DOS CRIMES CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS. Helena Regina Lobo da Costa Leonardo Alonso Marina Pinhão Coelho



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Transcrição:

DOS CRIMES CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS Helena Regina Lobo da Costa Leonardo Alonso Marina Pinhão Coelho In: Revista Literária de Direito. Agosto/setembro/2004. p. 30-33. I) APONTAMENTOS CRÍTICOS A Lei das Sociedades por Ações (Lei n. 6.404/76) e a Lei do Mercado de Valores Mobiliários (Lei n. 6385/76) sofreram profundas modificações pela Lei n. 10.303/2001. Trata-se de diplomas legais que precisam manter entre si estrita coerência, razão pela qual foram reformadas as duas leis por meio de um só projeto. Muito se discutiu acerca das mudanças realizadas, especialmente sobre a posição do acionista minoritário, que ganhou relevância por meio da outorga de direitos e poderes até então desconhecidos. Todavia, existe um importante aspecto nesta reforma legal que merece grande atenção por parte dos profissionais atuantes no mercado financeiro. Cuida-se da criação de alguns tipos penais denominados crimes contra o mercado de capitais. O estudo destes crimes, introduzidos no artigo 27, C, D e E, passa necessariamente pela análise, sob uma perspectiva da política criminal, da necessidade e efetividade da utilização da tutela penal a estes tipos de condutas. A intenção de se consolidar valores do mercado financeiro, caros à sociedade, por meio da criação de normas proibitivas no âmbito penal, é injustificável por não se caracterizar como o meio mais eficaz na prevenção de condutas lesivas a estes valores. A questão que deve ser colocada é se, efetivamente, será possível obter-se uma estabilidade dessa base econômico-financeira mediante o uso de um instrumento repressivo, rotulador e em princípio irracional, que é o sistema punitivo criminal. 1 As sementes da problemática que se pretende aqui descrever, já foram apontadas em 1977, quando a Diretoria do Banco Central do Brasil constituiu grupo de trabalho para propor medidas que possibilitassem a melhoria na aplicação da Lei 6.024/74 (dispõe sobre a intervenção e liquidação judicial de instituições financeiras). O grupo de trabalho foi dividido entre os que estudariam as medidas administrativas e os que tratariam da proposta de criminalização de condutas. Já se via, nesta constituição dupla do grupo de trabalho, a ingerência mútua entre as esferas administrativa e penal na solução de alguns problemas relacionados ao mercado financeiro. No entanto, a Lei 10.303/2001, apesar das sanções administrativas já previstas, fez a escolha também pela via penal e feriu princípios gerais do sistema jurídico-penal brasileiro. 1 TAVARES, Juarez. Prefácio do livro de José Carlos Tórtima. Crimes contra o sistema financeiro nacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2002. XI.

