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Transcrição:

125 Mas, é difícil deixar de pensar nas aproximações entre as concepções desse Projeto e os diversos experimentos artísticos desenvolvidos dos anos 60 para cá, a exemplo da Arte Povera, da Land Art, da Earth Art, da Arte Conceitual e da Arte Pública, destacados no segundo capítulo da dissertação (cf. 2.2). O quadro geral nele delineado serve de moldura para melhor situar as condições de idealização e de produção das artes plásticas no Projeto Terra. Neste sentido, poder-se-ia, ainda, perguntar: Quais teriam sido os vieses e os modelos teóricos que permitiram a emergência e a consolidação do Projeto? E, ainda: Que relação tem esta proposta regional com as leituras da arte contemporânea? Neste ponto, a fala do próprio Juraci Dórea é assaz eloqüente. Em se tratando da relação regional-universal, Dórea (2003a, s.p.) declara que: Meu trabalho não se preocupa com essa questão [regional], ele tem que estar voltado para a minha realidade, para as minhas raízes, para a minha cultura, sem estar preocupado em fazer um trabalho regional. Isso não me interessa muito. Tenho que falar do que eu conheço, do que eu vivi e experimento, que é essa realidade do Sertão.[...] Acho que como artista eu posso fazer um trabalho partindo do regional, partindo dessas raízes locais, essas raízes da nossa região e usar uma linguagem [universal]. Dórea está em plena sintonia com as transformações operadas pela arte. O Projeto Terra revela, nos seus mais variados aspectos, uma releitura das novas linguagens da arte na contemporaneidade, embora mantenha, ainda, elementos da arte moderna, inscritos na técnica tradicional da confecção das esculturas e das pinturas. Este comportamento é inevitável, haja vista que nenhum artista, principalmente aqueles que passam pela academia, pode isentar-se dessas influências, como bem assinala Dórea (2003a, s.p.): [...] Sou um artista considerado erudito, não posso negar toda a informação que tenho, todas as leituras, não poderia fazer uma arte que não refletisse a formação que tenho. Eu sempre procurei fazer uma coisa que estivesse afinada com as tendências da arte contemporânea, sem me preocupar em ficar reciclando a cada momento, porque isso é um perigo também, você não cria raízes, você não consolida seu trabalho. Eu me preocupo em fazer um trabalho identificado com o momento em que estamos vivendo, com as linguagens atuais, só que a minha matriz, a minha fonte de pesquisa é a matriz local, a matriz da cultura regional. É nesse sentido que eu faço a leitura regional e internacional, sem estar preocupado em ficar repetindo as tendências de

126 fora, de uma maneira muito imediata. [...] De forma que é impossível você negar estas influências, mas isto não é o ponto de partida para o meu trabalho, acho que se pode partir das raízes, para criar um trabalho que vai ser lido por qualquer pessoa do mundo. Na esteira destas citações, depreende-se que Juraci Dórea, mesmo tendo conhecimento das diversas tendências que circundam o meio artístico na atualidade, não fez uso, de forma planejada e consciente, de nenhum dos modelos experimentais aqui elencados, embora o ideário do Projeto Terra, no plano conceitual da arte na contemporaneidade, entre em perfeito diálogo com tais modelos. O que distingue e distancia, de forma definitiva, a sua proposta de trabalho daqueles modelos, é a sua intenção, o seu olhar de artista contextualizado, que não perde de vista a sua matriz fundadora o Sertão baiano. Dos modelos apresentados, Dórea confessa ter uma simpatia pela Arte Povera, porque esta se aproxima mais de sua proposta, na media em que privilegia a utilização de materiais pobres na criação das obras, mantendo uma forte ligação com o ambiente e o fruidor. Na mesma pista, analisando o contexto mais amplo de atuação do Projeto Terra, poder-se-ia também afirmar que este trabalha na terra e com a terra: interferindo na paisagem plantando suas esculturas e contando suas Histórias do Sertão. Trabalha, quase sempre, com o conceitual, quando leva a sua proposta para os grandes pavilhões das Bienais, através de fotografias, vídeos e textos. Trabalha com arte ambiental, na confrontação dramática do ambiente com o espectador e a obra. Enfim, não seria de todo prudente, submeter o Projeto Terra a uma rubrica. Este, ao longo de sua existência, vem passando por uma série de desdobramentos naturais, do ponto de vista de um trabalho comprometido com a pesquisa e, especialmente, com o jogo da experimentação.

