TRATAMENTO CIRÚRGICO DAS LUXAÇÕES CERVICAIS BIFACETÁRIAS ENVELHECIDAS COM DUPLO ACESSO E TRÊS ABORDAGENS Tratamento cirúrgico das luxações cervicais bifacetárias envelhecidas com duplo acesso e três abordagens * LUIZ CLAUDIO SCHETTINO 1, PAULO COUTO 2, MORVILLE ARAQUAN DE ARRUDA 3, RUBENS JANSEN GIRALDI 4, CLAUDIO FARIA 5, CLAUDIO PEDRAS 6 RESUMO Os autores relatam três casos de luxação cervical bifacetária envelhecida, tratados cirurgicamente com duplo acesso (anterior e posterior) e três abordagens consecutivas realizadas em um mesmo ato operatório, no período de abril de 1990 a novembro de 1994. Após obtenção de redução anatômica, foram realizadas artrodeses vertebrais anterior e posterior com placas, parafusos e auto-enxerto corticoesponjoso. Na análise da técnica executada, a qualidade da redução e a estabilidade da osteossíntese foram possibilitadas pela exposição em três tempos. Como complicação, um caso evoluiu no imediato para choque medular que regrediu nas primeiras 24 horas. Unitermos Luxação cervical bifacetária; tratamento cirúrgico SUMMARY * Trab. realiz. no Hosp. Univ. Clementino Fraga Filho, da Univ. Fed. do Rio de Janeiro Serv. de Traumato-Ortop. Dep. de Ortop. e Traumatol. da Fac. de Med. UFRJ e Hosp. de Traumato-Ortop. (INTO), Rio de Janeiro. 1. Prof. Assist.; Mestre em Ortopedia, UFRJ. 2. Chefe do Serv.; Prof. Adjunto; Doutor em Ortop., UFRJ. 3. Méd. resid. do Serviço, UFRJ. 4. Membro do Comitê da Coluna da SBOT. 5. Méd. resid. do Serv. HTO-INTO. 6. Professor Titular, UFRJ. Surgical treatment of old bilateral cervical dislocations by double approach and three exposures The authors report three cases of old bilateral cervical dislocation, treated surgically by anterior and posterior approaches and three consecutive exposures in the same surgery, from April 90 to November 94. Complete anatomic reduction was achieved, followed by anterior and posterior vertebral arthrodesis with plates, screws and cortico-cancellous auto-graft. One case of spinal shock on the post-operative was observed, period which resolved within 24 hours. Key words Bilateral, cervical dislocation; surgical treatment INTRODUÇÃO As causas mais comuns de lesão da coluna cervical são: colisão de veículos, mergulho em água rasa, ferida por arma de fogo e quedas graves (2,8). Sistemática avaliação neurológica e estudo radiológico criterioso são fundamentais para estabelecer o diagnóstico e indicar o tratamento adequado. Ringenberg et al. (6) verificaram que o diagnóstico de lesões da coluna cervical não era realizado na interpretação das radiografias de 7% dos pacientes hospitalizados, muitos exigindo estudos complementares tais como a tomografia computadorizada para se firmar o diagnóstico. As conseqüências de um diagnóstico retardado podem ser desastrosas. As lesões neurológicas e as alterações cicatriciais aumentam as dificuldades técnicas e os riscos de um procedimento cirúrgico. Após seis semanas, o tecido cicatricial formado em resposta ao trauma normalmente apresenta características predominantes da fase de reparação. As células reparadoras possuem capacidade para formar osso, cartilagem, tecido fibroso, vasos sanguíneos, provavelmente gordura e possivelmente músculo (1). A ossificação ou rigidez fibrosa pós-traumática estrutura o segmento vertebral luxado em posição viciosa, exigindo acessos anterior e posterior para permitir sua mobilização e redução. Este fato foi bem discutido por Harms & Stoltze (3) ao analisarem as deformidades da coluna vertebral ao nível toracolombar. Estes autores acrescentam que nas lesões completamente rígidas, de acordo com os exames ra- Rev Bras Ortop _ Vol. 32, Nº 2 Fevereiro, 1997 117
