Matéria do Jornal Beira do Rio da Universidade Federal do Pará. Ano XXVII Nº 109, Nov. e Dez. de 2012. Projeto analisa a relação de municípios paraenses com os grandes rios da região por Glauce Monteiro / Novembro e Dezembro 2012 foto Alexandre Moraes Santarém, Marabá e Cametá. Em comum, têm a condição de serem cidades intermediárias da rede urbana regional e o fato de estarem localizadas às margens de importantes rios. O Projeto de Pesquisa "A cidade e o rio na Amazônia: mudanças e permanências face às transformações sub-regionais", coordenado pelo professor Saint-Clair Trindade Jr., do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA), estuda estes espaços urbanos em sua interação com os rios Tapajós, Itacaiunas e Tocantins, respectivamente. A urbanização da Região Amazônica seguiu o curso dos rios. Inicialmente, apenas pelas vias fluviais, passageiros e cargas podiam alcançar os distintos núcleos urbanos, os quais se aglomeravam, o mais próximo possível, do leito dos rios. Assim, reunindo habitantes e possibilitando as trocas de produtos, os habitantes passaram a ser conhecidos como ribeirinhos, aqueles que viviam próximos aos ribeiros, aos cursos d água. Ocupação por rodovias não extinguiu os cursos fluviais "A base de que parte toda a pesquisa do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ordenamento Territorial e Urbanodiversidade na Amazônia (Geourbam) é que há espaços urbanos que continuam a ter forte relação com o rio. Isso acontece, apesar dos processos recentes que mudaram as dinâmicas de ligação e interação das cidades na região, especialmente, os relacionados aos grandes projetos e políticas públicas que implantaram uma malha rodoviária na
Amazônia. Mesmo com a nova forma de ocupação, orientada, principalmente, pelas rodovias e não mais pelos rios, ainda temos nas cidades intermediárias da rede urbana regional o modo de vida ribeirinho, ou seja, uma interação das populações locais com os cursos fluviais", conta o aluno do Mestrado em Geografia da UFPA e ex-bolsista de Iniciação Científica da Universidade, Michel Lima. Os pesquisadores utilizam o conceito de urbanodiversidade para ajudar a expressar mudanças, permanências e coexistências de formas plurais de vida urbana na região, responsáveis por revelar especificidades dos núcleos urbanos e mostrar que, entre o rio e a estrada, há uma diversidade do fenômeno urbano na Amazônia. "A diversidade urbana ou urbanodiversidade é revelada não somente por diversos tipos de cidades e pela existência de múltiplos tipos de urbanização, mas também por formas complexas de espaços urbanos que indicam a hibridização de relações marcadas por contatos e resistências em face da chegada na região de processos de diferentes naturezas", explica Saint-Clair Trindade Jr. A pesquisa voltou-se, então, para os espaços denominados de "orlas fluviais", aqueles apontados pelos moradores como "beiras" ou "frentes das cidades". "Trata-se de espaços que condensam relações e objetos socioespaciais/geográficos que, considerados em conjunto, traduzem, na atualidade, uma síntese dos tempos que presidiram a produção do espaço regional. São, dessa maneira, tidos como espaços representativos das cidades ribeirinhas e definidos como espaços de contato imediato da cidade com o rio e, por esse motivo, singulares para os propósitos da pesquisa", relata o pesquisador do NAEA. Para o grupo, o modo de vida que caracteriza as cidades ribeirinhas ainda persiste mesmo em aglomerados urbanos maiores, especialmente, naqueles localizados às margens de grandes e importantes rios da região, como o caso de Santarém, nas margens do rio Tapajós; de Cametá, banhada pelo rio Tocantins; e de Marabá, situada no encontro do rio Tocantins com o rio Itacaiunas. Nem toda cidade beira-rio é ribeirinha, diz pesquisador A pesquisa também atribui diferença entre as "cidades beira-rio" e as "cidades ribeirinhas". As primeiras possuem um forte apelo à paisagem e às formas espaciais, mas não a outros elementos que identificam as interações da cidade com o rio do ponto de vista da economia, das atividades lúdicas, da circulação e da dimensão simbólica e cultural desta interação.
"Para além da localização, as cidades ribeirinhas também trazem consigo um conteúdo de fortes e múltiplas interações de sua população residente com o elemento hídrico que lhe está próximo. Nesse sentido, toda cidade ribeirinha é uma cidade beira-rio, mas nem toda cidade beira-rio é, necessariamente, ribeirinha", resume Saint-Clair Trindade Jr. Segundo o geógrafo Michel Lima, a pesquisa "Interfaces da cidade com o rio no Sudeste Paraense: Estudo sobre a Orla Fluvial de Marabá", da qual foi bolsista de Iniciação Científica, mostrou que, embora a gradação das relações com as orlas fluviais exista, no caso de Marabá, a relação com o rio nos espaços de orla é mais intensa do que se esperava. "Analisamos a importância dos rios para o conjunto de aglomerados e diversos agentes que vivem na orla e os usos que estes agentes fazem destes espaços, ou seja, como fonte de alimento, fonte de água potável, uso doméstico (afazeres domésticos), lazer, transporte, comunicação, paisagem, local de encontro e interação entre grupos, entre outros aspectos. O vínculo com os rios ainda é muito significativo no cotidiano destas pessoas", assegura. Para ajudar a definir se as cidades analisadas estavam mais próximas ou distantes do perfil de cidades ribeirinhas ou de cidades beira-rio, o projeto de pesquisa utilizou como um dos critérios a existência dos "espaços de vivências ribeirinhos" nas orlas fluviais. Esses espaços são locais nos quais os agentes e grupos locais interagem de forma mais intensa e multidimensional com o rio, de maneira que estes usos e hábitos em relação às orlas fluviais marcam a organização da infraestrutura urbana atual. "A existência de espaços de vivência ribeirinhos mostrou-se muito mais presente, como era de se esperar, em realidades em que as frentes de expansão econômica recentes tiveram pouca inserção. Trata-se de espaços em que as relações mais modernas e de reprodução efetiva de processos capitalistas pós-1960 não demarcaram, de forma profunda, novas espacialidades e novas territorialidades", revela o docente do NAEA. Nos diversos municípios, os pesquisadores, sob a orientação do professor Saint-Clair Trindade Júnior, realizaram observações sistemáticas do uso das áreas de orla, aplicaram formulários com os moradores sobre os usos que fazem destes espaços, realizaram entrevistas com habitantes da orla a respeito da sua percepção sobre esta faixa entre o rio e a terra e ainda fizeram entrevistas com representantes do poder público, sobre as políticas e os projetos pensados para esses espaços ou a resolução dos problemas dessas áreas. "Pretendeu-se, a partir dessas três realidades urbanas, em Cametá, Marabá e Santarém, destacar o papel que a cidade ribeirinha amazônica assume em realidades que se inseriram, de forma diferenciada, nas políticas
de ordenamento territorial das últimas décadas", resume Saint-Clair Trindade Jr. Comércio, atividades domésticas e interação entre grupos Segundo os dados preliminares da pesquisa, em cada cidade analisada, foi constatado o uso plural dos rios e sua importância econômica, social e cultural para os moradores, mas também destacada a relação destes espaços com outros agentes como os turistas. "Percebemos, em Marabá, que, nas políticas, há uma certa valorização das ações em relação ao turismo, sob as ações que se referem aos moradores. E parte do nosso objetivo era dar visibilidade aos outros agentes e à importância e necessidade de ações em outras áreas, como saneamento, água potável, energia e transporte", conta Michel Lima. Em Marabá, ao longo da orla, foram localizados nove pontos principais de convivência e interação que se referem a espaços de vivência ribeirinhos, mas também indicam os usos e significados da orla entre os habitantes. "O porto, o abastecimento de peixes e de produtos diversos, a lavagem de roupa, as conversas durante esta atividade e o balneário configuram relações que formam os espaços que aglomeram os moradores e descrevem sua relação com os rios Tocantins e Itacaiunas", conta a estudante