127 O Projeto Terra, em qualquer de suas atuações, evidencia o caráter único de cada obra de arte (escultura ou pintura), porque cada uma delas exprime uma poética diferenciada, prenhe dos valores culturais das localidades em que o Projeto atua, contribuindo com a eliminação da barreira separatista entre arte e vida. Nele, o Sertão passa por uma nova reapropriação. 4.2 O SERTÃO NORDESTINO COMO TEMA E DESTINAÇÃO Em A invenção do Nordeste e outras histórias, Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2001, 39-64 passim) atenta para o surgimento de um recorte espacial, de um lugar imaginário e real ao mesmo tempo, no mapa do Brasil. Um espaço universal composto de imagens paradoxais, chamado Nordeste. A construção desse imaginário, em relação ao Nordeste, contribuiu com a formação de uma visão negativa a seu respeito, de que a cultura dessa região é tipicamente regionalista, embasada apenas no fanatismo religioso, no cangaço e na aterrorizante seca, marcando uma identidade do homem nordestino, pelo olhar do Sudeste-Sul. Os termos região e regionalismo foram sendo construídos ao longo da história da cultura brasileira, como necessidade de justificar as desigualdades econômicas, climáticas e socioculturais visíveis no país. No Brasil da década de 1920, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife autodenominaram-se centros distribuidores e tomaram seus costumes

128 como nacionais, enquanto que outras áreas eram consideradas regionais, atrasadas, arcaicas, sertanejas e até mesmo bizarras. Há uma cultura enraizada que teima enfatizar a pobreza do Nordeste e, de forma mais contundente, a do Sertão nordestino, acentuando a sua derrota permanente em relação às regiões Sudeste-Sul do país. O regionalismo é, pois, a construção de um discurso, de práticas econômicas, sociais, políticas e artísticas que se conectam, formando essa idéia de nordestinidade. Na visão de Albuquerque Júnior (2001, p. 49). O Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente em relação a uma dada área do país. E é tal a consistência desta formulação discursiva e imagética que dificulta, até hoje, a produção de uma nova configuração de verdades sobre este espaço. Os discursos sobre a região não são documentos de uma verdade mas sim o que constitui a construção dessas verdades. Assim sendo, a concepção de Juraci Dórea sobre o Sertão constitui-se como mais uma das verdades construtivas da nordestinidade brasileira, dialogando com tantas outras verdades, a exemplo daquelas disseminadas pelo país afora, através das obras dos escritores Guimarães Rosa, Gracialiano Ramos, Euclides da Cunha, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Eurico Alves, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Gilberto Freyre; do cineasta Glauber Rocha e dos artistas plásticos Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Portinari, Tarcila do Amaral, Di Cavalcanti, Carybé, Genner Augusto, Mário Cravo, Samico, Scaldaferri, dentre outros. Importa sublinhar, contudo, o lugar de onde partem os olhares de quem fala e como fala. Da lista acima, existem os que falam do Nordeste ou do Sertão brasileiro com conhecimento de causa, na condição de um protagonista, ou de um narrador onisciente e

129 onipresente e os que falam sobre algo exterior à sua vivência, muitas vezes baseados no próprio discurso já construído para caracterizar as idiossincrasias da região. A produção desses artistas e escritores apresenta, de um lado, um Nordeste gestado como um espaço unicamente telúrico e, por vezes, pitoresco e exótico, de outro lado, uma região da miséria, da injustiça social e do analfabetismo. Tanto um Nordeste, quanto o outro estão presentes nas cantorias, na literatura de cordel, na arte popular, nos discursos políticos e oficiais, nas manifestações religiosas, na produção literária, e nos demais espaços de poder, difundindo-se nas escolas, nas famílias, nas universidades, transformando-se em lugares comuns. O Sertão [Nordestino] é, para o Projeto Terra, a referência primeira. (DOREA, 2003b, p.15). Para Juraci Dórea, há várias concepções de Sertão. No entanto, a mais freqüente, flagrada na proposta do Projeto Terra, aproxima-se da de Glauber Rocha, Elomar, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Eurico Alves, João Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Euclides da Cunha. Mas, é na obra Fidalgos e Vaqueiros, de Eurico Alves, que Juraci Dórea se reencontra com o Sertão das boiadas e, especialmente, com o Sertão da civilização do couro, muito bem definido pelo próprio Eurico Alves (1989, p. 18, grifo do autor): A fase do couro é a do início do pastoreio, que, ao depois, se viu envolto nas secas. Define-se bem o absentismo do criador. Realmente, descreve e perfila Capistrano de Abreu a civilização do couro, registrada quando das primeiras entradas, quando das primeiras fixações do homem branco no sertão, através dos seus vaqueiros, quando se estabelecem os primeiros currais. Do couro de boi se serviam os vaqueiros para todo o mister na fazenda: roupa de trabalho os couros, bogó para tirar água em poço e borracha para a transportar em viagens; embornal para a comida dos animais de tração ou viagem, de arreios; do couro cru para carregar terra, arrastado este rude transporte pelo boi manso. Por isso, denominou o velho mestre este ciclo da sociedade sertaneja de civilização do couro. Apesar de as regiões escolhidas pelo artista, para espalhar suas obras, situaremse geograficamente no contexto de uma realidade dura, escrita, cantada e filmada pelos

