IMAGENS DA VIOLÊNCIA COMO PROBLEMA PÚBLICO NA REDEMOCRATIZAÇÃO



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Transcrição:

III SEMINÁRIO INTERNACIONAL VIOLÊNCIA E CONFLITOS SOCIAIS: ILEGALISMOS E LUGARES MORAIS 6 a 09 de dezembro de 2011, Laboratório de Estudos da Violência, UFC, Fortaleza- CE 09- Narrativas e Imaginários sobre as Violências e suas Vítimas IMAGENS DA VIOLÊNCIA COMO PROBLEMA PÚBLICO NA REDEMOCRATIZAÇÃO Resumo: O presente trabalho aborda o percurso de construção da violência como problema público no Brasil durante o processo de transição democrática. O objetivo é analisar como determinados sujeitos, situações e relações são eleitos como centro de um problema social e são disputados no seio da vida intelectual e política, no sentido de torná-lo um problema público, a direcionar medidas e ações do Estado. O período da redemocratização é considerado de especial importância por oferecer um cenário em que se articulam, de um lado, as diferentes estratégias de transição democrática e suas resistências e, de outro, a apropriação das violências como preocupação por parte de políticos, jornalistas, radialistas e cientistas sociais. O desempregado, o migrante nordestino, a criança de rua, os quebra-quebras, os grupos de extermínio, os justiceiros, os linchamentos, os presos políticos, os presos comuns e o crime organizado, serão tomados como exemplos do feixe de relações e disputas pela eleição das violências e suas vítimas, informados pelos diferentes momentos do processo de transição. Francisco Thiago Rocha Vasconcelos Doutorando em Sociologia - USP

1. Introdução A história recente da sociedade brasileira apresenta uma série de complexas questões que ainda desafiam a nossa imaginação sociológica e política. No âmbito das Ciências Sociais temos a peculiaridade de um pujante desenvolvimento institucional em plena vigência de uma ditadura militar. Esta, ao mesmo tempo em que responsável pela perseguição à dissidência crítica no seio das universidades, incentivou a expansão contínua da formação superior, com a reforma universitária de 1968 e a criação dos programas de pósgraduação em ciência política e antropologia. Paradoxalmente, a maior maturidade do sistema científico coincidiu com novos arranjos associativos e políticos, fomentadores da crítica ao regime militar e das estratégias de luta pela restauração democrática e construção de um Estado de Direito. Neste contexto, em meio a disputas pela definição das ligações ou fronteiras entre a profissionalização acadêmica e as tarefas políticas, são incorporados novos temas, abordagens e especialidades (Miceli, 1995; 2001; Keinert, 2011). A emergência da preocupação com o tema da violência ganhou então destaque, posto que encerrava uma outra questão desafiadora: no contexto de transformação decorrente do processo de abertura do regime militar, os avanços no campo político coincidem com o fim da tranqüilidade e com o alarde em torno do crime. O crescimento da violência urbana acompanha a transição democrática e dá ensejo a duros embates interpretativos entre defensores do regime, que enxergam na democracia nascente as raízes dos novos males, e militantes em direitos humanos, envolvidos nas campanhas mais amplas pela Anistia e pelas Diretas, assim como em projetos de reforma da justiça criminal implementados pelos governos Montoro (1983-1987), em São Paulo, e Brizola (1983-1986), no Rio de Janeiro - duas experiências com intenções progressistas que ocupam um lugar importante na discussão sobre as relações entre democracia e violência 1. 1 Até hoje há uma divisão da opinião pública e que envolve também cientistas sociais, a respeito do papel destes dois governos. O estudo, ainda por se fazer, das relações dos intelectuais com as forças políticas desta época teria muito a iluminar as clivagens do debate público sobre o crescimento da criminalidade, as políticas de direitos humanos e o fortalecimento da democracia, assim como poderia discutir a tese da conversão da intelligentsia em espécie de anel burocrático no período da redemocratização (Lahuerta, 2001)