de Geografia da UFPA e bolsista de Iniciação Científica do Projeto, Débora Aquino. Segundo os pesquisadores, a relação com os rios é mais intensa e marcante do que eles esperavam. "Até mesmo o sistema de alagamentos ou inundações sazonais que eles têm neste local, que obriga os moradores a saírem de suas casas durante parte do ano, tem uma rede de interação e de significados surpreendente. Eles garantem que não têm interesse em mudar para áreas não alagadas e ressaltam as relações de solidariedade entre os moradores, tanto no que diz respeito ao aviso sobre a elevação das águas, no que diz respeito à reorganização comunitária, no período em que eles não podem viver em suas residências", revela Michel Lima. Em Cametá, a relação com o rio Tocantins é ainda mais importante. "Até mesmo por conta da organização do núcleo urbano que, além de 3 km de orla, se articula a um número significativo de ilhas", explica Gesiane Trindade, também bolsista de Iniciação Científica do Projeto. A este cenário, a estudante de Geografia acrescenta a importância que a cidade tem na região, como ponto de troca da produção e de negociação e escoamento desses produtos vindos do interior de Cametá e de outros municípios, como Mocajuba e Limoeiro do Ajuru. "Por esse perfil, com alto enraizamento regional, Cametá possui um número menor de espaços de vivências ribeirinhos, mas esses espaços se distribuem por áreas maiores e não tão pontuais. A cidade é marcada também
pelas características desses pontos, que se referem, especialmente, a portos, trapiches e feiras. Podemos destacar, ainda, que os pontos convergem em torno da Feira e do Porto Pedro Teixeira", conta Gesiane Trindade. Já no Baixo Amazonas, área em que se encontra a cidade de Santarém, os processos de mudança foram menos intensos no passado recente e só agora eles vêm se expandindo. "A circulação fluvial e a rodoviária tendem, ainda, a se combinar e a se complementar, não anulando em definitivo os espaços de vivências ribeirinhos existentes. Para essa realidade urbana, mesmo tendo sido cartografado e caracterizado um total de sete espaços em que a relação cidade e rio ainda é muito forte, há uma tensão relativamente marcante entre as mudanças e as permanências", reforça Saint-Clair Trindade Jr.. Espaços de vivências determinam a classificação da orla O coordenador da pesquisa destaca que os processos de mudanças e permanências urbanas nestas três cidades são diferentes. Em Marabá, as mudanças são mais intensas, razão pela qual os "espaços de vivências e de resistência ribeirinhos" apresentam-se de maneira puntiforme. Em Cametá, onde as transformações regionais são menos marcantes, aqueles tipos de espaço manifestam-se de forma mais zonal ou em manchas, ao longo da orla. Já em cidades como Santarém, as coexistências são mais presentes e os "espaços de vivências e de resistência ribeirinhos" manifestam-se tanto de uma quanto de outra forma, revelando certa tensão entre o que muda e o que permanece. Assim, "em que pese o maior número de espaços de vivências ribeirinhos existentes em Marabá, não é nele onde a vida ribeirinha está mais presente, mas sim em Cametá. Nesta, tais espaços são em menor número e a configuração espacial assumida é muito mais zonal ou em manchas e, por essa razão, é mais extensa do ponto de vista territorial e menos residual do ponto de vista das relações, diferentemente do que acontece nas outras duas cidades", sintetiza o coordenador do grupo. Com base na investigação científica, as orlas foram definidas em três grupos de orlas fluviais: as orlas enraizadas, mais presente em Cametá; as orlas fluidas e as orlas padronizadas ou estandardizadas, mais presentes em Santarém e Marabá, respectivamente. Sendo que a classificação tem como parâmetro a maior ou a menor presença de espaços de vivências ribeirinhos no local. No entanto uma mesma cidade pode apresentar os três tipos de perfis, apesar de ter sido constatada, até o momento, a prevalência de um dos três grupos sobre os demais em cada orla estudada.