RESENHA DO LIVRO PRINCÍPIOS DO SISTEMA ALFABÉTICO



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Transcrição:

ROSSI, Aglael J. A. Resenha do livro Princípios do Sistema Alfabético do Português do Brasil, de Leonor Scliar-Cabral. Revista Virtual de Estudos da Linguagem ReVEL. V. 3, n. 5, agosto de 2005. ISSN 1678-8931 [www.revel.inf.br]. RESENHA DO LIVRO PRINCÍPIOS DO SISTEMA ALFABÉTICO DO PORTUGUÊS DO BRASIL, DE LEONOR SCLIAR-CABRAL Aglael J. A. Gama Rossi 1 gamarossi@uol.com.br Princípios do Sistema Alfabético do Português do Brasil, de Leonor Scliar- Cabral (2003), demonstra como se aplicam ao português do Brasil (PB) os Princípios que estão na base da escrita alfabética, a qual teve origem na divisão das sílabas unidades da percepção de fala em crianças pré-alfabetizadas e iletrados em unidades menores (fonemas), que, por sua vez, associaram-se a uma ou mais letras (grafemas). Por que explicitar tais Princípios? Segundo Evanildo Bechara, em seu Prefácio ao livro, para que futuros lingüistas, professores de português, psicolingüistas, fonoaudiólogos e psicopedagogos, além de professores de português a estrangeiros e programadores em computação, acrescenta a autora, encontrem os fundamentos teóricos e os recursos práticos necessários a um efetivo desempenho profissional. Scliar-Cabral diz ainda estar convicta de que a principal causa dos fracos resultados obtidos no ensino-aprendizagem da leitura e escrita encontra-se na falta de uma sólida fundamentação, por parte dos educadores, a respeito dos processos de descodificação e codificação, que por sua vez constituem as duas vias do sistema alfabético e, portanto, a base para os complexos processos de compreensão e produção do texto escrito. Para Scliar-Cabral, ser (bem) alfabetizado é não titubear a cada passo diante de um grafema (uma letra ou uma seqüência de duas letras, que corresponde a um fonema, como sc em nasce ), o que impede o processamento fluente das frases para se chegar à compreensão textual. 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 1

Sobre a relação entre os dois sistemas verbais, oral e escrito, Scliar-Cabral diz que, historicamente, a fala nos é dada, pois onde quer que haja traços de humanidade, haverá algum tipo de especialização do hemisfério esquerdo, e com isso a possibilidade da linguagem verbal oral, ao passo que a escrita é uma invenção que tem de ser intensiva e sistematicamente aprendida (Coulmas, 1989 apud Scliar-Cabral, 2003), que surge como um modo secundário de sistema verbal, datado muito recentemente na história humana. A autora nos relembra ainda que, ao uso inicial da modalidade escrita por uma minoria opunha-se uma vasta população de iletrados e reafirma que a escrita co-existe com a exclusão e/ou a pobreza e/ou ser explorado e/ou ser limitado em seus direitos no exercício da cidadania; porém, apesar disso, diferentemente da fala, a escrita não condena ninguém ou nenhum grupo social à extinção física. Aponta Scliar-Cabral (p.41): As condições dramáticas dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, onde crianças muito pequenas têm que trabalhar para sobreviver, onde os professores do ensino fundamental ganham salários degradantes, onde os direitos humanos mais elementares são negados, barram qualquer motivação para aprender a ler e escrever. A maioria das famílias destas crianças, mesmo se um dos pais reconhece umas poucas palavras, pratica unicamente seus mais rudimentares usos sociais, valendo-se de algumas estratégias que estão muito distantes dos princípios dos sistemas alfabéticos. De acordo com José Morais (1996, p. 25), psicolingüista português da Universidade Livre de Bruxelas - que esteve em seu ano sabático, juntamente com Régine Kolinsky, no laboratório de Psicolingüística coordenado pela autora na Universidade Federal de Santa Catarina - no que concerne à política da leitura, (aqui e) em toda parte, assistimos a um choque de ideologias e, no campo prático, a uma grande confusão de idéias. Diz ele: não se deve esquecer de que o desenvolvimento e a generalização da leitura só dependem de um ensino eficiente e aberto a todos. Scliar-Cabral esclarece que a leitura antecede a possibilidade de escrita, uma vez que ninguém pode aprender a escrever sem primeiro ter aprendido a ler, pois quando se lê não se está escrevendo, mas quando se escreve, a leitura é obrigatória. Diz ainda que, ao contrário da fala, a escrita propicia uma possibilidade diferente de reificação ou conceitualização, uma vez que o pensamento pode aprofundar-se e tornar-se reflexivo, com as várias voltas possibilitadas pelo texto escrito aos trechos mais difíceis, surgindo 2