130 artistas e literatos acima citados, há na obra de Juraci Dórea uma visão estética e, ao mesmo tempo, humanizada e humanizante, que trata esse Sertão com o encanto de um sertanejo, porque geralmente associado a imagens desoladoras, secas e a agressivos mandacarus, o Sertão, no entanto, tem o poder de cativar as pessoas. (DÓREA, 2003b, p,17). Por outras palavras: o Sertão de Juraci Dórea é um Sertão emblemático, envolto a uma paisagem que, apesar de parecer rude, grotesca, isolada, abandonada, tem uma poesia e uma população que preserva uma brasilidade nordestina. Retomando as reflexões de Alburquerque Júnior, no tocante à construção do Nordeste enquanto produto imagético-discursivo, desenhado, ora de forma pitoresca, ora grotesca, não sem alguma ousadia, o Projeto Terra poderia habitar no entre-lugar dessa classificação dual, na zona de fronteira. Juraci Dórea é um artista que fala de dentro, com a consciência de um iniciado. Ele promove, mesmo inconscientemente, a desconstrução desse imaginário nordestino, pois não apavora, não traz o sangue e o suor da terra seca para o interior das obras, ao contrário, nelas explora a alegria e o encantamento. O material, que se transforma em imagem-símbolo da seca e da pobreza, são transformados em beleza (o couro é o símbolo da vaca morta e as estacas são os ossos que perfuram os corpos descarnados dos animais sacrificados pela seca), metaforicamente falando e no plano da realidade a própria madeira (árvore sem vida) transubstacia-se em arte, alimento para o espírito. No processo em si do fazimento das obras, tais materiais são ressignificados, transpondo a sua condição de marca da marginalização, para assumirem uma posição, um lugar. A experiência faz com que o próprio artista revisite a sua concepção de Sertão, sendo mais um dentre os milhares de fruidores de sua obra: estranhando-a, recriando-a, refutando-a ou agregando-a ao seu viver como um bem comum.

131 Os elementos contidos na obra de Dórea, ali conjugados, em um chão estéril, num ambiente hostil, passam a gerar múltiplos significados. Embora estes elementos, como fora dito várias vezes, façam parte do cenário cotidiano dos sertanejos, muitas vezes, de uma forma não muito agradável, pois, remete-os às secas, às mortes do gado, ao chão torrificado, à ausência de alimento. Alí, em forma de esculturas, não muito belas, como afirma Brasileiro (2000, p. 70), ou de pinturas em telas nada convencionais, a exemplo do mural pintado na parede lateral da casa de Edwirges, ganham uma outra conotação. Sai do simplesmente patético para o plano do divertimento, da festa, Eu acho q isso aí é um divirtimento, não será? Se não fosse divirtimento não tava teno ninguém aqui, né? José Dias, 28 anos, Saco Fundo. Achei bom, graças a Deus. Tô perto de morrê, mais vi coisa bunita im meu rancho. Edwirges Cardoso, 76 anos, Saco fundo. Quem gosta, chega aí, fica ispiando, diz: ói, isto aí é uma armação de couro pr uma diversão diversão pra quem nunca viu, vê. Agenor de Lima, 55 anos, São José das Itapororocas. (DÓREA, 1987, s.p.). e, principalmente, da valorização do homem rural: Eu dixe qui todo gavólo todo mundo qui se gava dixe q é mintiroso. Mais para mim, eu achei qui foi um valôzinho qui eu tive, nem qui fosse dum cruzado, purquê nas outas casa não tem aquelas figura, não tem aqueles desenhe. Edwirges Cardoso, referindo-se ao mural. (DÓREA, 1987, s.p.). É desta terra sertaneja e nordestina-baiana, sustento, derrota e salvação, seca e promissão, torrão natal, que o artista desenvolve sua concepção de Sertão para, então, transformá-la em arte, arte feita em couro e madeira, objetos muito próximos das vivências desse sertanejo que conhece de perto os locais onde acontece o Projeto Terra. E as pinturas que integram o referido projeto, também são familiares aos sertanejos, através dos folhetos de cordel e suas capas xilogravadas, representado as estórias do Sertão, contadas e cantadas durante as colheitas, as batas do feijão e do milho, nas noites de lua cheia, quando a vizinhança se reúne para contar os causos.