L.C. SCHETTINO, P. COUTO, M.A. ARRUDA, R.J. GIRALDI, C. FARIA & C. PEDRAS Fig. 1 perfil da coluna cervical com seis meses de evolução. Observar escorregamento anterior de 50% do corpo vertebral de C 5 sobre C 6. Fig. 2 perfil no imediato, com redução anatômica da luxação C 5 -C 6 e as osteossínteses com placas e parafusos diológicos dinâmicos pré-operatórios, tornam-se necessárias três abordagens, por acesso anterior e posterior combinados. O objetivo deste trabalho é relatar o tratamento das luxações cervicais bifacetárias envelhecidas e rígidas, por acesso anterior e posterior, com três abordagens no mesmo ato anestésico. MATERIAL E MÉTODO Neste estudo são relatados três casos de lesão cervical que devido a falha no diagnóstico, ausência de tratamento médico ou conduta terapêutica inadequada evoluíram para envelhecimento, ou seja, com um mínimo de seis semanas após o trauma. Todos os casos foram tratados cirurgicamente com três abordagens consecutivas por acessos anterior e posterior. Uma vez obtida a redução anatômica, realizou-se a osteossíntese com placas, parafusos e auto-enxertia do ilíaco. Descrição da técnica Antes da cirurgia foi instalado halo cefálico em todos os pacientes. Esta medida visa facilitar as manobras de mudança de decúbito com o paciente anestesiado, auxiliar o posicionamento na mesa cirúrgica e as manobras durante o ato operatório. A seqüência das três abordagens não foi a mesma em todos os casos. No primeiro e segundo casos, foi ventrodorso-ventral e, no terceiro, dorso-ventro-dorsal. A seguir são descritos os principais tempos cirúrgicos da seqüência ventro-dorso-ventral. Primeira abordagem por via anterior Foi utilizada a via clássica de acesso ântero-lateral à coluna cervical. Nos três casos, o lado esquerdo foi o escolhido, com o objetivo de se evitar trauma ao nervo laríngeo recorrente. Uma vez identificado o segmento comprometido, foram ressecados os tecidos cicatriciais osteofibrosos e restos do disco intervertebral até a visibilização do ligamento longitudinal posterior. Neste tempo, a utilização do afastador de corpos vertebrais do instrumental de Caspar permitiu a desimpactação gradual entre os dois corpos luxados, melhorando a exposição do campo operatório. Concluída esta etapa, foi realizado o teste de despertar de Stagnara et al. (8) e provisoriamente aproximadas as bordas da ferida cirúrgica. Ainda com o paciente em decúbito dorsal, foi retirado enxerto da crista ilíaca anterior. Abordagem por via posterior Com o paciente posicionado em decúbito ventral, foi realizada incisão mediana até os processos espinhosos da coluna cervical. O descolamento subperiósteo dos músculos paravertebrais expôs as lâminas vertebrais, maciços laterais e articulações interfacetárias. Após ressecção do tecido cicatricial e da facetectomia parcial bilateral, o segmento vertebral luxado adquiriu mobilidade suficiente para redução anatômica, seguida de osteos- 118 Rev Bras Ortop _ Vol. 32, Nº 2 Fevereiro, 1997
TRATAMENTO CIRÚRGICO DAS LUXAÇÕES CERVICAIS BIFACETÁRIAS ENVELHECIDAS COM DUPLO ACESSO E TRÊS ABORDAGENS Fig. 3 AP com seis anos de Fig. 4 perfil com seis anos de. Observar artrodese consolidada e redução anatômica. síntese e controle radiográfico. Nestes casos foram utilizadas duas placas de Roy-Camille et al. (7) ou duas placas de pequenos fragmentos aplicadas segundo a técnica de Magerl et al. (4). Em seguida foi colocado enxerto ósseo e realizado o teste de despertar. Segunda abordagem por via anterior O paciente foi novamente posicionado em decúbito dorsal. Após a ferida cirúrgica ter sido reaberta, foi colocado enxerto corticoesponjoso intersomático para manter o alinhamento da coluna cervical. O segmento foi estabilizado com placa e parafusos AO. Seqüência dorso-ventro-dorsal No terceiro caso, a liberação foi iniciada pela via de acesso posterior. A redução somente foi obtida após a segunda abordagem, sendo esta pela via de acesso posterior. A ressecção do tecido osteofibroso e dos restos do disco intervertebral permitiu a mobilização do segmento vertebral luxado. A artrodese anterior foi realizada de maneira já descrita anteriormente. Com o retorno do paciente para a posição de decúbito ventral, foi procedida a estabilização posterior. Neste paciente, devido a problemas técnicos, não foi possível a realização do teste de despertar após cada tempo cirúrgico. DESCRIÇÃO DOS CASOS Caso 1 Paciente do sexo feminino, 40 anos de idade, vítima de acidente automobilístico em outubro de 1989. No primeiro atendimento hospitalar, foi tratada com colar cervical. Permaneceu com esta