ALIMENTANDO A LIBERDADE

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Transcrição:

1 ISBN 978-85-89943-23-9 ALIMENTANDO A LIBERDADE Fabiano Roldão Anastacio Entidade de Fomento: INSTITUTO FEDERAL DE MINAS GERAIS CAMPOS OURO PRETO IFMG OP. Contato: Fabiano.anastacio@ifmg.edu.br RESUMO A cozinha como sacrário, a mesa como partilha, o alimento como esperança. Mulheres com o desejo de ir além... E vontade de cultivar um dia-a-dia mais libertador. Tudo isso poderia parecer simples poesia, mas o fato é que estamos falando de um trabalho que se realizou dentro do Presídio Regional de Araranguá, SC. Ministrado pelo Chef-professor Fabiano Roldão, através de um projeto do PRONATEC, 20 cárceres receberam o Curso Profissionalizante de Auxiliar de Cozinha durante este segundo semestre de 2014. Após 240 horas /aula, no dia 18 de dezembro de 2014 este trabalho transbordou as celas e, como caso inédito, realizou-se a formatura fora do Presídio, com direito a coquetel executado pelas próprias formandas. Estavam presentes convidados da sociedade civil, incluindo dois familiares de cada formanda. Desde 2004 o Chef-professor Roldão vem investindo na mistura das receitas de origens familiares com a alta gastronomia. Mas não é de hoje que seu trabalho ultrapassa a premissa de uma boa comida. O olhar para o desenvolvimento do ser humano é o tempero que faz o caldo engrossar. Ao direcionar sua carreira para Personal Chef, sua habilidade em temperar com histórias de vida e transformar o cotidiano através da comida ganham destaque. Fazer tudo isso dentro de um presídio é como colocar fermento na ousadia! Neste atual contexto, sacrário, partilha, esperança e liberdade, deixam de ser utopia e (re)nascem dentro dessas 11 Marias. Palavras-chave: Educação, Socialização, Gastronomia. INTRODUÇÃO Para privar o infrator de sua liberdade exercida da forma igual sobre todos os membros da sociedade, a prisão surgiu no fim do século XVIII com o intuito de punir. A humanidade permeia 200 anos de história de cárceres, justiça dos homens e suas leis. Poupa-se o indivíduo de castigos físicos, passando para uma privação de liberdade. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder

2 um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. (Foucault, 1987, p.20). O objetivo parece ser um só: evitar a fuga. Constroem-se fortalezas com alto número de policiais, grades por todos os lados e muros altos. Sistemas de segurança cada vez mais aprimorados. Avançadas tecnologias em favor da vigília. Porém, o que mais está posto no ato de prender o infrator além do castigo pela privação de sua liberdade? Segundo Foucault a prisão também se fundamenta no papel de aparelho para transformar os indivíduos. Levando em conta o sistema penitenciário brasileiro em sua grande maioria, esta não parece estar na lista de suas prioridades. E talvez por isso, ampliam-se ainda mais os desafios reintegração na sociedade daquele que um dia perde seu direito de ir e vir. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não é mais o elemento constitutivo da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais 'elevado'. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores. (FOUCAULT, 1987, p.15). O sistema penitenciário brasileiro sofre uma crise tamanha, tanto de recursos financeiros como de recursos humanos, que torna as prisões teias que promovem relações de violência e despersonalização dos indivíduos. Em meio ao quadro apresentado, torna-se urgente para todos uma educação que promova a restauração da estima, da confiança e da cultura para a reintegração do ser humano em situação de cárcere à sociedade. Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora em que a liderança revolucionária, em lugar de sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo-os como coisas, com eles estabelece uma relação dialógica, permanente. (FREIRE, 1987, p. 35). Considerando a ressocialização necessária e a educação como um direito de todos, é que surgem, ainda em minoria considerável, processos educativos das mais variadas formas junto ao sistema prisional. Na maioria das vezes, essas iniciativas utilizam-se do novo paradigma da educação colocando a arte como eixo transversal de todo o processo.

3 Como educar e educar-se na contemporaneidade? Como a gastronomia pode contribuir para a formação do indivíduo? É possível o reconhecimento da identidade pessoal, social e cultural através da prática culinária? O que abrange o ato preparar o alimento e sua degustação? Que fome se quer matar? Visto que a ação isolada de privar o indivíduo da sua liberdade, por si só, não favorece seu retorno a sociedade, considera-se que a educação e o ensino são fundamentais para que o detento tenha a possibilidade de afastar-se da marginalidade, se apropriando do conhecimento e do estudo que geralmente, nesses casos, foi abandonado. Foi em 1950 que o sistema penitenciário brasileiro adotou a educação como ferramenta de ressocialização levando o estudo ao cárcere. O trabalho, o ensino básico e religioso, cursos profissionalizantes são usados para tirar o detento do analfabetismo social, cultural e humano, com o intuito de diminuir a reincidência dos detentos após cumprimento da pena. Atualmente, no que diz respeito à formação profissional e educacional dos apenados, a lei de execução penal determina nos artigos 17 a 21 as seguintes diretrizes: Art. 17. A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado. Art. 18. O ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Federativa. Art. 19. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico. Parágrafo único. A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição. Art. 20. As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou particulares, que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados. Art. 21. Em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos. (BRASIL, 1984). O conhecimento gastronômico vem ampliando-se gradativamente no Brasil. Torna-se uma forma de ensino através da comida, da cozinha e da elaboração/execução de receitas. Envolve a sociedade no simples ato de preparar e compartilhar o alimento. Cursos profissionalizantes e formações vinculadas à gastronomia estão cada vez mais presentes nas prisões nacionais e internacionais. A cozinha torna-se um espaço de condução do educando ao conhecimento através da história do alimento e suas receitas. O que revela o ato de preparação e degustação do alimento? O que pode significar ter a gastronomia como eixo transversal de um processo pedagógico dentro de um presídio? Qual o pode ser o impacto deste trabalho nas vidas dos participantes, bem como no presídio como um todo? O processo interno de uma cozinha possui terreno fértil para vivências sócio-educativas. Este processo gastronômico pode transbordar para além de uma execução culinária, abrir espaço para o ensino e aprendizado coletivo,