As Ciências Sociais não escapam a estes embates. Na medida em que era colocada na pauta das grandes preocupações da sociedade e do Estado, a violência, antes tema circunscrito aos estudiosos do Direito e da Medicina, passa a envolver também cientistas sociais. Seja por demanda estatal ou de movimentos sociais, esta inquietação mobiliza parlamentares, juristas, intelectuais, meios de comunicação e sociedade civil organizada em reuniões, seminários, debates e congressos 2, que incentivam, ao longo do tempo, a formação de linhas e grupos de pesquisa em universidades, não sendo incomum a associação entre conhecimento e prática (crítica ou aplicada). Nesse sentido, consideraremos a preocupação com a violência como objeto estratégico para a compreensão de alguns dos aspectos envolvidos nas transformações que afetam as Ciências Sociais e o seu papel político. Por meio das variações presentes no debate público e acadêmico sobre os usos, incentivos e/ou condenações da violência, almejamos perceber o crescimento de uma área de pesquisa, que se dá em paralelo às disputas políticas em torno da (re)construção da democracia e do Estado, especialmente no âmbito do sistema de justiça criminal (polícias, penitenciárias e judiciário). 2. Notas conceituais para a definição da violência como problema público Até o momento falamos de violência no singular. Contudo, só é possível falar de violência no plural. Noção de senso comum, ela não delimita rigorosamente um objeto científico ou uma realidade concreta unívoca. Ela apenas indica a tradução, para o debate público, de mudanças dos sentidos, das interpretações e percepções dos grupos sociais em adaptação às mudanças em processo ou em luta pela sua direção política. Mas, justamente 2 Acontecimento de destaque foi a convocação de juristas e cientistas sociais, feita pelo Ministério da Justiça, para discutir o tema da violência urbana, em 1979. Além deste poderiam ser indicados: a criação do GT Direito e Sociedade na ANPOCS, também em 1979; o Seminário sobre criminalidade violenta, promovido pela OAB, no Rio de Janeiro; no mesmo local, o I Congresso Brasileiro de Violência Urbana; a reunião da ANPOCS com o tema Violência urbana no Brasil; a formação de uma CPI sobre as causas da violência - todos em 1980; o XII Congresso Mundial da Associação Internacional de Ciência Política, no Rio de Janeiro, cujo tema era Violência social em cidades latino-americanas e européias e o Seminário Crime, Violência e Poder, na UNICAMP, ambos em 1982; o Seminário O Rio contra o Crime, promovido por O Globo, em 1984, que foi acompanhada de uma ampla pesquisa de opinião; as pesquisas individuais e coletivas desenvolvidas no âmbito de instituições de maior ou menor prestígio e de perfis político-institucionais diferenciados como o SOCII, o IUPERJ, o Museu Nacional e o ISER, no Rio de Janeiro; na Fundação João Pinheiro e na UFMG, em Minas Gerais; e no CEBRAP, no CEDEC, na PUC/SP e no NEV/USP, em São Paulo (Benevides, 1983; Carvalho, 1999; Misse, 2006; Vasconcelos, 2011).

