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Transcrição:

Cover Page The handle http://hdl.handle.net/1887/32581 holds various files of this Leiden University dissertation Author: Rodrigues, Walace Title: O processo de ensino-aprendizagem Apinayé através da confecção de seus instrumentos musicais Issue Date: 2015-03-24

17 Introdução Este trabalho objetiva explorar as metodologias indígenas de ensino e aprendizagem tradicional através da confecção de objetos musicais de seu sistema musical específico. Ainda, esta tese se justifica pela importância em compreender a cultura de um povo através de suas especificidades culturais. As especificidades étnicas de cada povo indígena se mostram, assim, em seus saberes e fazeres culturais. Uso aqui uma passagem sobre os perigos da generalização em relação às culturas indígenas:...no estudo da arte indígena brasileira, o caráter específico da produção de cada etnia deve ser observado, e a generalização evitada a todo custo. Os estudantes devem entender que cada povo e tradição desenvolve conhecimentos complexos acerca do mundo, da natureza e de sua relação com tudo isso. É importante também caracterizar quais modalidades artísticas são as mais proeminentes na concepção de cada povo e por quê. (PIMENTEL; QUINTAL, 2009, p. 109). Este trabalho tem um caráter marcadamente etnográfico, já que se teve a necessidade de ouvir o ponto de vista dos Apinayé 3 em relação a seus próprios processos de ensino-aprendizagem e sobre os valores envolvidos nesses processos. Assim, o diálogo com os Apinayé se coloca como fundamental para este trabalho, o que se pode notar nas entrevistas aos atuais mestres artesãos deste povo e no diário de campo. Gostaria de mostrar, também, de maneira introdutória, a situação histórica passada e a situação atual dos indígenas brasileiros em relação aos números populacionais e às áreas onde se encontram. Esta parte da tese tem a função de embasar o leitor sobre alguns dados numéricos que darão a perceber a atual conjuntura populacional e de localização dos indígenas no Brasil. De acordo com as recentes pesquisas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010 (IBGE, 2012), o número total de indígenas no Brasil é de 817.963 pessoas. Desta população indígena, 315.180 vivem em área urbana (com maior participação na Região Nordeste) e 502.782 vivem em área rural (com maior participação na Região Norte). No total populacional brasileiro, os indígenas correspondem a apenas 3 Utilizo a grafia Apinayé (com y ) quando me refiro ao povo, sua língua e seus costumes.

18 0.4% da população nacional (este número não inclui os índios isolados ou os que estão em processo de reafirmação étnica). O senso do IBGE de 2010 (IBGE, 2012), para identificar a população indígena, levou em conta fatores como autodeclaração étnica, língua falada em casa e localização geográfica, conforme os resultados publicados em 2012:...no Censo Demográfico 2010, aprimorou-se a investigação desse contingente populacional, introduzindo o pertencimento étnico, a língua falada no domicílio e a localização geográfica, que são considerados critérios de identificação de população indígena nos censos nacionais dos diversos países. Logo, será possível obter informações para os povos indígenas, como também para a população residente nas terras indígenas, quer seja indígena ou não. (IBGE, 2012, p. 5). Ainda, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), existe, no Brasil atual, cerca de 238 povos indígenas, falantes de mais de 180 línguas diferentes e espalhados por todo o território nacional. Tem-se notado uma tentativa de incluir a população indígena nos sistemas governamentais de assistência social e de autorreconhecimento étnico. Isto tem reflexo direto no crescimento do número de pessoas que se autodeclaram indígenas, conforme mostra o senso do IBGE: O crescimento de 10,8% ao ano da população que se declarou indígena, no período 1991/2000, principalmente nas áreas urbanas do País, foi atípico. Não existe nenhum efeito demográfico que explique tal fenômeno. Muitos demógrafos atribuíram o fato a um momento mais apropriado para os indígenas, em que estavam saindo da invisibilidade pela busca de melhores condições de vida, mais especificamente, os incentivos governamentais. (Idem, p. 4). No sistema educacional, por exemplo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9394, de 1996, com redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008) busca valorizar as minorias étnicas excluídas no Brasil, conforme o artigo 26-A, o qual transcrevo aqui: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos

19 africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). (BRASIL, 1996). Também, esse reconhecimento legal da importância das culturas indígenas dentro da sociedade nacional, e em particular no ambiente escolar, mostra uma tentativa de mudança de visão acerca das populações indígenas nacionais. Conforme nos mostra Daniel Matenho Cabixi (1981), indígena Pareci (MT), a situação representacional, social, educacional, etc., dos indígenas ainda deixa muito a desejar:...muito já se escreveu, se prometeu, se fez, e várias entidades e órgãos foram criados para melhor atender o índio, mas ele continua na mesma situação de ignorado, explorado, mendigo de suas coisas, alienado. Enfim, continua a ser visto como um intruso e estrangeiro dentro de sua pátria mãe. (CABIXI, 1981, p. 88). Vale ressaltar que as melhorias nas políticas públicas dos últimos anos em relação aos indígenas (como, por exemplo, o sistema de cotas para estudantes indígenas em universidades públicas, regulado pela Lei 12.711, de 2012) são um outro fator de melhoria na vida dos indígenas. Há, ainda, uma preocupação de vários grupos sociais em relação aos indígenas nacionais e aos projetos governamentais que implicariam na alteração brutal da vida dos indígenas (exemplo disto são os conflitos de vários grupos da sociedade organizada, incluindo os próprios indígenas, em relação à construção da usina hidroelétrica de Belo Monte, no Pará). Conforme nos relata a antropóloga Jane Felipe Beltrão (2012) da Universidade Federal do Pará (UFPA), os indígenas foram retirados de seus territórios ancestrais para dar lugar a Belo Monte: Na Volta Grande do Rio Xingu, pelos levantamentos realizados, há pelo menos duas centenas de pessoas indígenas que foram expulsas de seus territórios e, hoje, se veem ameaçadas pelo empreendimento hidroelétrico de Belo Monte. (BELTRÃO, 2012, p. 23).

20 Também, um fenômeno importante verificado nas pesquisas do IBGE foi a emergência de uma etnogênese 4 de indígenas que habitam áreas urbanas de muitas regiões do país, onde o próprio indígena volta a valorizar seu povo e suas origens como fator de inclusão cultural e social. Isso vem acontecendo através das várias políticas governamentais de apoio à autoidentificação indígena para participar de concursos públicos, para entrar nas universidades públicas, para cadastrar-se em benefícios sociais, entre outros programas. A título informativo e ilustrativo desta etnogênese, a tabela abaixo, do IBGE, mostra o percentual de população indígena por região e situação de localização (urbana e rural): Tabela 1 Participação relativa da população residente autodeclarada indígena, por situação de domicílio, segundo as Grandes Regiões -1991/2010. Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1991/2010, disponível em < http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf > Acesso em 25/10/2012. No Estado do Tocantins, estado onde foca-se o povo de estudo desta tese, 0.9% da população autodeclarou-se indígena (13.131 pessoas), o que representa 1.6% do total de indígenas no âmbito nacional. A média de crescimento populacional indígena no Tocantins é de 2.2%, enquanto a média de crescimento nacional é de 1.1%. Assim, é neste cenário social atual das populações indígenas do Brasil que os Apinayé se inserem como foco desta tese. Os Apinayé são um povo indígena de cerca de 2000 pessoas que habitam, principalmente, o município de Tocantinópolis (no Estado 4 Emergência de novas identidades como a reinvenção de etnias já reconhecidas. A etnogênese é um fenômeno em que, diante de determinadas circunstâncias históricas, um povo étnico, que havia deixado de assumir sua identidade étnica por razões também históricas, consegue reassumi-la e reafirmá-la, recuperando aspectos relevantes de sua cultura tradicional. (IBGE, 2012, p. 4).

21 do Tocantins) e suas redondezas e se dividem em 25 aldeias. Muitas dessas aldeias são derivadas das duas mais antigas: Mariazinha e São José (antiga Bacaba). Vivem historicamente na região norte do Estado do Tocantins, entre os rios Araguaia e o Tocantins, região esta conhecida como Bico do Papagaio. Tiveram suas terras demarcadas em 1985 após vários conflitos com fazendeiros da região, tendo essas terras indígenas Apinayé em torno de 140.000 hectares. Figura 2 Mapas do Tocantins no Brasil e da Terra Indígena Apinayé ao norte do estado do Tocantins. Por volta de 1944 o SPI colocou na aldeia São José (ainda Bacaba) um posto de Assistência para mediar os conflitos entre os Apinayé e não indígenas (kupẽ) que habitavam em terras Apinayé. A criação do Posto do SPI parece ter auxiliado a recuperação demográfica do grupo, já iniciada na década de 1930. A estratégia do SPI não evitou novas invasões e este órgão institucionalizou a prática do arrendamento como meio de demonstrar aos não indígenas que habitavam em terra alheia. No final dos anos 50 estes arrendamentos deixariam de ser cobrados e muitos dos antigos posseiros acabaram por vender suas posses. Essas posses dentro da terra Apinayé se tornaram o motivo para vários conflitos entre indígenas e não indígenas. Recentemente, os Apinayé ligados à aldeia Mariazinha, juntamente com moradores da região, fizeram um movimento reivindicando a inclusão da pavimentação do trecho da TO 126 entre as cidades de Tocantinópolis e Maurilândia. Esta rodovia estadual passa pela terra indígena Apinayé. O grupo fechou a estrada com barreiras e os indígenas ameaçaram atear fogo nas torres de energia elétrica que ficam às margens da

