AULA 3.1 - CONCEPÇÕES ESTÉTICAS: ARTE GREGA E MEDIEVAL 1. Isto é arte? TEXTO DE APOIO O conceito de belo, como já discutimos, é eminentemente histórico. Cada época e cada cultura têm seu padrão de beleza próprio. Na contemporaneidade, exemplificada pela obra de Leda Catunda, é comum a incorporação do cotidiano, do efêmero e dos valores difundidos pelos meios de comunicação de massa ao universo da arte. Neste trabalho, o cotidiano nos é dado pelo material sobre o qual a pintura foi feita: o cobertor com estampa de onça é a realidade concreta, compartilhada pelo observador/público. E, se o material causa estranheza, mais espantados ficamos ao perceber que é o fundo pintado com tinta acrílica que dá forma à imagem da onça. A figura, salvo poucas manchas preenchidas com tinta colorida, permanece intocada, deixando entrever o tecido peludo do cobertor cuja padronagem (de pele de onça) sugeriu seu aproveitamento para essa obra de arte. O procedimento de vedação do fundo faz com que a figura salte aos olhos e "às mãos", uma vez que a maciez e a fofura, próprias do cobertor apelam ao nosso sentido táctil. Ao inverter o procedimento tradicional de pintar a figura, dando menor importância ao fundo, a artista estabelece um diálogo irônico com a história da arte. O fundo, em vários tons de verde com algumas pinceladas amarelas, nos faz pensar em floresta e mata o habitat natural das onças-pintadas, que só são encontradas na América Latina. A onça, entretanto, apesar da feição feroz com os dentes arreganhados e as longas garras, não está em posição que nos dê a ideia de vida. Ao contrário, as pernas esticadas em direção aos quatro ângulos do cobertor lembram os animais transformados em tapetes, exibidos como troféus por caçadores e outros consumidores desse tipo de souvenir. Assim transformados, esses animais não oferecem mais perigo. Deixam de ser selvagens, donos das selvas, temidos, para entrar nas casas e serem literalmente pisados. A onça-pintada é uma imagem, comum no imaginário popular brasileiro, da qual a artista se apropriou para criar sua obra, colocando em questão as relações entre a realidade e
a representação (presente na brincadeira entre a onça-pintada existente na natureza e a onça pintada por ela); entre o registro popular (do cobertor e da imagem da onça-pintada) e o erudito (da arte); entre o selvagem e amedrontador (a onça viva) e a pacificação da morte, do extermínio. Cruzando essa imagem de 1984 com as preocupações ambientalistas do mundo no século XXI, podemos fazer outra leitura dessa obra: a onça é um animal em extinção e sua representação como "tapete" pode levantar uma série de questões sobre a ação do ser humano na natureza; a necessidade de preservação das espécies para manter a riqueza biológica do planeta e do país; o futuro da humanidade; a ideia de "dominar a natureza como condição do progresso etc. Assim como o restante da obra de Leda Catunda desse período, Onça pintada I coloca algumas questões sobre o que é arte: trata-se de uma brincadeira ou de um projeto poético sério? O artista precisa criar suas obras ou pode se apoderar de imagens e objetos já prontos, para desconstruí-los? A arte deve ter uma função crítica? Uma pintura deve sempre seguir a tradição e usar materiais convencionais, como a tela, o chassi sobre o qual ela é esticada, ou a madeira? Será que, em outras épocas, Onça pintada I seria considerada uma obra de arte? Para ajudar você a responder essas perguntas, vamos examinar as várias correntes estéticas que vieram a determinar não só as relações entre arte e realidade, porém, mais importante ainda, o estatuto e a função da obra de arte. 2. A arte grega e o conceito de naturalismo Conceito de naturalismo O naturalismo, segundo Harold Osborne, pode ser definido como a ambição de colocar diante do observador uma semelhança convincente das aparências reais das coisas. A admiração pela obra de arte, nessa perspectiva, advém da habilidade do artista em fazer a obra parecer ser o que não é. Logo, parecer ser a realidade e não a representação dela. Na atitude naturalista, podemos distinguir algumas variações, dentre as quais as mais importantes são o realismo e o idealismo. O realismo mostra o mundo como ele é. Nem melhor nem pior. É característico, por exemplo, da arte renascentista do século XV.