Os três tipos penais descritos, e que serão abaixo estudados, podem ser definidos como: artigo 27-C - manipulação do mercado, artigo 27-D - utilização de informações privilegiadas, e artigo 27-E - exercício irregular da atividade ou profissão. Todos eles vinculados não só à atividade do administrador das sociedades anônimas, mas também à atividade dos profissionais que se arvoram na função de traders e corretores de valores. O bem jurídico protegido nas normas criadas pela Lei 10.303/2001, em acréscimo àquelas condutas já tipificadas na Lei 7.492/86, é, essencialmente, a proteção da estabilidade do mercado de capitais. Busca-se, de forma direta através da sanção penal (como se possível fosse), salvaguardar a sociedade de fraudes e manipulações capazes de desestabilizar a economia do mercado. Isto porque a dependência do dinheiro internacional e a política anti-inflacionária, com altas taxas de juros e vantagens evidentes para investimento de grandes somas no mercado de capitais, torna vulnerável a economia do país à atividade dos agentes financeiros. Não só. Além desses fatores típicos de países em desenvolvimento, a estrutura atual de circulação de capital no mundo todo assusta, tanto pela velocidade das movimentações e pela liquidez dos créditos, quanto pela pulverização dos riscos das condutas de pequeno grupo de investidores a toda economia internacional. A perspectiva sociológica do viver em sociedade, principalmente a aldeia global, assusta os próprios homens. Os homens são, em grande quantidade, formados e informados, mas eles têm medo, sentem-se ameaçados pelas mudanças sociais, e se preocupam em afastar, de forma focalizada e efetiva, a sua visão realístico-pessimista do futuro 2. A partir da década de 90 verifica-se que o medo e a insegurança inerentes às relações sociais do mundo contemporâneo deixam marcas profundas no Direito Penal. Esta preocupação em afastar o perigo da pulverização dos riscos refletiu-se com a excessiva generalização da conduta e a criação de tipos penais, em sua maioria, de perigo abstrato. Busca-se englobar não apenas a lesão ao bem jurídico que eventualmente venha a ocorrer, mas também abarcar, de forma sub-reptícia, a mera realização da conduta tipificada penalmente, sem implicações na situação do bem jurídico. Os crimes de mercados de capitais ora em estudo são frutos destas preocupações. Afrontando a estrutura sistêmica do direito penal, o legislador utiliza-se da técnica dos crimes de perigo abstrato e tipifica condutas de forma ampla e genérica, o que dificulta sobremaneira a distinção entre o lícito e o ilícito. O que era, até o advento da Lei 10.303/2001, fiscalizado e sancionado apenas pelos órgãos de controle estatal como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Banco Central (BACEN), torna-se também competência criminal da Justiça Federal, sem que 2 BECK, Ulrich. Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt: Suhrkamp.1986. p.69 (tradução livre). Em posição crítica, HEFENDEHL, Roland. Kollektive Rechtsgüter im Strafrecht. München: Beck 2002. p.163 e ss, desafia o conceito de sociedade de risco por ser este extremamente genérico e confuso, mas confirma que a sociedade atual possui três características absolutamente peculiares, e que faz a perspectiva do risco social atualmente diferente: grande interdependência das causas de um determinado acontecimento; aumento do anonimato nas ações do cotidiano; relevante potencial de risco em massa.

se possa justificar, de forma clara, a constitucionalidade da utilização do Direito Penal para a prevenção destas condutas. A análise da necessidade da tutela penal deve percorrer o caminho da adequação e proporcionalidade dos meios para se alcançar o fim almejado. O Direito Penal, além de ser o meio mais grave de ingerência na liberdade individual dos cidadãos, possui dinâmica própria e direcionada às lesões que, de forma clara e definida, afrontam bens jurídicos penais. Deve haver uma correlação perfeita entre o desvalor da conduta realizada, o desvalor do resultado alcançado e a proporcionalidade da resposta estatal cominada. Não é isto que se percebe nos crimes ora analisados. Os meios utilizados pela Lei 10.303/2001 para proteção de valores atinentes ao mercado de capitais, da forma como foram construídos, não são adequados ao que se pretende. A estruturação do sistema penal como ultima ratio do ordenamento jurídico, nestes casos de proteção de bens jurídicos coletivos, passa, necessariamente, pela efetividade das esferas administrativa e civil no controle das relações sociais. A regulação da atividade mobiliária possui estrutura própria, que no Brasil cinge-se ao Conselho Monetário Nacional, ao Banco Central e à Comissão de Valores Mobiliários. Existe inclusive procedimento administrativo sancionador para controlar a gestão do mercado, com sanções próprias e determinadas às pessoas físicas e jurídicas atuantes no mercado de capitais. Muito além disto. A utilização do sistema penal da forma rígida como a realizada nesses crimes de mercado de capitais (existem penas cominadas que podem chegar a 8 anos de reclusão!!!) só reforça a função simbólica que vem sendo conferida ao direito penal nos últimos 15 anos. O direito penal se transformou em forma de ilusão aos homens que buscam se proteger de algo que não é possível evitar, por ser parte inerente do mercado contemporâneo. II) ANÁLISE DOS TIPOS PENAIS Manipulação de mercado Art. 27-C. Realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas, com a finalidade de alterar artificialmente o regular funcionamento dos mercados de valores mobiliários em bolsa de valores, de mercadorias e de futuros, no mercado de balcão ou no mercado de balcão organizado, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiro. Pena reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. Anteriormente à análise do tipo penal, é relevante tecer alguns breves comentários críticos acerca da incriminação da manipulação de mercado. Trata-se, indubitavelmente, de conduta que se insere no que Winfried Hassemer denomina de criminalidade moderna, especialmente em razão de seu modus operandi, que se caracteriza pela prática de formas de ação civil ou negocial, tais como contratos, pagamentos e negociações. A criminalidade moderna é, ainda, marcada pela internacionalidade, profissionalidade de seus agentes, divisão de trabalho e proteção