daí os pensamentos filosófico e científico. Existem ainda, segundo a autora, limites em se fazer metalinguagem (usar a própria língua para refletir sobre outro sistema de signos) com o sistema oral. Ou seja, é maior a distância entre sujeito e objeto de conhecimento na escrita que na fala. É assim que esta é percebida como um continuum de sons tanto por crianças pequenas como por adultos não alfabetizados, enquanto o contato com o sistema alfabético permitirá um suficiente distanciamento dela para levar à percepção consciente de que a sílaba pode ser desmembrada em unidades menores, os fonemas. Essa consciência não é encontrada em sujeitos que não tiveram contato com o sistema alfabético. José Morais (1996, p. 92-7) analisa poetas portugueses iletrados para a habilidade metafonológica de rima que pudesse levar espontaneamente a uma conscientização dos fonemas. Seu argumento era de que se não houvesse continuidade entre a habilidade de rima e a habilidade fonêmica, a descoberta do fonema somente seria possível na aprendizagem do código alfabético. Morais refere que os poetas iletrados são perfeitos em tarefas de julgamento e de produção de rimas, mesmo quando a rima deve ser distinguida da assonância ( gume e lume rimam entre si, enquanto bule constitui uma assonância em relação a ambos). Segundo o autor, os poetas iletrados apresentam grande atenção para as semelhanças e diferenças fonológicas das expressões de fala. Contudo, não conseguem dar uma explicação aceitável do que é rima, embora produzam novos exemplos com uma facilidade desconcertante. Da mesma forma, não conseguem explicar por que uma assonância não é uma rima. De fato, o poeta iletrado português avaliado em testes psicolingüísticos por Morais para a emergência da consciência do fonema mostra-se incapaz de fazer subtrações de fonemas. Quando Morais (op. cit.) pede-lhe que subtraia o som inicial de fup, o poeta insiste em responder pi (uma vez que o p final pronuncia-se com o acréscimo de um i ). Somente após uma série de testes, nos quais o autor materializa a ocorrência de cada som associando-o a moedas, o poeta consegue concluir que se f é retirado de fa, então resta a, e que s é a primeira moeda em sé, então é, a segunda. Morais conclui que não há período crítico para descobrir o fonema e aprender a ler e escrever no sistema alfabético. Mas acrescenta que o poeta iletrado, hábil manipulador de rimas, terá tanta dificuldade para analisar a fala em fonemas quanto uma criança de 5 anos. Scliar-Cabral reafirma a influência recíproca entre a consciência metafonológica ou o conhecimento metalingüístico por meio do qual se pode manipular 3