Já o idealismo retrata o mundo nas suas condições mais favoráveis. Na verdade, mostra o mundo como desejaríamos que fosse: melhorando e aperfeiçoando o real. É o padrão da arte grega, que não retrata pessoas reais, mas pessoas idealizadas. Foram os gregos que elaboraram a teoria das proporções do corpo humano usadas para qualquer representação, em pintura ou escultura, qualquer que fosse a realidade do modelo. O rosto, por exemplo, era dividido em três partes de igual tamanho: um terço seria ocupado pela testa, um terço pelos olhos e nariz, e o terço restante, pela boca e pelo queixo. O naturalismo foi uma atitude dominante na arte ocidental por muitos séculos, com exceção, como veremos, do período medieval. Com o movimento impressionista, no século XIX, houve outra ruptura com essa atitude, pois os artistas passaram a dar primazia às variações da luz e não aos objetos representados. Essa mudança de atitude se deve, em parte, ao aparecimento do bisavô da máquina fotográfica o daguerreótipo, que fixa as imagens do mundo de forma mais rápida, econômica e precisa do que a tela pintada. Por essa razão, os artistas, principalmente os pintores, tiveram de repensar a função da arte e o espaço específico da pintura. O naturalismo na arte grega Na Grécia Antiga não havia a ideia de artista no sentido que hoje empregamos, uma vez que a arte estava integrada à vida. As obras de arte dessa época eram utensílios (vasos, ânforas, copos), edificações (templos) ou instrumentos educacionais. O artífice que os produzia era considerado um trabalhador manual, do mesmo nível do agricultor ou do ferramenteiro. Era um artesão, tinha domínio Tékhne (palavra de origem grega, significa modo de saber), numa sociedade que considerava o trabalho manual indigno. Platão (séc. V a.c.) recusa-se a dar valor autônomo ao que chamamos de arte. Para ele, existe uma ordem metafísica e ética no mundo, sendo tarefa da filosofia descobri-la por meio do pensamento racional. A arte só poderia ter valor se representasse corretamente essa ordem ou nos ajudasse a agir de acordo com ela. Contudo, Platão reconhece o poder da poesia sobre a alma humana e dá indícios de que aprecia os prazeres que ela proporciona. Com relação à beleza, termo que ele usa com muitos sentidos diferentes, entre eles desejabilidade, valor de troca e agradabilidade à visão e à audição, ela não está relacionada às artes. Platão critica, inclusive, os sofistas e os retóricos por não saberem fazer a distinção
entre o que é belo porque dá prazer, do que é genuinamente bom e benéfico. Para ele, a beleza em si é uma forma, acessível somente ao intelecto. Platão faz a crítica da beleza no mundo sensível, dizendo que é variável (algo pode ser belo em um momento e não em outro), e é relativa (algo é belo em relação a algum aspecto, mas não a outros; é belo para um observador e não o é para outro). Do outro lado, a beleza como forma não é variável - "sempre é: não se torna, nem acaba não brilha, nem desvanece" (Symposium 21Ia). Nesse período (sécs. V e IV a.c.), a função da arte era criar imagens de coisas reais, que tivessem aparência de realidade. Para que esse objetivo fosse atingido, foram desenvolvidas técnicas que permitiam produzir cópias da aparência visível das coisas. Há várias anedotas que ilustram bem isso, embora poucos exemplares da pintura grega tenham chegado até nós. Dizem que Apeles pintou um cavalo com tanto realismo que cavalos vivos relinchavam ao vê-lo. Outra história conta que Parrásio pintou uvas tão reais que passarinhos tentavam bicá-las. Na verdade, talvez essas pinturas só possam ser consideradas realistas em relação à estilização da pintura que a precedeu ou à pintura egípcia, por exemplo. Por outro lado, temos de admirar a fidelidade anatômica das esculturas gregas, tais como a Vitória de Samotrácia e o Discóbulo. Essa atitude perante a arte está fundada sobre o conceito de mimese. Para Platão, a mimese (palavra de origem grega) seria a imitação não da ideia (essência universal) da coisa, mas tão somente de sua aparência, isto é, de um objeto concreto e particular. Além disso, só se pode imitar algo a partir de um ponto de vista, não de todos, fazendo com que a imitação não seja exata, mas parcial. Portanto, ela está longe da verdade. No polo oposto, Aristóteles afirma que a mimese é natural para as pessoas desde a infância, por ser um modo de aprendizado. A mimese resulta em conhecimento porque copia corretamente o objeto e o simplifica. No que diz respeito à tragédia, ela é a mimese de uma ação, de um acontecimento, e não das paixões. É um processo ativo de seleção de partes para apresentação. Não é passiva, cópia automática, como supunha Platão. Aristóteles traz de volta a necessidade da habilidade para fazer a poesia: o poeta é um compositor-criador de tramas, e não de versos. Embora a poesia não seja mimese do universal. Aristóteles sustenta que, mesmo que os