por seu caráter abrangente, ela nos serve de entrada para um universo complexo, de ações e reações, em que se articulam a construção de sujeitos e identidades coletivas, de especialidades acadêmicas e de estruturas e procedimentos estatais para dar conta dos novos fenômenos de um social reconfigurado pelas transformações da sociedade brasileira ao longo das décadas posteriores ao golpe militar. Nesse sentido, não se poderia falar de um percurso de construção da violência como problema público. São vários os momentos e caminhos através dos quais foram definidos ou representados os fenômenos e sujeitos considerados problema, questionadas as suas causas e discutidas as suas soluções. Mas, antes de descrever alguns destes percursos, cabe definir o que é problema público como conceito e suas implicações para o recorte das dimensões de análise e para a seleção do corpus de textos considerado. Ao falarmos em problema público nos inserimos no âmbito das discussões sobre análise da atuação estatal em sistemas políticos democráticos. Trata-se de entender como, em determinadas conjunturas, grupos sociais se organizam no espaço público no sentido de chamar atenção para o que consideram problema, entrando em conflito, negociação e/ou colaboração para definir os seus contornos e os atores autorizados e responsáveis pela adoção de medidas para sua solução. Em geral, a literatura que trabalha este tema o entende como um processo seqüencial: 1) identificação do problema e ordenação da agenda pública, a partir do que afeta um conjunto mais ou menos localizado de pessoas e que disputam a atenção de autoridades públicas; 2) formulação de uma política na agenda governamental, a partir de algum consenso entre as demandas e definição da terapêutica adequada; 3) implementação das medidas por parte dos atores responsáveis, em geral, instituições estatais e 4) avaliação, pelo próprio Estado ou grupos organizados (Cobb & Elder, 1971; Gusfield, 1981) 3 3 Esta é uma seqüência concebida em termos ideais. A definição de uma agenda pública não significa a necessária incorporação na agenda governamental e, no mesmo sentido, esta não significa nem sua implementação ou muito menos sua avaliação. Todo este encadeamento de ações depende da pressão política organizada de médio/longo prazo por parte dos atores interessados. Há possibilidade inclusive da agenda pública não convergir com a agenda política, o que possibilitaria a ocasião de aumento dos conflitos no sistema político, com o sufocamento de demandas sociais antes que estas consigam visibilidade. Ou seja, apesar de inter-relacionadas, as agendas são resultantes de disputa entre grupos com capacidades de mobilização e estratégia, não sendo possível ler os processos de construção de agenda

Indo direto ao ponto que nos interessa, vale indicar a seguinte concepção do tema: Crime, acidentes de trânsito ou delinquência de menores são problemas sociais, mas como eles tornam-se problemas públicos? Isto é algo que envolve uma atuação mais moralmente empreendedora por parte do Estado, além do envolvimento de diversas instituições às quais cabem a responsabilidade de apresentar múltiplas possibilidades de resolução. Assim, responder à questão do crime como um problema público, remete-nos à discussão acerca das dimensões culturais e estruturais envolvidas. Isto implica necessariamente em atribuirmos responsabilidade a quem cabe resolvê-lo: significa decidirmos quem é seu "proprietário". Quem exerce autoridade no encaminhamento de soluções? Governantes, Legisladores, Policiais, Sociólogos, o Judiciário? São questões a respeito do consenso existente sobre o crime como um problema público e sobre as causas e "terapêuticas" adequadas, e a existência de diferentes instituições e pessoas encarregadas da resolução do problema (Gusfield, 1981). Como o problema deve ser atacado? Preventivamente ou em seus sintomas? Quais as variáveis relevantes a serem arroladas para a resolução do problema? Quais, enfim, os fatores determinantes tomados em consideração? (Beato, 1999) A citação acima expressa um dos pontos de vista no debate sobre violência nas Ciências Sociais, que a toma em sua dimensão criminal e como objeto de políticas públicas. Ela destaca, no interior do processo de construção de um problema público, além da atuação de movimentos sociais e políticos, o lugar dos técnicos construtores da oferta pública ou dos especialistas, aqueles que são legitimados como autoridades capazes de definir problemas e soluções. Isto se dá na medida em que as ideias, seja como afirmação de valores, definição de relações causais, soluções para problemas, símbolos ou imagens que expressam identidades e concepções de mundo, são centrais no processo político. Por isso, a qualificação técnica e política é uma questão de suma importância para que segmentos organizados da sociedade civil possam garantir a condução de suas propostas nas arenas de discussão e deliberação do espaço público 4. O papel do conhecimento e dos locus e procedimentos de pública apenas como consenso produzido na tomada de decisões, mas também como conflito e situações de violência. A depender do regime ou conjuntura, portanto, há maior ou menor abertura para a condução negociada de conflitos sobre que tipos de problemas devem constar na agenda governamental. 4 O domínio de um saber técnico especializado num embate político entre os representantes governamentais e não- governamentais faz diferença num processo de discussão e deliberação. Uma das implicações dessa qualificação está relacionada diretamente à rotatividade da representação. Uma vez que se adquire essa competência, a tendência é a permanência ou manutenção das pessoas como representantes, implicando na centralização das informações ou de poder. Outra implicação é que o não-domínio da qualificação técnica e