conscientemente os fonemas e aprender a ler e escrever via um sistema alfabético, acrescentando que o próprio reconhecimento das partes da gramática (artigos, preposições, pronomes, clíticos ou vocábulos fracos que se prendem às palavras que os seguem, desinências ou sufixos flexionais, ressilabificações entre vocábulos terminados em consoante seguidos de vocábulos iniciados em vogal) somente ocorrerá com a ajuda de um sistema alfabético de escrita. De fato, o aparecimento do fonema na fala, a partir do contato com o sistema alfabético de escrita, refere-se à chamada segunda articulação de Martinet (1964, p. 12-5 apud Scliar-Cabral, 2003), porque acima dela fonemas juntam-se para formar, desinências, morfemas, vocábulos, e abaixo dela, na terceira articulação, fonemas são subdivididos ou ainda re-analisados em feixes de traços distintivos, tais como: [±nasal], [±vozeado], etc. Desse modo, o código alfabético permite evidenciar as três articulações da fala. Na escrita, a terceira articulação corresponde aos traços das letras em torno de um eixo e à possibilidade de rotação (espelhamento) no espaço. Diz Scliar-Cabral (p. 44): Os sistemas alfabéticos modernos (...) apresentam contrastes discretos com transparência: não somente as palavras são separadas por espaços em branco, mas também as letras contrastam entre si. As dificuldades que o aprendiz experimenta consistem no fato de que ele tem de reconstruir a forma de perceber a cadeia da fala a fim de segmentar o continuum que escuta em palavras, depois em sílabas e finalmente na realização dos fonemas que necessitarão ser relacionados a uma ou mais letras correspondentes (os grafemas). De acordo com Elie Bajard (2001, p. 26): nessa duplicação, a escrita adquiriria muito mais do que o reflexo do oral: ela herdava sua eficácia. Continuando, diz ele (op. cit., p. 27): quanto mais reduzido é o número de signos, mais sua combinatória se torna complexa (...) Assim sendo, como herança da língua oral, a escrita recebe o precioso equilíbrio atingido pela lenta maturação das línguas naturais através da pré-história, entre o número de figuras acústicas utilizadas e o tamanho da codificação das palavras. Essa codificação resulta de um meio-termo entre um aumento sem fim dos signos das escritas ideográficas e o custo de uma combinatória excessiva (linguagem da informática) imposta por uma codificação binária. Disso decorre a produtividade e criatividade do sistema alfabético de escrita, uma vez que, com um conjunto limitado de signos escritos é possível compor um número ilimitado de leituras e escritas, de textos que nunca foram antes lidos/escritos. 4

No que concerne à oposição oralidade vs. escrita, Scliar-Cabral apela aos limites das memórias imediata, operacional (que processa sucessivamente as informações no cérebro) e permanente, para afirmar que, apesar de nenhuma das duas modalidades ser ideologicamente isenta, o conhecimento global que a humanidade produziu até hoje somente pode ser acessado e selecionado dentre uma massa de dados registrados. Conclui-se daí que aqueles que não dominam de modo competente um sistema de escrita, deixam de ter acesso à produção cultural humana. Morais (1996, p. 25) diz que: A leitura não é apenas uma questão de bibliotecas. Ela depende também, indiretamente, do apoio concedido ao teatro, ao cinema, à música, às artes plásticas, às exposições científicas. Além de conceder uma sólida fundamentação às pessoas que de alguma forma são responsáveis pelo ensino e aprendizagem da leitura e escrita, Scliar-Cabral afirma que o outro objetivo de Princípios é motivar novas pesquisas na área, subentendida como Lingüística, Psicolingüística esta última, da qual é uma das fundadoras no Brasil, juntamente com Claudia de Lemos - Lingüística Aplicada e Educação. Scliar- Cabral propõe-se a um exercício de fazer pesquisa ao tratar da diferença entre consciência fonêmica e outras capacidades metafonológicas. A primeira tem estado na base da colocação de hipóteses, da montagem de testes, da discussão dos resultados provenientes de sua aplicação, por aqueles que têm tentado mensurá-la, com o intuito de predizer o sucesso da criança na alfabetização, ou para prepará-la ou para reabilitá-la. Pergunta-se Scliar-Cabral: o que é consciência fonêmica e qual o estatuto das unidades fonêmicas. Para a autora, ainda se está longe de um consenso sobre a realidade psicológica das unidades fonêmicas, o que faz das publicações sobre sua consciência uma verdadeira torre de Babel. A diferença entre essa consciência e outras capacidades metafonológicas pode ser apreciada num exemplo de Morais (1996, p. 91): A consciência fonológica deve ser distinguida da sensibilidade à fonologia. Essa sensibilidade é um componente da compreensão da linguagem falada, que permite ao ouvinte reconhecer corretamente, por exemplo, os pronomes adjetivos possessivos franceses mon, ton, son. Meu filho David, quando tinha dois anos e meio e ainda não conhecia sequer uma letra, protestava vigorosamente quando nos ouvia dizer, na Sabóia, que iríamos visitar Monchavin: Não, não é ton [teu] chavin, é mon [meu] chavin. Ele podia portanto discriminar entre palavras que só diferem por uma consoante, mas para isso não tinha necessidade de representar o elemento diferente. A consciência fonológica, por sua vez, vai além da discriminabilidade perceptiva, resulta de uma reflexão sobre as propriedades fonológicas das expressões, mais exatamente ela é essa reflexão. (...) Quando David 5