132 Para Dórea (2003b, p. 17), o Sertão é um território misterioso, feito de perguntas, desafios e solidões. O Sertão do Projeto Terra começa em Feira de Santana. De Feira de Santana alcança lugares distantes como Euclides da Cunha, Monte Santo, Canudos e Raso da Catarina: Nessa região, cenário de minha infância e de minhas leituras, povoadas por roceiros, vaqueiros, poetas populares, cantadores e, no passado, por beatos e cangaceiros, sempre encontrei as referências para o meu trabalho. O Projeto Terra foi criado e se desenvolve, assim como o homem sertanejo, em função da terra sertaneja, promovendo a sua desterritorialização. 4.3 DE CANUDOS A VENEZA: UMA TRAJETÓRIA E DUAS DIREÇÕES? Como se sabe, o Projeto Terra foi idealizado e projetado para ser desenvolvido, exposto e consumido na zona rural, mais precisamente no Sertão baiano. Mas, percorrendo as ações desse projeto, constata-se, em sua trajetória, uma caminhada bem diversificada: o Projeto Terra sai, em 1988, da pequena Canudos, localizada no interior da Bahia, terra regada pelo sangue de Antônio Conselheiro e seus seguidores para Veneza, na Itália, um local distante e diferente. Poder-se-ia perguntar de pronto: Há um distanciamento da proposta inicial? Como um projeto pensado e destinado ao Sertão extrapola os limites de sua geografia e ganha projeção fora de um espaço por ele, anteriormente, negligenciado? Não se trata, pois, de um desvirtuamento, dito de outra maneira, de uma nova tomada de direção.

133 O fato de o artista Juraci Dórea ter sido convidado a participar da 43ª Bienal de Internacional Veneza, representando o Brasil, juntamente com José Resende, não coloca em xeque o ideário do Projeto Terra. Ao contrário do que se possa imaginar, este acontecimento reforça as metas do Projeto, superando as expectativas anteriormente traçadas para o cumprimento do seu ideário, na medida em que possibilita a outros povos o conhecimento de uma cultura diferente. Fá-los também conhecer outras nuanças, localizadas muito além dos estereótipos do Brasil do futebol, do samba e das mulatas sestrosas. Recuperando a expressão de Fokkema, essa perspectiva contribui com o rompimento das hierarquias discriminadoras. Tudo começou lá no Sertão, com a proposta de radicalizar o discurso artístico [...] (DÓREA, 2003a, s.p.), com o cumprimento das metas e objetivos contidos na proposição do Projeto Terra, que, reforçando o já dito, além do trabalho com escultura e pintura, previu a documentação de todas as suas etapas, através de fotos, gravações e filmagens, a participação de profissionais de outras áreas do conhecimento humano, a fim de acompanhar e analisar as suas ações. Das atividades desenvolvidas pelo Projeto na primeira metade da década de 1980, publicou-se um livro (DÓREA, 1985) ilustrado, contendo seis ensaios, com textos de Frederico Morais, Chico Liberato, José Carlos Capinan, Matilde Matos, José Carlos Teixeira e Antônio Brasileiro. Dórea (2003a, s.p.) argumenta que, mesmo de forma limitada [...] com a circulação deste livro e as rápidas exposições com os resultados do Projeto, a crítica tomou conhecimento da proposta. Aconteceu, para o bem da obra de Juraci Dórea que, em 1987, a 19 ª Bienal Internacional de São Paulo abriu inscrição para a participação no evento e Dórea enviou parte daquela documentação em forma de proposta de trabalho a ser apreciada pela comissão organizadora do referido evento. O seu trabalho foi selecionado. Na ocasião, confessa o artista: