PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS NO COTIDIANO DE MICROPOPULAÇÕES E OS FIOS QUE SE TECEM NAS ESCOLAS Patrícia Raquel Baroni UERJ

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Transcrição:

PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS NO COTIDIANO DE MICROPOPULAÇÕES E OS FIOS QUE SE TECEM NAS ESCOLAS Patrícia Raquel Baroni UERJ Compreender a sociedade na atualidade implica vê-la tal como se olha uma colcha de retalhos. Certamente, surpreende-se com o todo, mas é a relação aparentemente fora da lógica convencional entre os retalhos que incita a curiosidade. A partir daí, tem-se o contato com a multiplicidade de relações que compõem a totalidade a qual tanto nos chama a atenção à primeira vista. A presente pesquisa, portanto, pretende tratar dos entrelaçamentos dos cotidianos, dos localismos que constituem os fios da sociedade e dos pequenos retalhos ; tecelagem esta que muitas vezes é percebida apenas quando o olhar sobre a colcha é suficientemente apurado e sensível. Observando a sociedade sob esse olhar de tecelão, destacamos alguns dos retalhos que a compõem como sendo as micropopulações, as pequenas e muitas comunidades que se posicionam ao redor dos grandes centros urbanos cujos anseios e quereres por diversas vezes são ouvidos através das variadas artes de fazer (Certeau, 1994) exclusivas de cada espaçotempo. Tais quereres ganham materialidade através de múltiplas práticas exercidas por integrantes das micropopulações, os quais dispõem de alguns canais de visibilidade e de expressão de suas demandas. Dentre as possíveis ferramentas sociais de amplificação de tais demandas microscópicas, cabe aqui destacar a escola. Sobre a relevância desta percepção, Santos (2006) nos chama a atenção quanto à dimensão da experiência social frente à produção de conhecimento da racionalidade ocidental, ao afirmar que: Em primeiro lugar, a experiência social em todo mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica e filosófica ocidental conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social está a ser desperdiçada (...). Em terceiro lugar, (...) para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um novo modelo de racionalidade. (2006, p. 94) Chamar a atenção aos diversos conflitos, soluções, vivências, saberes invisibilizados por um paradigma racionalizante oportuniza a ampliação de modos de produção atuais da ciência para que se pense o futuro com vistas à resolução dos problemas sociais, ou como o mesmo autor expressa, é preciso expandir o presente para contrair o futuro. (2006, p. 95) Mediante tal quadro, Santos ressalta a importância de voltar às coisas simples. Para tal, seria necessário propor um novo modelo de razão em que se valorize a inesgotável experiência social que está em curso hoje. Com isso, teria-se o advento de uma maior valorização das racionalidades locais, aquelas adequadas às necessidades contextualmente situadas,

contribuindo assim para a concepção de que quanto mais global for o problema, mais locais e mais multiplamente locais devem ser as soluções. (Santos,1995, p.111). O reconhecimento e a valorização das racionalidades locais, dos pequenos retalhos, nos apontam para a análise do sentido da democracia no mundo contemporâneo. Esta vem se afirmando como uma dinâmica de exclusão em boa parte dos espaços da sociedade, uma vez que, muitas vezes, práticas de cunho democrático não garantem ampla participação cidadã, nem a vivência da diversidade; diversidade esta entendida aqui como um trabalhar com as diferenças, sem contudo, hierarquizá-las. Neste sentido, a presente pesquisa busca refletir sobre as possibilidades de se investigar a construção de uma democracia em que haja efetiva participação cidadã, priorizando aquela que é tecida em meio às relações evidenciadas na vida cotidiana. Desta forma, poderíamos observar a vida cotidiana na sua multiplicidade de fios que organizam uma lógica de práticas (Certeau, 1994) e que se configuram em uma dança tanto desordenada quanto promotora de sutis e provisórias harmonias. Sendo assim, compreende-se que uma dada sociedade disporá de maior potencial democrático conforme for a efetividade de seu funcionamento e de mecanismos decisórios sobre os quais se apóia. Tal democracia social requer a construção de práticas emancipatórias as quais possibilitem problematizações contínuas da hierarquização e dos jogos de poder que constituem os diferentes grupos que tecem a teia social. Para que isso seja possível, faz-se necessário colocar em questão as produções de sentido dos grupos hegemônicos, assim como buscar resgatar as possibilidades inventivas que podem vir a se encontrar invisibilizadas em grupos subalternizados que, entre outras manifestações discriminatórias, se sujeitam ao silenciamento originário do contexto não-democrático. No que se refere à idéia de participação cidadã, acreditamos ser necessário repensar o conceito da cidadania para além do mero direito ao voto, o que nos convida a compreender a mesma de modo plural, considerando as maneiras (os usos) que diferentes populações possuem sobre o exercício dos seus direitos. Portanto, isso significa pensar este debate tendo como referência as práticas emancipatórias que se traduzam como ações as quais amplifiquem o campo de possíveis das dinâmicas democráticas, apoiadas na concepção de que a democracia é uma obra de arte político-cotidiana que exige atuar no saber que ninguém é dono da verdade e que o outro é tão legítimo quanto qualquer um (Maturana, 2001, p.75). Se o conceito de cidadania é construído segundo os moldes globalizantes, a cidadania enquanto prática vivida se escreve sobre as linhas do cotidiano mediante os fazeres nos espaçostempos contextualmente localizados, contemplando a perspectiva de que os usos pelos sujeitos destes espaçostempos não corrrespondem aos significados da cidadania definidos pelos

moldes globais. Neste sentido, constitui-se o cotidiano um espaço de possibilidades para a percepção das relações de poder, dos usos subjetivos e das subversões às ordenações de sentido hegemônicas nas dinâmicas sociais. Certeau (1994, p.40) fundamenta as idéias supracitadas ao afirmar que: A presença e a circulação de uma representação (ensinada como código de promoção sócio-econômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam de modo algum o que ela é para seus usuários. É necessário analisar a sua manipulação pelos fabricantes que não a fabricam. Portanto, além do questionamento sobre a existência de forças globalizantes que constroem e modulam planos para grupos que pretendem manipular, é necessário explicar porque tais grupos não se simplificam a estas pretensões; ao invés de simplesmente absorverem as definições dominantes, por inúmeras vezes, se reapropriam de maneira singular delas, redimensionando-as nos microespaços coletivos através de suas variadas maneiras de fazer. Assim sendo, ainda que a escola represente para muitos um instrumento de reprodução dos meios globais, ela é também um lugar privilegiado onde múltiplas práticas cotidianas se realizam. Todos certamente trazemos de nosso cotidiano escolar lembranças, imagens, vozes, leituras, manifestações de afeto (ou de desafeto) que nos remetem a um momento específico da vida e que nos constituem em nossas posturas e ações atuais. Tal espaçotempo que certamente construiu e reconstruiu caminhos nas redes de sujeitos que cada um de nós é (Santos, 1995, p. 107) tem sido meio impulsionador para inúmeras práticas em diversas comunidades. É possível identificar, inclusive, práticas marcadas por processos de lutas e resistências que têm feito a diferença na melhoria da qualidade de vida de algumas populações, práticas estas que são semeadas no interior das escolas, em reuniões de responsáveis, em contatos com professores e funcionários, em projetos desenvolvidos nas unidades escolares. É válido ressaltar que a escola se configura para muitas micropopulações como um dos poucos (senão o único) espaçotempo para a reivindicação e discussão de questões que influem diretamente na vida social e pessoal (se é que seja possível separar estes itens) dos sujeitos que próximo a ela vivem. Desde solicitações de saneamento básico para os moradores, até o apoio para o resgate de uma relação amorosa findada, a escola tem sido, ainda que muitos insistam que cabe a ela apenas o trato das questões educacionais, um dos fios que se entrelaça a tantos outros que movimentam a vida cotidiana. É neste momento que se evidencia a necessidade de compreender as ações cotidianas da escola como práticas criativas, dando a elas a visibilidade que foge a uma lógica racionalizante a qual vê a escola apenas como um espaço de rotina pedagógica e trazendo a compreensão de que

infinitos movimentos tem se entrelaçado dando um sentido muito mais amplo às funções escolares. Um exemplo a ser citado é o da comunidade do Garrão, em Xerém (Duque de Caxias, RJ). O local é considerado pela administração municipal como área rural de dificílimo acesso, sobretudo por ser limítrofe de outros municípios e pela ausência de transporte coletivo, distanciando-se trinta quilômetros do centro da cidade. A comunidade registrava durante as reuniões de responsáveis sua indignação pela falta de pavimentação na estrada principal. De acordo com os moradores, em dias de chuva se tornava difícil conduzir os alunos até a escola sem que os mesmos e seus responsáveis chegassem até ela repletos de lama, visto que o meio usado para tal transporte, na maioria das vezes, era a bicicleta. Os muitos contatos da direção da escola com a secretaria de obras, na tentativa de solucionar a questão não tiveram sucesso. Foi preciso pensar outras alternativas. A solução surgiu durante uma reunião em que uma das mães mobilizou outros responsáveis para uma cantoria de hinos religiosos nas proximidades da residência do prefeito diariamente às sete horas da manhã. Após uma semana de muita cantoria, a secretaria de obras já estacionava seus caminhões na Estrada do Garrão para a sua pavimentação. A estrada do Garrão, então, teve quatro dos seus dez quilômetros asfaltados, tendo a pavimentação início no acesso principal e seguindo até as redondezas da escola. O potencial das práticas sociais que emergem da/na/pela escola capazes de provocar mudanças reais no cotidiano das pessoas que ali vivem e trabalham evidencia o quanto são complexas as relações entre os fios que compõem o cotidiano destas comunidades e que negar a existência destes fios é, sem dúvida, negar o movimento da vida. Neste sentido, pretende-se que esta proposta contribua para que a investigação das práticas cotidianas da escola forneça subsídios para o reconhecimento de manifestações inovadoras, necessárias, escolhidas e vividas as quais durante longo tempo se mantiveram presentes, porém, subjugadas a uma compreensão de que o saber e o fazer são distintos. Quem sabe, se torne possível, assim, apurar os olhares para os pequenos retalhos da vida cotidiana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1.artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.. Cognição, ciência e vida cotidiana. In: MAGRO, Cristina; PAREDES, Victor (orgs.). Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1995.. Um discurso sobre as ciências. 14. ed. Portugal: Afrontamento, 2003.