legitimação do conhecimento qualificado - quais sejam: as universidades e centros de pesquisa e o diploma ocupam, portanto, um lugar estratégico como lugar de articulação entre Estado e sociedade civil. 3. Interfaces entre agenda acadêmica e agenda pública Em uma das primeiras revisões da literatura sociológica sobre o tema emergente da violência urbana, Maria Celia Paoli (1982) afirma que os primeiros estudos no Brasil desembocaram na questão da ausência da cidadania e os mecanismos que reproduziriam as dificuldades de sua construção 5. Em acréscimo ao debate, para a autora, a violência urbana apontaria para um contingente populacional variado, formado por grupos sociais desprovidos de poder e de uma identidade coletiva reconhecida. Seriam os trabalhadores pobres sem atividade fixa, os velhos, as crianças, os negros, os homossexuais, as mulheres, os loucos, os criminosos, cujos mundos de significação estariam ocultos na dimensão privada e local do cotidiano. Nesse sentido, a questão política trazida pela violência urbana seria a da construção de um espaço civil de mobilização e reconhecimento de diferenças, demandas e direitos. No diagnóstico da autora, interessa indicar a influência da atuação de diversos movimentos sociais que, articulando-se à luta pela Anistia e pelo voto direto, pareciam indicar a existência ou possibilidade de uma sociedade civil autônoma e democrática como antes não existira na história brasileira. Mas, no decorrer da redemocratização, este debate sofre uma inflexão importante: dos anos 1970 até metade dos anos 1980, haveria predomínio de estudos sobre a violência vinda do povo e da sociedade movimentos messiânicos, cangaço no campo, quebra-quebras urbanos, entendida como confronto entre uma violência legitima dos movimentos populares contra o política pode ser utilizado para que haja uma desqualificação política, de forma que os representantes governamentais controlem as decisões políticas (Dagnino, 2002). Mas há ainda outro aspecto - o esvaziamento do sentido de ação política que fica submerso nesse processo de tecnificação. Nessa arena permeada por conflitos entre diferentes grupos de interesse, os temas emergem e são (ou não) incluídos na agenda política, que poderá resultar (ou não) na formulação de políticas públicas. 5 Estes estudos se consolidariam em três perspectivas: 1) os impedimentos aos direitos de organização autônoma para a defesa de interesses, por conta da Lei de Segurança Nacional; 2) a cultura política da sociedade brasileira, marcada pelas praticas relativas ao favor, ao clientelismo, a subordinação direta a autoridade e ao recurso a violência e 3) a incapacidade da ordem jurídica, seja pelo arbítrio policial, seja pela impunidade e privilégios, em se tornar um efetivo mediador dos conflitos da sociedade. A cada uma dessas interpretações decorreriam sentidos de atuação diferentes e articuladas, como a luta político-partidária, a mobilização ideológica ou a reforma do sistema de justiça.