contra a investigação policial 3. O Direito Penal encontra enorme dificuldade para lidar com tais comportamentos, já que a fronteira entre o lícito e o ilícito é bastante tênue e se expressa, na maior parte das vezes, em uma linguagem que lhe é alheia. Assim, o tipo penal dependerá em demasia de complementações de conceitos oriundos de outros ramos do direito, o que não se afigura saudável em termos de taxatividade e tipicidade, princípios essenciais do Direito Penal. Conforme já salientado acima, o ideal seria deixar a regulação e a punição dos ilícitos à Comissão de Valores Mobiliários, instância que, além de especializada na matéria, tem se mostrado eficiente para a aplicação de sanções administrativas. Todavia, não foi esta a escolha de nosso legislador e, na própria redação do tipo penal de manipulação de mercado já se pode antever os problemas que terão de ser enfrentados para a aplicação do dispositivo legal. Passemos, pois, à análise do tipo penal. O bem jurídico que se visa a proteger é o bom funcionamento do mercado de valores mobiliários, seja das bolsas de valores, de mercadorias e de futuros, do mercado de balcão ou do mercado de balcão organizado. As condutas típicas são as de realizar operações simuladas e executar outras manobras fraudulentas. Assim, a simulação ou a fraude são elementos essenciais do tipo penal, sem os quais não se configura o crime. A simulação consiste no disfarce, no simulacro, no mis en scéne e a fraude é o artifício ardiloso por meio do qual se busca forjar uma aparência falsa da realidade. São figuras bastante semelhantes, podendo-se afirmar que a simulação é espécie do gênero fraude. Quanto ao elemento subjetivo, a redação do tipo penal evidencia que o dolo destas condutas deve ser o específico, ou seja, o agente deve ter o fim especial de alterar artificialmente o funcionamento regular do mercado com o fim de obter vantagem ou causar dano. Assim, não se incriminam condutas culposas ou cometidas com fim diverso ao de modificar de forma artificial o funcionamento do mercado. Por exemplo, caso uma companhia divulgue informação errada em seu balanço, que gere alteração do valor de suas ações no mercado mobiliário e conseqüente vantagem pecuniária, não estará caracterizado o crime na hipótese de a informação errada ter sido aposta no balanço por erro de digitação. Outro exemplo é o citado por Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik: assim, [...] se o agente negocia uma grande quantidade de títulos, num pequeno período de tempo, pode provocar a alteração da cotação de tais valores, sem a intenção de manipular; é o que ocorre nas operações que, por seu volume, causam um impacto de mercado, que não sem confunde com manipulação, pela ausência do dolo específico 4. A grande dificuldade que o Direito Penal enfrentará é a de reconhecer e distinguir a fraude ou simulação da operação lícita e, principalmente, diferenciar o dolo de alterar artificialmente o mercado da intenção lícita de obtenção de lucros por meio de operações regulares no mercado. 3 Fundamentos Del Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1984, p. 45. 4 A nova Lei das S/A. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 539.

É importante ressaltar que o crime de manipulação de mercado pode ser praticado por qualquer pessoa que atue no mercado, isto é, trata-se de crime comum, podendo ser praticado por acionistas, administradores, operadores de instituições financeiras, de distribuidoras ou de corretoras de títulos mobiliários etc. Por fim, deve-se chamar atenção para a pena cominada ao delito, de 1 a 8 anos e multa, que deixa ao juiz uma enorme margem de liberdade para a fixação da pena na sentença. Liberdade que deve ser exercida com observância aos ditames do art. 59 5 do Código Penal. Utilização De Informação Privilegiada (Insider Trading) Art 27-D - Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários. Pena reclusão de 1 (um) a 5 anos e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. Questão das mais polêmicas e atuais em se tratando de Mercado de Capitais é a figura da insider trading, consistente na utilização de informações privilegiadas e sigilosas na negociação de valores mobiliários visando a obtenção indevida de vantagem econômica. Tal conduta constitui, por óbvio, comportamento eticamente reprovável, ao qual procurou-se, por meio de normas civis 6, administrativas 7 e penais, reprimir e combater. Foi, com esse intuito, que o legislador inseriu na Lei 6.385, de 07.12.1976 8, que dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários - CVM, a figura típica do art. 27-D. A regra do artigo 27-D, todavia, não traz em seu texto os conceitos dos termos pela mesma utilizados, tratando-se de norma penal em branco, o que demanda uma análise conjunta com outros regramentos, em especial a Lei das Sociedades Anônimas e normas administrativas editadas pela CVM órgão competente para fiscalização e regulação do Mercado de Capitais. 5 Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I as penas aplicáveis dentre as cominadas; II a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. 6 Artigo 155, parágrafo 1º, da Lei das Sociedades Anônimas. 7 Artigo 13 da Instrução CVM n.º 358, de 03.01.2002. 8 Modificada pela Lei 10.303, de 31.10.2001, que inseriu novos tipos penais, sob a denominação de crimes contra o mercado de capitais.

É nas mencionadas regulamentações que se deve buscar os conceitos de informação relevante, e de insider, indispensáveis para a delimitação de aplicação da regra penal em análise. Segundo conceituado no Dicionário de Finanças on line da Bolsa de Valores de São Paulo - BOVESPA, informação relevante é aquela referente a fatos, ocorridos nos negócios da companhia, que possam influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado, de vender ou comprar valores mobiliários de sua emissão. A instrução CVM n.º 358/02, em seu artigo 2º, por sua vez, define o que vem a ser ato ou fato relevante como qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembléia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômicofinanceiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável: I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles relacionados; II - na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; III - na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados. O parágrafo único do artigo em comento ainda traz vinte e dois exemplos de atos ou fatos considerados como relevantes. Todavia, referido rol não é taxativo, mas sim, conforme expresso no próprio texto, meramente exemplificativo. Segundo a Lei das Sociedades Anônimas (artigo 155), podem ser considerados como insiders apenas os administradores das companhias abertas. A instrução CVM n.º 358/02, em seu artigo 13, por seu turno, elenca uma série de figuras, além da pessoa do administrador da companhia aberta, como proibidos de utilizar informações privilegiadas e sigilosas, e, ainda, no parágrafo 1º, estende o conceito de insider para qualquer pessoa que tenha conhecimento de informação referente a ato ou fato relevante, sabendo que se trata de informação não divulgada ao mercado. Referida norma administrativa faz especial menção àqueles agentes que tenham relação comercial, profissional ou de confiança com a companhia, como auditores, consultores e advogados. Para a configuração do delito, é necessário que o sujeito utilize a informação privilegiada, negociando valores mobiliários, em nome próprio ou de terceiros, objetivando assim, auferir vantagem indevida, não sendo necessária a ocorrência de um resultado, consubstanciado no ganho econômico. Chega-se a essa conclusão em decorrência da utilização pelo legislador do termo capaz de propiciar vantagem indevida, tratando-se, dessa forma de crime formal 9. Temos, desse modo, que o crime de uso indevido de informação privilegiada consiste na utilização, por qualquer pessoa, por meio de negociação de valores mobiliários, em nome próprio ou não, de informação relevante e sigilosa, objetivando a obtenção de vantagem indevida para si ou para terceiros. O bem juridicamente protegido vem a ser a estabilidade do mercado de capitais e a segurança de seus investidores. Conforme a lição de Modesto Carvalhosa e Nelson 9 Em sentido contrário, Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik. A nova Lei das S/A. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 548.