22 rodovia. Este fato foi bastante noticiado na mídia local e as conversações para a pavimentação foram abertas com o governo do estado do Tocantins. Porém, há alguns indígenas Apinayé que não concordam com a pavimentação das estradas dentro de suas terras. O grupo étnico Apinayé, que tem sua língua materna (a Apinayé, do grupo linguístico Jê) vastamente estudada por causa de suas múltiplas variações e, atualmente, pelos empréstimos do Português, mostra-se como forte elemento cultural unificador das aldeias e deste povo. As crianças são alfabetizadas em Apinayé e, em seguida, em Português, fortalecendo, assim, a própria língua e cultura deste grupo. Também, a comunicação entre eles é feita em língua Apinayé. Coloco aqui uma passagem de Egon Schaden (1965) sobre o valor emocional de uma língua indígena, o que a faz resistir às forças de dominação da língua portuguesa (vejo como tal o caso da língua Apinayé): Mas há um fator de grande importância para a perpetuação do idioma nativo: o valor emocional que lhe inere. Enquanto o domínio do português é por muito tempo apenas relativo e precário, a língua da tribo persiste como o único instrumento adequado à expressão perfeita dos sentimentos e das ideias. (SCHADEN, 1965, p. 191). Apesar de a língua Apinayé ser muito estudada, outros aspectos da cultura deste povo não vêm recebendo a atenção devida, como, por exemplo, suas criações materiais e imateriais. Assim sendo, esta tese pretende desvendar os mecanismos do ensino-aprendizagem tradicional dentro da sociedade Apinayé, buscando compreender as estruturas relacionados ao aprender e ao ensinar dentro desta cultura específica. Quanto a processo de ensino-aprendizagem tradicional, refiro-me aos processos de ensino-aprendizagem que ocorrem dentro de determinada sociedade, de forma culturalmente natural, seguindo uma tradição étnica própria, e que não estão ligados diretamente à educação prestada nas escolas indígenas. Falo da relação que as pessoas de um mesmo grupo social indígena, neste caso os Apinayé, mantêm com as formas de aprender e ensinar fazeres e saberes tradicionais, que foram passados por seus ancestrais e são aqui exemplificados pelos instrumentos musicais enquanto objetos culturais.

23 Vale lembrar que os instrumentos musicais são objetos de cultura material, enquanto a música produzida por uma sociedade, sua performance musical e seus conhecimentos musicais são produtos de cultura imaterial. Todos estes bens são expressões humanas, se complementam, dependem um do outro e estão intimamente relacionados. Assim, este estudo busca compreender o processo de ensinoaprendizagem tradicional através da confecção dos instrumentos musicais, o que equivale dizer que saberes e fazeres (bens imateriais) se fundem para produzir os artefatos de produção de música (bens materiais). Neste sentido, podemos pensar os instrumentos musicais como saberes imateriais traduzidos em forma de matéria. De acordo com o órgão governamental encarregado da preservação do patrimônio material e imaterial brasileiro, (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN), os Bens Culturais de Natureza Imaterial dizem respeito a aqueles domínios e práticas da vida social de um determinado grupo ou comunidade que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e lugares importantes culturalmente (como santuários, mercados e feiras que abrigam práticas culturais coletivas). Assim sendo, as formas de expressão musical dos Apinayé fazem parte de sua cultura imaterial, como também os seus saberes relativos à pratica musical, à confecção dos instrumentos musicais, repertório de cantos, etc. Também, de acordo com o decreto federal nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, consideram-se como bens do patrimônio imaterial: Saberes (conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades); Celebrações (rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social); Formas de Expressão (manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas); e Lugares (mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas). O bem imaterial relevante de registro oficial pelo IPHAN, segundo o decreto nº 3.551/2000, deve ter...referência à continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira (BRASIL, 2000, Art. 1º, 2º). Neste sentido, os saberes e fazeres utilizados na confecção dos instrumentos musicais Apinayé se colocam como bens culturais imateriais relevantes de registro e estudo, contribuindo para a memória deste povo e para a valorização da identidade Apinayé.

24 Também, o processo de ensino-aprendizagem tradicional pode ser definido como um conjunto de meios educacionais capazes de modificar um comportamento através da aquisição de novos saberes e fazeres culturalmente próprios de um determinado grupo social. Nesse processo estão envolvidos fatores externos e internos. Os externos se relacionam à formação humana e às propostas de quem ensina, e os internos estão relacionados às condições psíquico-sócio-culturais do aprendiz. Ainda, busca-se encontrar, através do processo de ensino-aprendizagem tradicional da confecção de objetos culturais de valor estético (ex.: sonoro, visual, etc.), alternativas educacionais que visam a compreender e a utilizar as formas tradicionais de aprendizagem indígena em benefício de todos os envolvidos com a área da educação. Através do estudo de como são fabricados e de como devem ser utilizados os instrumentos musicais Apinayé poderemos entrar nos meandros sócio-culturais deste povo e vislumbrar novas formas de ação educacional que podem ser úteis em vários outros contextos.