Estado ilegítimo e ilegal. A partir deste período, as práticas de linchamento entre a população pobre e o apoio social as ações policiais repressivas ilegais, teria criado uma fissura nesta antes nítida separação. A essas práticas não se podia mais considerar indicio de uma cidadania adormecida e, ao mesmo tempo, obrigavam a refletir sobre o aumento da criminalidade (Zaluar, 1999) 6. O esforço de pesquisa se dirige, então, a fenômenos como a evolução das taxas criminais, a discussão sobre a legitimidade da violência do Estado, as reações populares, os linchamentos, a formação de grupos de extermínio e a organização social e política da criminalidade. Ocorre, nesse sentido, um direcionamento da ênfase da violência estrutural à violência criminal em conexão com a criminalização operacionalizada pelo Estado, em que o sentido político positivo da reação popular violenta perde sua hegemonia para a defesa da legalidade em uma ordem democrática em construção. Com esta mudança de perspectiva, e embora ambas convivam como possibilidades analíticas até hoje, a ótica da violência dos atores sociais como expressão de luta contra uma violência estrutural e política perde sua hegemonia para a violência entendida como violação à lei e aos direitos humanos. As questões institucionais o funcionamento do sistema de justiça criminal e as questões culturais o apoio da população a práticas autoritárias são postas em relação no sentido de entender as resistências à mudança no quadro de uma nova ordem política, após a redemocratização. E é nesse novo momento que se observa a apropriação, pelo Estado, das demandas relativas às violências, ao mesmo tempo em que se dá de maneira mais freqüente a participação de cientistas sociais em consultorias, avaliações e na formulação de planos de ação. Contudo, a amplitude de problemas envolvidos na questão da violência urbana, suscita diversas maneiras de formular a agenda pública e, por sua vez, a transformação desta em agenda governamental, segue dinâmicas e ritmos próprios, específicos de cada questão. No intuito de analisar a variedade destas dinâmicas, segue abaixo um esboço de periodização, que articula as representações sobre as situações ou agentes entendidos como problema e o processo político. 6 Para Zaluar (1999), a falta de apoio da população a política de direitos humanos expressaria com bastante forca esta decepção com o popular, que poderia ser atribuída a uma concepção idealizada do povo entre os intelectuais, embora nem sempre explícita em seus textos.

4. Quadro de temas ou horizontes político-intelectuais de seleção dos problemas públicos no Brasil 7 A A construção da ordem autoritária A.1. - Trabalho, urbanização, pobreza e ordem higienista (1880-1930): transição do regime escravista para uma sociedade de classes e da Monarquia à República. Organização dos centros urbanos segundo os valores funcionais ao sistema fabril. Combate à vadiagem e às manifestações de cultura popular e negra; combate violento às manifestações políticas da classe trabalhadora. Campanhas contra o consumo do álcool. Os loucos, as mulheres e os menores como problema da ordem. Crítica ao idealismo jurídico do direito penal e ênfase no estudo das causas do crime e da figura do criminoso pela incorporação da criminologia de Lombroso; construção e reforma do sistema penitenciário e de instituições manicomiais. Emergência das favelas como problema da pobreza violenta. A.2. Desenvolvimento econômico e Segurança Nacional (1930-1974): O bom malandro e o homem cordial no senso comum e a cidadania regulada (Santos, 1979). Implementação de políticas de remoção de favelas. O migrante nordestino. A política de combate ao criminoso político. B. A transição democrática, a violência urbana e a continuidade autoritária B.1 A violência do povo contra a violência do Estado (1974-1984): Combate à associação entre crime e pobreza. Investigação do sentido político dos atos de violência vindos do povo (conflitos de terra e de classe, os quebraquebras, a construção de identidades coletivas do movimento negro, gay e de mulheres; a luta pelos direitos dos presos políticos), contraposto à violência do Estado associada à de uma ordem social perversa (violência da estrutura socioeconômica e política, ligadas às rápidas transformações do mundo urbano). 7 A demarcação temporal utilizada não é inequívoca, sendo é passível de revisão.

