Daniela Medeiros Soares * e Sandro Serpa **



Documentos relacionados
Compromisso para IPSS Amigas do Envelhecimento Ativo CONFEDERAÇÃO NACIONAL INSTITUIÇÕES DE SOLIDARIEDADE

Modelling of Policies and Practices for Social Inclusion of People with Disabilities in Portugal

O Que São os Serviços de Psicologia e Orientação (SPO)?

Índice: Introdução 3. Princípios Orientadores 3. Definição do projecto 4. Considerações Finais 8. Actividades a desenvolver 9.

Espaço t Associação para o Apoio à Integração Social e Comunitária. Instituição Particular de Solidariedade Social

VIII JORNADA DE ESTÁGIO DE SERVIÇO SOCIAL

A PARTICIPAÇÃO DOS SENIORES NUMA OFICINA DE MÚSICA E TEATRO: IMPACTOS NA AUTO-ESTIMA E AUTO-IMAGEM. Sandra Maria Franco Carvalho

Escola Secundária com 3º CEB de Coruche EDUCAÇÃO SEXUAL

A ACTIVIDADE FÍSICA F PREVENÇÃO DA IMOBILIDADE NO IDOSO EDNA FERNANDES

FÓRUM DE PESQUISA CIES Olhares sociológicos sobre o emprego: relações laborais, empresas e profissões 18 de Dezembro de 2009

Worldwide Charter for Action on Eating Disorders


FORMAÇÃO DOCENTE: ASPECTOS PESSOAIS, PROFISSIONAIS E INSTITUCIONAIS

2010/2011 Plano Anual de Actividades

Introdução. Procura, oferta e intervenção. Cuidados continuados - uma visão económica

ÍNDICE ENQUADRAMENTO CARACTERIZAÇÃO DO AGRUPAMENTO... 4

Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro Padre Alberto Neto CÓDIGO Sub-departamento de Educação Especial

OS CONHECIMENTOS DE ACADÊMICOS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA IMPLICAÇÃO PARA A PRÁTICA DOCENTE

João Samartinho Departamento de Informática e Métodos Quantitativos. Jorge Faria Departamento de Ciências Sociais e Organizacionais

Estudo epidemiológico realizado de 4 em 4 anos, em colaboração com a Organização Mundial de Saúde.

SAÚDE MENTAL DO ENFERMEIRO E O SETOR DE EMERGÊNCIA: UMA QUESTÃO DE SAÚDE NO TRABALHO

2014/ º Ano Turma A. Orientação Escolar e Vocacional

A importância do animador sociocultural na Escola Agrupamento de Escolas de Matosinhos Sul

TÍTULO: EXPERIÊNCIA COM OS FAMILIARES DOS PORTADORES DE ESQUIZOFRENIA USUÁRIOS DO SERVIÇO CAPS

GESTÃO CURRICULAR LOCAL: FUNDAMENTO PARA A PROMOÇÃO DA LITERACIA CIENTÍFICA. José Luís L. d`orey 1 José Carlos Bravo Nico 2 RESUMO

Cuidados paliativos e a assistência ao luto

Notas sobre a população a propósito da evolução recente do número de nascimentos

EBI de Angra do Heroísmo

A psicologia tem uma dimensão prática que se integra em vários contextos e instituições sociais: escolas, hospitais, empresas, tribunais, associações

Critérios para Admissão em Longo e Curto Internamento e Unidade de Dia

Pacto Europeu. para a Saúde. Conferência de alto nível da ue. Bruxelas, de junho de 2008

FUNDAMENTOS DE UMA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA

4. CONCLUSÕES Principais conclusões.

Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento. ( ) ENED Plano de Acção

Colaborações em ambientes online predispõem a criação de comunidades de

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE MEDICINA DE LISBOA

UNIVERSIDADE DO CONTESTADO CAMPUS MAFRA/RIONEGRINHO/PAPANDUVA

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL E DAS ORGANIZAÇÕES GUIA DE ORGANIZAÇÃO E DE FUNCIONAMENTO DOS ESTÁGIOS

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação-Porto\Portugal. Uma perspectiva comportamental em Adolescentes Obesos: Brasil x Portugal

Liderança.