4 para o reconhecimento sobre a prática e cultura de um indivíduo, família e comunidade. Os valores culturais e individuais estão postos e misturados dentro da panela, e o calor potencializa sua transformação. Faz-se a possibilidade de início de um diálogo sadio entre o mundo de dentro das prisões com o mundo de fora, e vice-versa. Problemática Ao encontrar um cidadão em uma cela de presídio, logo se descobre que ele não está só. Em qualquer rápida conversa torna-se explícito que, no mesmo presídio, encontram-se familiares, amigos, vizinhos. A sua grande maioria possui um vínculo anterior, de maior ou menor grau. Proporcionar uma ação sócio-educativa, encaminhar um indivíduo ao conhecimento, ou ao ensino, ou a uma vivência artística ou gastronômica, potencializa a mobilização de uma família inteira, e por assim dizer uma comunidade, rumo a uma porta que muitos acreditam nunca se abrirá. A prática da liberdade só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica. (FIORI, p.52, 1992). No Brasil, são mais de 65 mil Agentes Penitenciários, para custodia e controle de cerca de 500 mil detentos. Pouco é feito para que a garantia da educação como direito de todos seja preservada. Para agravar um ainda mais a situação que nada tem de simplória, a relação entre ambos os lados é profundamente complexa. Muitos desses Agentes Penitenciários não compreende o ensino penitenciário como algo relevante. Para a maioria deles, os presos não merecem e nem deveriam ter direito a educação. Cada dia que passa aprendemos mais e conquistamos mais. Como é bom, saber que tem pessoas que acreditam em nós detentas. Creio que supreendemos a todos que acreditaram em nós e também os que não acreditaram! E se depender de nós, vamos surpreender a cada dia que passa. Vamos dar o melhor de nós. Este não é o final, mas sim uma nova chance para todas nós acreditarmos que podemos, basta querermos. Vamos agarrar novas oportunidades e criar novas credibilidades. Somos detentas alimentando nossa liberdade para a sociedade. (Thaíse, 29 anos. Presa por tráfico. Detenta no Presídio Regional de Araranguá/SC. Participante do projeto do PRONATEC - Curso Profissionalizante de Auxiliar de Cozinha durante o segundo semestre de 2014 que foi ministrado pelo atual candidato a mestrado.) Considera-se que este processo se desenvolve continuamente para além dos sujeitos envolvidos, portanto permanece inacabado e continuamente incorpora novos elementos, sem deixar de questionar sobre tudo a si mesmo. Já é sabido que uma avassaladora maioria dos presos faz parte da população dos empobrecidos e privados dos direitos fundamentais da vida. Como os pobres, muitos são jogados em conflito entre as necessidades básicas de vida e os donos do poder que ali atuam, e que por

5 muitas vezes os negam. Foucault pesquisou e descreveu o papel do poder, especificadamente a disciplina, na formação histórica de instituições como o presídio, o hospital, a escola e a fábrica. Dispomos da afirmação que o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força. (FOUCAULT, 2003, p. 175). Neste cenário atual, a educação é realmente um direito de todos? Como e quando a gastronomia torna-se um processo que possibilita assumir a ética e aumentar a estima daqueles envolvidos no processo? Como ampliar a autoconfiança, a qualidade de vida e a compreensão de seus afazeres diante da realidade a partir da cozinha? Quais são os efeitos pedagógicos contidos no ato de preparar o alimento? Dar visibilidade a essas pessoas detentas e ao ensino das humanidades significa romper com o padrão opressor ainda vigente dentro do sistema penitenciário brasileiro. E assim, através de processos pedagógicos-gastronômicos, pode-se potencializar uma ação isolada, tornando-a um catalisador de uma transformação já assumida como necessária junto à política carcerária brasileira. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm BRASIL. Código Penal. Brasília, 1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm BURKHARD, Gudrun. Tomar a vida nas próprias mãos. São Paulo: Antroposófica, 2000. FIORI, Ernani Maria. Educação e Política. Ed. E&PM, Porto Alegre, 1992. FLANDRIN, Jean-Louis e Massimo Montanari. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Ed. Vozes, Petrópolis, 1987. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 28 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.. Cartas a Guiné-Bissau. 4º Ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1984.. Professora sim, tia não cartas a quem ousa ensinar. 14º Ed. São Paulo: Olho d água, 2003.. Pedagogia da autonomia. 30º Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

6. Pedagogia dos sonhos possíveis. Organização e notas de Ana Maria de Araújo Freire. São Paulo: UNESP, 2001. ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano. Educação escolar de adultos em privação de liberdade: limites e possibilidades. 31ª Reunião, ANPED, 2008. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/gt18-4794--int.pdf STEINER, Rudolf. A Ciência Oculta. São Paulo: Antroposófica, 6º. Ed., 2006.. Nervosismo e auto-educação. São Paulo: Antroposófica, 4º. Ed., 2005.. Teosofia. São Paulo: Antroposófica, 7º. Ed., 2004.. Temperamentos e alimentação. São Paulo: Antroposófica, 3º. Ed., 2000.. Arte da Educação III. São Paulo: Antroposófica, 1999. VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. WOLKE, Robert. O que Einstein disse ao seu cozinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.