reivindicava ir a son chavin, mostrava que possuía representações mentais separadas para mon e ton, e que as distinguia. Nenhuma reflexão sobre a forma fonológica está implicada nesse comportamento. Antes de dissecar a consciência fonológica, esclarecendo os disparates dos testes desse tipo de capacidade aplicados na maior parte das vezes de forma indevida a crianças pré-escolares, Scliar-Cabral cita Morais, Mousty e Kolinsky (1998, p. 127) para resumir: Acreditamos em que a relação entre a aquisição da consciência sobre o fonema e a aquisição do letramento alfabético é o de causalidade recíproca. Scliar-Cabral nos oferece uma breve história, mas excelente, de como evoluíram as Intuições Fonológicas do Sistema Alfabético do Português do Brasil, incluindo as reformas brasileiras realizadas no sistema ortográfico do português e as Intuições Fonológicas na ortografia do Português. A autora explica, inicialmente, as três fases de fixação da escrita em língua portuguesa (Freire da Silva, 1906, p. 88; Chaves de Melo, 1967, p. 212 apud Scliar-Cabral, 2003): (1) a fonética, (2) a pseudo-etimológica e a (3) simplicada. Esclarecem-se aí o surgimento das discrepâncias nos sistema alfabético da escrita do português do Brasil: mudanças fonológicas e fonéticas não acompanhadas pelos respectivos ajustamentos naquele sistema, e espécie de idolatria pela escriptura da língua matriz (Freire da Silva, 1906, p. 99 apud Scliar-Cabral, 2003), que consistia em manter no vocábulo português as letras do vocábulo latino correspondente (...), ainda quando essas letras já não indicavam fonemas (Mattoso Camara Jr., 1964, p. 167). A simplificada, segundo a autora, bem definida por Mário Barreto (1954, p. 17 apud Scliar-Cabral, 2003): É influência deformadora a que a etimologia exerce na ortografia (...) cuja única utilidade dizem que é lembrar a etimologia verdadeira ou falsa de tais palavras (...). É mister que a língua portuguesa tenha uma forma portuguesa. De acordo com Scliar-Cabral, as intuições fonológicas estão, portanto, na base do sistema alfabético do português no Brasil, podendo ser restringidas por apenas dois fatores: a aplicação dos argumentos etimológicos e a mudança diacrônica, não acompanhada de ajustes na ortografia. Contudo, afirma a autora, Evidentemente, não é possível que o sistema escrito reflita todas as variantes fonéticas geográficas, sociais e diastráticas (...) Mattoso Camara Jr. (1989, p. 77) expende o mesmo ponto de vista (que Houaiss, citado antes pela autora): É evidentemente indispensável um sistema gráfico único. (...) É de Mattoso Câmara Jr. (1986, p. 77 apud Scliar-Cabral, 2003) que a autora retira o conceito de descodificação (em oposição a decodificação, termo talvez mais 6