B.2 Lutas políticas e direitos humanos (1984-1996): A investigação do sentido político autoritário dos atos de violência vindos do povo (práticas populares de justiça: linchamentos, grupos de extermínio) como explicação para a continuidade da violência do Estado apesar da transição democrática (violência policial, grupos de extermínio, tortura e maus-tratos nas prisões e delegacias). O crescimento da criminalidade urbana violenta. As facções criminosas. O narcotraficante. Impunidade e desigualdade na distribuição de justiça como atraso no processo civilizador. C. A construção da ordem democrática, as novas formas de controle social e a busca dos elos perdidos da política Conjunção entre o combate à continuidade autoritária, ao crescimento da criminalidade urbana violenta e a tese da desorganização do aparelho de Estado para dar conta dos novos fenômenos criminais. Ênfase pragmática em direitos humanos e sua associação à eficiência em segurança pública. Estruturação da segurança pública como campo político-estatal. Intensificação dos processos de modernização cultural e urbana advindos da globalização: a evolução do mercado de trocas, das informalidades, desestruturação das antigas referências, reorganização da vida pelo medo ou pelo fluxo de mercadorias através de redes informais/ilegais. Expansão do sistema carcerário e das facções criminosas na regulação da vida social. 5. Direções de pesquisa Este trabalho consistiu em uma aproximação das relações complexas entre pensamento acadêmico, representações coletivas e processos decisórios relativos ao problema da ordem e da violência ao longo da história brasileira. A expectativa é, a partir deste quadro, conseguir percorrer os processos que entrelaçam a consolidação de uma agenda acadêmica sobre crime e violência e as agendas políticas de direitos humanos e de segurança pública no final do século XX e neste alguns aspectos específicos como: o lugar, na memória coletiva, das crises e mobilizações ligadas à segurança pública; as imbricações entre ativismo jurídico e o approach sociológico; e a construção do conhecimento sociológico frente ao papel político dos seus agentes.

Contudo, como antecipado, a novidade do problema da violência urbana é relativa, caso voltemos nosso olhar para o início do século passado. Seja pela definição estrita do crime, ou pelos critérios deterministas ligados à biologia ou ao meio social, bacharéis, criminólogos e médicos estiveram ligados na construção de uma agenda acadêmica e de uma agenda pública e governamental sobre o problema da criminalidade. Reformas legais, novas instituições penais e corretivas, procedimentos e técnicas de avaliação do criminoso foram implementadas. Se o fim do século XIX foi marcado pelas lutas de libertação, o início do XX foi o cenário da naturalização das diferenças. A pergunta que se coloca no momento presente é se as transformações decorrentes da redemocratização foram suficientes para implementar uma nova cultura política, inversa à naturalização das diferenças e à legitimação das desigualdades sociais. No horizonte se destacariam ao menos três tendências, nem sempre divorciadas: demandas por punição, populismo penal e encarceramento em massa; reivindicações por reconhecimento; e projetos por descriminalização e desencarceramento. É na tessitura entre tais projetos que as agendas acadêmica e pública se traduzem como implementação política, lançando os dados do desafio da superação do legado histórico da sociedade brasileira. 6. Bibliografia ALVAREZ, Marcos César; SALLA, Fernando; SOUZA, Luís Antonio Francisco de. (2004) "Políticas de Segurança Pública em São Paulo: uma perspectiva histórica". Justiça & História, Porto Alegre, v. 4, n. 8, p. 173-199, 2004. ALVAREZ, Marcos César.. Bacharéis, Criminologistas e Juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil (1889-1930). 1. ed. São Paulo: IBCCRIM, v. 1. 267 p., 2003. BATTIBUGLI, Thaís. "Democracia e segurança pública em São Paulo (1946-1964)". Doutorado em Ciência Política, FFLCH-USP, 2006. BEATO FILHO, Cláudio. Políticas Públicas de Segurança e a Questão Policial: Eficiência, equidade e accountability. In: Marcus André Melo. (Org.). Reforma do Estado e Mudança Institucional no Brasil. Recife: Fundação Joaquim nabuco e Edistora massangano, v. 1, p. 335-365, 1999.

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