imobilização por dois meses e ao voltar ao hospital de origem foi orientada sobre a necessidade de tratamento cirúrgico (sic). Após seis meses de evolução, foi admitida para tratamento cirúrgico. Na avaliação clínica apresentava cervicobraquialgia à direita, parestesia na face dorsolateral do antebraço direito estendendo-se à região dorsal do I e II quirodáctilos. No estudo radiográfico, foi diagnosticada luxação cervical bifacetária com 60% de escorregamento anterior do corpo vertebral de C 5 sobre C 6. Em abril de 1990, foi submetida a artrodese vertebral anterior e posterior, com abordagem ventro-dorso-ventral. A paciente, no sexto ano de, apresenta, ao exame clínico, cervicobraquialgia direita e diminuição dos reflexos bicipital e tricipital direitos. Apesar da queixa de dor, ela retornou ao hospital apenas quando convocada para a presente revisão. Não retornou às funções laborativas exercidas anteriormente ao trauma, devido à dor. O exame radiográfico, com seis anos e cinco meses de, revela redução anatômica e artrodese consolidada (figs. 1, 2, 3 e 4). Caso 2 Paciente do sexo masculino, 42 anos de idade, vítima de queda no banheiro em junho de 1990. Não procurou atendimento imediato. Após sete semanas de evolução, foi atendido em hospital terciário. Ao exame clínico, apresentava cervicalgia irradiando para o ombro direito e limita- Rev Bras Ortop _ Vol. 32, Nº 2 Fevereiro, 1997 119
L.C. SCHETTINO, P. COUTO, M.A. ARRUDA, R.J. GIRALDI, C. FARIA & C. PEDRAS Fig. 5 perfil da coluna cervical com sete semanas de evolução. Observar luxação C 3 sobre C 4 com escorregamento anterior de cerca de 40%. ção da extensão da coluna cervical. Na avaliação radiológica, foi diagnosticada luxação cervical bifacetária com 40% de escorregamento anterior do corpo vertebral de C 3 sobre C 4. Em agosto de 1990, foi submetido a artrodese vertebral anterior e posterior, com abordagens ventro-dorso-ventral. No segundo dia de, apresentou melhora da limitação dos movimentos da coluna cervical. Atualmente reside em outra cidade, encontrando-se no sexto ano pósoperatório. Segundo informações colhidas com parente, ele se encontra totalmente assintomático e desempenha suas funções laborativas sem restrições (figs. 5, 6 e 7). Caso 3 Paciente do sexo masculino de 51 anos de idade, alcoólatra, vítima de queda de escada em agosto de 1994. No momento do trauma, apresentou perda da consciência por 15 minutos, tetraplegia e perda do controle esfincteriano (sic). Não recebeu tratamento médico no primeiro mês, permanecendo em repouso domiciliar. Após esse período, foi avaliado no ambulatório de neurologia de um hospital terciário. Ao exame neurológico, apresentava tetraparesia predominante no dimídio direito. Internado na enfermaria de clínica médica, foi levantada a hipótese diagnóstica de síndrome neurológica carencial, sendo tratado com tiamina e repouso. Em outubro de 1994, foi realizado estudo eletroneuromiográfico, o qual questionou lesão em nível cervical. Após avaliação radiológica, foi diagnosticada luxação cervical bifacetária, com escorregamento anterior de 50% do corpo vertebral Fig. 6 AP no décimo dia. Osteossíntese com duas placas AO de pequenos fragmentos posteriormente e uma placa em H anteriormente. Fig. 7 Radiografia em perfil no décimo dia. Observar redução anatômica e colocação dos parafusos posteriores segundo a técnica de Magerl. de C 6 sobre C 7. Em novembro de 1994, foi submetido a artrodese vertebral posterior e anterior com abordagem dorsoventro-dorsal. Neste caso, a artrodese estendeu-se a mais um nível superiormente (C 5 ), com o objetivo de aumentar a soli- 120 Rev Bras Ortop _ Vol. 32, Nº 2 Fevereiro, 1997