afeito ao leitor): A sua importância [da ortografia] está em permitir-nos pela leitura dos símbolos gráficos reproduzir mental ou oralmente os sons de que se compõem as palavras. Secundariamente, a forma visual que a palavra assim assume concorre para fazer-nos reconhecê-la e auxilia a evocação dos seus sons ou fonemas. Em Princípios Aplicados pelo Leitor: Descodificação e Princípios Aplicados à Escrita, Scliar-Cabral chega ao campo que a consagrou, a Psicolingüística, explicandonos como se dá a leitura e, por conseguinte, a aplicação dos princípios numa sistema alfabético de escrita, neste caso, mais especificamente, o do português do Brasil. Segundo a autora: O reconhecimento e identificação das letras que representam os grafemas e seus respectivos valores (...) no sistema da língua portuguesa do Brasil, ocorre através de quatro meios (...). São eles: reconhecimento e identificação das letras da palavra por meio dos Princípios; com a informação sobre sua classe gramatical, composição morfológica e recuperação de seu sentido; a busca do sentido da palavra na frase por meio da memória operacional ou de trabalho, até chegar à compreensão do texto; e, por fim, se a palavra não pertencer ao léxico do leitor, a atribuição de seu sentido a partir da informação do contexto circundante. No que concerne aos Princípios Aplicados à Escrita, a autora define: as fases de pré-leitura e de planejamento, que precedem a linearização lingüística, com inserção de itens lexicais nas casas constituintes; outra de comandos manuais, a depender do suporte empregado para a escrita; além de monitoração e revisão. Trata-se, portanto, do processo inverso ao da descodificação, ou seja, o da codificação. Ao esclarecer-nos os Princípios, Scliar-Cabral dá-nos as bases para uma prática escolar ou clínica consciente e, por conseguinte, responsável, baseada naquilo que Mário Perini (2001, p. 12-13) designa por conhecimento explícito em oposição a implícito: Será preciso, primeiro, distinguir dois tipos de conhecimento, aos quais se dão as designações de implícito e explícito. Vamos partir de um exemplo (...) Minha maneira de andar atende às finalidades práticas às quais aplico essa atividade, e não distingue se notavelmente da maneira de andar da maioria de meus conhecidos. No entanto, não sou capaz de explicar os processos musculares e nervosos que ocorrem quando ponho em prática essa minha habilidade tão corriqueira. A fisiologia do andar é para mim um completo mistério. Pergunta-se, então: tenho ou não tenho conhecimento adequado da habilidade de andar? A resposta é que tenho esse conhecimento em um sentido importante, ou seja, sei andar tenho conhecimento implícito adequado da habilidade de andar. Já meu conhecimento explícito dessa habilidade é 7

deficiente, pois sou incapaz de explicar o que acontece com meu corpo quando estou andando. (...) não conseguiria dar uma aula a respeito ou colocar tudo no papel. (...) Meu andar se submete a regras muito específicas, que poderão eventualmente ser estudadas por um especialista e, por exemplo, colocadas no papel na forma de uma descrição detalhada. (...) qualquer falante de português possui um conhecimento implícito altamente elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar esse conhecimento. No que concerne aos Princípios, Scliar-Cabral refere que: Uma vez que as línguas das quais cada sistema alfabético é dependente mudam mais rapidamente do que sua contrapartida escrita, algumas relações fonêmico-grafêmicas passam as ser cada vez mais opacas com o passar do tempo e somente as regras de derivação morfológica ficam produtivas para algumas famílias de palavras; neste caso, um léxico mental ortográfico precisa ser fixado de memória, o que torna de novo o sistema antieconômico. (...) Assim a grafia dos radicais básicos que estão em desacordo com as regras grafêmico-fonológicas é aprendida, são globalmente relacionadas ao léxico mental fonológico e a melhor aprendizagem é certamente obtida através da leitura maciça. Para a exposição dos Princípios, Scliar-Cabral adota uma formalização, empregada para cumprir, segundo ela, requisitos de simplicidade, coerência interna e exaustão. Porém, é preciso desde logo esclarecer que não há o que temer quanto à formalização - Princípios formalizados em regras que norteiam ou compõem o Sistema Alfabético do português do Brasil. Trata-se, portanto, de uma exposição didática, não dirigida a formalistas, mas como nos diz o livro todo o tempo, a profissionais da escola e da clínica que lidam com leitura e escrita. Dentre as provas do didatismo de Princípios, temos que: ao início do livro, Scliar-Cabral faz uma apresentação do conjunto de símbolos que levam à leitura de uma regra, e em seguida esclarece o Quadro Fonêmico das Consoantes e o Sistema Vocálico do Português do Brasil, uma vez que, em sendo Alfabéticos, os Princípios, como já fora dito, referem-se às correspondências entre fonemas (sons consonantais e vocálicos) e grafemas. Ainda todas as regras são lidas pela própria autora após sua apresentação formal e seguidas de exemplos dos contextos nos quais atuam. Por exemplo, em relação às regras de descodificação cuja correspondência grafo-fonêmica depende do contexto, Scliar-Cabral esclarece que a regra: 8