objetos da mimese não sejam universais, eles podem resultar em um processo que apresente universais, porque a tragédia não trata de assuntos banais. Entretanto, é no sentido de cópia ou reprodução exata e fiel da realidade que a palavra mimese passa a ser adotada pela teoria naturalista. E as obras de arte, nessa perspectiva, são avaliadas segundo o padrão de correção estabelecido por Platão: 3. A estética medieval e a estilização Na Europa ocidental, durante a Idade Média, não houve grande interesse pelas artes, consideradas coisas terrenas ligadas à cultura pagã, capazes de prejudicar o fortalecimento da alma e do espírito. Entretanto, em virtude do analfabetismo generalizado das populações dos feudos, a Igreja Católica utilizou-se da pintura e da escultura para fins didáticos, ou seja, para ensinar a religião e infundir o temor do julgamento final e das penas do inferno. Com isso, as obras de arte assumiram a condição de símbolos que manifestavam a natureza divina e canalizavam a devoção do homem para a divindade suprema. Por isso, a postura naturalista é abandonada em prol da estilização, isto é, da simplificação dos traços, da esquematização das figuras e do desapego aos detalhes individualizantes. A estilização respondia melhor à necessidade de universalização dos princípios da religião cristã. A arte bizantina do mesmo período mostrava extraordinária homogeneidade a partir de sua codificação, no século VI, até a queda de Constantinopla, em 1453. Preocupada com a expressão religiosa e com a tradução da teologia em forma de arte, a Igreja Ortodoxa bizantina padronizou a expressão artística, abolindo a representação do volume em pinturas e mosaicos, preferindo as figuras chapadas, cujas vestes possuíam linhas sinuosas. Mantidas suas características próprias, tanto no Ocidente quanto no Império Bizantino prevaleceu a ideia de que a beleza não era um valor independente dos outros, mas o refulgir da verdade no símbolo. A obra de arte, assim, nos permitiria alcançar a visão direta da perfeição da natureza divina. Desse ponto de vista, a beleza era uma qualidade mais bem apreendida pela razão do que pelos sentidos, e correspondia ao pensamento religioso dessa época, marcado pelo desejo de ascender do mundo sensual das sombras, das aparências, à contemplação direta da perfeição divina (ver capítulo 13, "A busca da verdade").
Agostinho Agostinho (354-430) ultrapassou a noção da mimese platônica porque considerava a arte humana um símbolo do significado da arte de Deus. À pergunta: "Uma coisa é bonita porque nos agrada ou nos agrada porque é bonita?", ele responde: 'Agrada porque é bonita'. Agostinho elaborou "uma rigorosa teoria do belo como regularidade geométrica. Ao tratar da ordem e da música, considera o número como medida de comparação que leva à ordenação das partes iguais dentro de um todo integrado e harmônico. O gosto pela proporção, o próprio conceito de beleza como ordenação dos objetos ao que deve ser, pressupõe um conceito anterior da ordem ideal, dado por iluminação divina. Não podemos esquecer as origens platônicas do pensamento aristotélico em que o ideal precede o real. Este, mera cópia daquele. Esse conceito ideal de beleza fundamenta a objetividade do julgamento da beleza real, concreta, e é fonte das normas para a produção do belo. Tomás de Aquino Coube a Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) retomar o pensamento de Aristóteles, ao qual teve acesso por meio das traduções árabes, e recuperar o mundo sensível que havia sido considerado fonte de pecado durante quase toda a Idade Média. Adaptou o conceito de forma que justifica a existência das coisas individuais. Afirmava que as formas dependiam de Deus e tinham a chave do Ser das coisas: são elas que conferem unidade, verdade, bondade, ou seja, que permitem que as coisas individuais possuam, por derivação, os atributos transcendentais de Deus. Se o mundo é criação de Deus, terá as marcas de sua origem e será a encarnação simbólica do lagos divino. Pode, assim, ser objeto de nossa atenção e interpretação. Como para Agostinho, beleza e bondade não eram atributos diferentes: eram modos diferentes de olhar aspectos diversos das mesmas coisas. A beleza é o aspecto agradável da bondade, pois o belo é agradável à cognição, ao passo que o bom está relacionado ao desejo. Por isso só o ser humano tem prazer nas coisas sensíveis porque sensíveis. Tomás de Aquino não conhecia a Poética de Aristóteles, que não havia sido traduzida pelos árabes. Entretanto, o tratamento dado à arte, no sentido de arte produtiva,
aproxima-se da discussão de Aristóteles sobre tékhne. O espectador pode ter prazer ao se deparar com uma obra de arte, sem ter a consciência de que o que agrada é a forma sensível. Tomás de Aquino estabeleceu três condições para a beleza: integridade ou perfeição; devida proporção ou harmonia entre as partes; claridade ou luminosidade, ou seja, o resplandecer da forma em todas as partes da matéria. Resumindo, podemos dizer que a essência da beleza em geral consiste na resplandecência da forma sobre partes da matéria proporcionalmente ordenadas. 1. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda, MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1993. Capítulo 37.