TRATAMENTO CIRÚRGICO DAS LUXAÇÕES CERVICAIS BIFACETÁRIAS ENVELHECIDAS COM DUPLO ACESSO E TRÊS ABORDAGENS Fig. 8 perfil da coluna cervical com 73 dias de evolução. Observar escorregamento anterior de cerca de 50% do corpo vertebral de C 6 sobre C 7 e o tecido cicatricial calcificado anterior ao segmento. Fig. 9 AP com um ano e dois meses de dez da osteossíntese. No imediato, o paciente evoluiu com quadro de choque medular que regrediu nas primeiras 24 horas. Atualmente, com um ano e dez meses de, o paciente deambula com auxílio de duas muletas devido à espasticidade, principalmente no membro inferior direito e membro superior direito. O controle esfincteriano é normal. Na avaliação radiográfica, com um ano e dois meses de, nota-se redução anatômica e artrodeses consolidadas (figs. 8, 9 e 10). Fig. 10 perfil com um ano e dois meses de evidenciando manutenção da redução e artrodeses consolidadas DISCUSSÃO Os três casos de luxação cervical bifacetária envelhecida tratados com a técnica descrita apresentavam quadro neurológico e deformidade fixa no pré-operatório. A estruturação da deformidade provocada pelo tecido cicatricial impedia a mobilização do segmento luxado, o que pôde ser constatado durante o ato cirúrgico. Para a redução completa destas lesões, foi necessária a total liberação do segmento vertebral por vias anterior e posterior. As mudanças de decúbito realizadas durante a cirurgia apresentam alto risco de lesão neurológica; principalmente após a primeira abordagem para liberação do segmento vertebral, quando a redução e a estabilização da coluna ainda não foram obtidas. Por esse motivo, ao final de cada etapa deve ser realizado o teste de despertar, para registrar a integridade do sistema nervoso. Apesar da pequena casuística, podemos afirmar que a indicação desta técnica em pacientes sem déficit neurológico pode ser questionada. O alto risco de complicações e as dificuldades técnicas justificam maior discussão sobre a conduta terapêutica. Malawski & Lukawski (5), ao analisarem 52 Rev Bras Ortop _ Vol. 32, Nº 2 Fevereiro, 1997 121
L.C. SCHETTINO, P. COUTO, M.A. ARRUDA, R.J. GIRALDI, C. FARIA & C. PEDRAS casos de lesões cervicais, relataram três casos de luxação bifacetária envelhecidas e rígidas, tratados com descompressão medular através da osteotomia parcial do muro posterior da vértebra inferior e estabilização com amarria, não se preocupando com a redução. Estes autores relataram também bons resultados quanto à recuperação neurológica. A osteossíntese realizada na segunda abordagem proporciona maior segurança na mudança de decúbito que se segue. As osteossínteses anterior e posterior não só favorecem a consolidação da artrodese como diminuem a possibilidade de instabilidade ou falência do material de síntese. A inexistência de publicações com a técnica descrita e o número reduzido de casos, embora com evolução favorável, não permitem conclusões mais definitivas. REFERÊNCIAS 1. Buckwalter, J.A., Einhorn, T.A. et al: Healing of the musculoskeletal tissues, in Rockwood, C.A., Green, D.P. et al: Fractures in Adults, Lippincott-Raven Publishers, 1996. Cap. 5, p. 261-267. 2. Garfin, S.R., Shacford, S.R., Marshall, L.F. et al: Care of the multiple injured patient with cervical spine injury. Clin Orthop 239: 19-29, 1989. 3. Harms, J. & Stoltze, D.: The indications and principles of correction of post-traumatic deformities. Eur Spine J 1: 142-151, 1992. 4. Magerl, F., Grob, D. & Seemann, P.: Stable dorsal fusion of the cervical spine (C 2 -Th 1 ) using hook plates, in Kehr, P. & Heidner, A.: Cervical Spine I, Wien-New York, Springer-Verlag, 1987. p. 217. 5. Malawski, S. & Lukawski, S.: Management of old cervical spine injuries. Chir-Narzadow-Ruchu-Ortop-Pol 58: 149-156, 1993. 6. Ringenberg, B.J., Fisher, A.K. et al: Rational ordering of cervical spine radiographs following trauma. Ann Emerg Med 17: 792-796, 1988. 7. Roy-Camille, R., Saillant, G. & Mazel, C.: Internal fixation of the unstable cervical spine by a posterior osteosynthesis with plates and screws, in The Cervical Spine Research Society: The Cervical Spine, 2nd ed., J.B. Lippincott, 1989. Cap. 6, p. 390-403. 8. Stagnara, P., Vauzelle, V. & Jouvinroux, P.: Functional monitoring of spinal cord activity during spinal surgery, apres. na Scoliosis Research Society, Wilmington, Delaware, setembro de 1972. 9. Stauffer, E.S. & MacMillan, M.: Fractures and dislocations of the cervical spine, in Rockwood, C.A., Green, D.P. et al: Fractures in Adults, Lippincott-Raven Publishers, 1996. Cap. 22, p. 1473-1477. 122 Rev Bras Ortop _ Vol. 32, Nº 2 Fevereiro, 1997