerentemente social o homem faz a mediação entre si mesmo e os demais homens. MÉSZÁROS. István. Marx: teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. p. 78.

41 humanas. A forma como essa dialética se manifesta está indissoluvelmente ligada às formas históricas através das quais os homens produzem a sua existência social.