c sc xc /s/ + V[-post] V[+post] c /k/ + l r deve ser lida como: os grafemas c, sc e xc se lêem como a transposição à realização do fonema /s/ se estiverem, na mesma sílaba, antes das letras que representam a realização das vogais [-post] (posteriores), com ou sem diacríticos (que recebem acentos ortográficos), como i e í ; e, ê e é. Exemplos: cinema, cinco, nasci, nasce, prescindir, excitar, cena, asceta, exceto. A autora ainda relembra que: as letras i ou e podem ser lidas como a realização da semivogal /j/ (ditongo) ou /i/, quando o ditongo for lido como hiato, como nos exemplos: macieira (lida como maciejra, ditongo, ou maciera, hiato), alcear (lida como alcear ou alceá, quando o /R/ que denota o infinitivo é reduzido), insciente (lido como inscjente, ditongo, ou insciente, quando a vogal nasalizada é lida como hiato), e písceo (lido como píscio ou písceo, com /o/ em hiato, e píscjo, como ditongo). Continua Scliar-Cabral dizendo que, em todos os demais contextos, o grafema c é lido como o fonema /k/. Após a explicitação de cada regra, a autora propõe sua Aplicação. No caso da regra exposta acima, ela refere: (...) Na regra acima vimos que as letras i ou e acarretam o valor da realização do fonema /s/ toda a vez que vierem depois de c (sozinha ou no dígrafo); por outro lado, o valor passa a ser a realização de /k/, toda a vez que as letras u, o, a, com ou sem diacríticos, vierem depois da letra c. (...) Portanto, a formalização não impede a leitura, compreensão, assimilação e aplicação dos Princípios. Inclusive, ressalte-se que estes podem ser consultados de acordo com as necessidades que enfrenta o leitor a cada momento em seu papel de educador ou clínico. Vale lembrar ainda que o livro divide-se em Princípios que dizem respeito a Regras de Correspondências Grafo-Fonêmicas dependentes ou não do Contexto para 9

Consoantes e Vogais; Regras Dependentes da Metalinguagem e/ou do Contexto Textual Morfossintático e Semântico; dos Princípios Aplicados à Escrita (quando, de acordo com a autora, serão examinados os Princípios que tratam da escolha dos grafemas após a seleção e inserção do item lexical na frase ou codificação); de Alternativas Competitivas (homófonos, trás e traz, e similares semânticos, emigrante e imigrante) para o mesmo contexto fonético (quando, explica Scliar-Cabral, é necessário selecionar no léxico mental ortográfico o item correspondente semântica e morfossintaticamente com a forma fonológica), e que constituem limitações para os corretores ortográficos; Regras Dependentes da Morfossintaxe e do Contexto Fonético e Regras de Derivação Morfológica. Sobre estas, Scliar-Cabral explica que evitam a sobrecarga do léxico mental, mesmo em contextos competitivos, e dizem respeito à Derivação Morfológica Aplicada à Codificação no Sistema Verbal. Por fim, encontra-se a Previsibilidade de Codificação em Contextos Competitivos, segundo a autora, a partir da origem etimológica, da alternância consonantal nos cognatos e da sufixação ou da prefixação. Aqui, novamente, Scliar-Cabral aponta o que pode confundir um corretor ortográfico. Tudo o que foi apresentado acima mostra-nos a necessidade e importância de desvendar os Princípios da descodificação e codificação do texto escrito, pelas mãos de Leonor Scliar-Cabral, pois a autora visa tornar esse sistema acessível aos responsáveis pelo ensino e aprendizagem da leitura e escrita, para que estes, por sua vez, possam tornar competentes nesse sistema os indivíduos de sua comunidade lingüística, e, portanto, formar pessoas capazes de ir além do texto escrito, refletindo sobre si mesmas e sobre o mundo que as cerca. Segundo Morais (1996, p. 25-6): Quando se reúnem as condições materiais e cognitivas da atividade de leitura, a dimensão pessoal da leitura pode realmente expandir-se. A experiência de vida impregna inevitavelmente o exercício da leitura. Não se concebe a arte de ler sem a arte de viver. Morais (1996, p. 26) afirma ainda que Um dos heróis de Yourcenar diz: A vida me esclareceu os livros (Memórias de Adriano). Referências Bibliográficas BAJARD, Elie. Ler e Dizer. Compreensão e comunicação do texto escrito. São Paulo: Editora Cortez, 2001. MORAIS, José. A Arte de Ler. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. 10

PERINI, Mário. Sofrendo a Gramática. Ensaios sobre a linguagem. São Paulo: Editora Ática, 3ª. Edição, 2001. SCLIAR-CABRAL, Leonor. Princípios do Sistema Alfabético do Português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003. 11