Eizirik 10, a norma penal visa a tutelar o processo de disclosure, ou seja, da ampla e completa divulgação de informações como elemento essencial de proteção aos investidores do mercado de capitais. Segundo os citados autores 11, a ampla divulgação de informações constitui elemento essencial de tutela dos interesses dos investidores; assim, considera-se que uma vez bem informados, os investidores estarão adequadamente protegidos. Segundo a teoria econômica, o mercado é eficiente quando a cotação das ações reflete, de forma virtual e instantânea, todas as informações disponíveis sobre as companhias cujos títulos são publicamente negociados. E foi justamente visando proteger os investidores e o mercado de capitais como um todo, que o legislador consagrou o dever de transparência como verdadeiro princípio, no que foi seguido pelas normas da Comissão de Valores Mobiliários 12. Destaque-se que mesmo antes da criação, pela Lei 10.303/01, do tipo penal em estudo, a insider trading era detentora de certa proteção penal, por meio do crime de violação de segredo profissional, previsto no artigo 154 do Código Penal. Pode-se concluir, desse modo, que o legislador, com a criação do crime do artigo 27-D, além de conferir tratamento penal específico à matéria, cuidou de agravar as penas cominadas à conduta, não só pela majoração da restrição à liberdade, que no tipo do Código Penal é de seis meses a um ano de detenção, como também pela cumulação de multa, que pode chegar a três vezes o valor da vantagem econômica obtida. Essa preocupação em proporcionar instrumentos mais eficientes e gravosos ao combate da insider trading também se verifica com a ampliação, pelas normas da CVM, do conceito de insider, que vem a ser justamente o sujeito ativo do crime em estudo. Significante ponto negativo a ser destacado consiste na grande dificuldade de produção da prova acusatória nestes casos, na medida em que, via de regra, a utilização indevida da informação privilegiada se dá por meio de terceiros sem qualquer ligação aparente com a companhia e com o agente criminoso, sendo tarefa das mais complicadas a comprovação de tal vinculação, tornando a proteção penal muito pouco efetiva. Exercício Irregular de Cargo, Profissão, Atividade ou Função Art. 27-E. Atuar, ainda que a título gratuito, no mercado de valores mobiliários, como instituição integrante do sistema de distribuição, administrador de carteira coletiva ou individual, agente autônomo de investimento, auditor independente, analista de valores mobiliários, agente fiduciário ou exercer qualquer cargo, profissão, atividade ou função sem estar, para esse fim, autorizado ou registrado junto à autoridade administrativa competente, quando exigido por lei ou regulamento. Pena detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. 10 Op. cit., p. 544. 11 Idem. 12 Artigos 155 (dever de lealdade do administrador) e 157 (dever de informar) da Lei das S/A. e artigos 3º, 8º e seguintes da Instrução CVM n.º 358/02.

No que se refere ao crime de exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função, cabe fazer novamente uma crítica ao legislador, que preferiu adotar a figura do crime de perigo abstrato largamente censurado por setores importantes da doutrina penal em vez de construir um tipo penal que contemplasse um risco concreto ao bem jurídico. A norma visa a tutelar o bom funcionamento do mercado (bem jurídico protegido), partindo da presunção de que agentes não autorizados colocariam este valor em risco. A conduta incriminada é atuar no mercado mobiliário ou exercer cargo, profissão, atividade ou função sem a devida autorização ou registro o mero oferecimento de um serviço, por exemplo, não é suficiente para a configuração do tipo penal. Só pode ser praticada de forma dolosa e o dolo exigido pelo tipo é o genérico não se determina um fim especial de agir. Caso se trate de instituição financeira, a norma incidente será o art. 16 da Lei n. 7.492/86. Este artigo pune a conduta de fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de câmbio. Ressalte-se que este artigo, no que se refere à distribuição de valores mobiliários, foi revogado pela Nova Lei das S/A, que lhe é posterior. O crime descrito no art. 27-E é um crime formal, em que um eventual resultado que pode ou não ocorrer em virtude da atuação proibida não é necessário para a configuração do tipo penal e, caso ocorra, é mero exaurimento da conduta. A pena cominada é de 6 meses a 2 anos de detenção, dando ensejo, aos agentes que preencherem os requisitos subjetivos, à aplicação de transação penal, nos termos do art. 76 da Lei n. 9.099/95.