REDE TEMÁTICA DE ACTIVIDADE FÍSICA ADAPTADA

SECRETARIA REGIONAL DE EDUCAÇÃO e cultura. Centro de Apoio Psicopedagógico. gico do Funchal

1. Objectivos do Observatório da Inclusão Financeira

Objetivos do Seminário:

ENVELHECIMENTO E A PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL

A experiência Portuguesa na Incineradora de RH do Parque da Saúde de Lisboa

Marketing Pessoal. aumentem de valor.

Equipe: Ronaldo Laranjeira Helena Sakiyama Maria de Fátima Rato Padin Sandro Mitsuhiro Clarice Sandi Madruga

CONSTRUÇÃO SUSTENTÁVEL

Indicadores Gerais para a Avaliação Inclusiva

QUALIDADE E INOVAÇÃO. Docente: Dr. José Carlos Marques

Portuguese version 1

O Indivíduo em Sociedade

PROJECTO DE LEI N.º 609/XI/2.ª

PROPOSTA DE REGULAMENTO INTERNO

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO SUJEITO. Ser Humano um ser social por condição.

ORIENTAÇÕES PARA A ELABORAÇÃO DE RELATÓRIO DE CRIANÇAS/ADOLESCENTES PARA FINS DE ADOÇÃO INTERNACIONAL (CONTEÚDOS RELEVANTES)

Nota: texto da autoria do IAPMEI - UR PME, publicado na revista Ideias & Mercados, da NERSANT edição Setembro/Outubro 2005.

Doença de Alzheimer: uma visão epidemiológica quanto ao processo de saúde-doença.

DISTÚRBIOS ALIMENTARES

Educação. em territórios de alta. vulnerabilidade

II ENCONTRO DA CPCJ SERPA

APRESENTAÇÃO Qualidade de Vida e Suporte Social do Doente com Diabetes Domiciliado

FORMULÁRIO DE INSCRIÇÃO. Organização Tecnifar - Indústria Tecnica Farmaceutica, SA. Morada Rua Tierno Galvan, Torre 3, 12º LISBOA

Relatório Final de Avaliação. Acção n.º 8A/2010. Quadros Interactivos Multimédia no Ensino/ Aprendizagem das Línguas Estrangeiras Francês/Inglês

5.1 Nome da iniciativa ou Projeto. Academia Popular da Pessoa idosa. 5.2 Caracterização da Situação Anterior

ESPAÇO(S) E COMPROMISSOS DA PROFISSÃO

Centro Comunitário Bairro Social de Paradinha

PROJETO interação FAMÍLIA x ESCOLA: UMA relação necessária

DIAGNÓSTICO PRÁTICAS DE RESPONSABILIDADE SOCIAL NAS EMPRESAS DOS AÇORES

- Critérios- 1. Introdução. 2. Procedimentos da Prova de Discussão Curricular

Qualidade e Inovação. CONTROLO DA QUALIDADE Qualidade e Inovação Trabalho de grupo

A Sociologia de ÉMILE DÜRKHEIM ( )

INOVAÇÃO PORTUGAL PROPOSTA DE PROGRAMA

PROJETO DE LEI N.º 605, DE 2015 (Do Sr. Lobbe Neto)

Uma globalização consciente

XI Mestrado em Gestão do Desporto


RECURSOS HUMANOS Avaliação do desempenho

OFICINAS CORPORAIS, JOGOS, BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS - UMA INTERVENÇÃO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RISCO

Ambientes Não Formais de Aprendizagem

Criatividade e Inovação Organizacional: A liderança de equipas na resolução de problemas complexos

MATRIZ DA PROVA DE EXAME DE EQUIVALÊNCIA À FREQUÊNCIA SOCIOLOGIA (CÓDIGO 344 ) 12ºAno de Escolaridade (Dec.-Lei nº74/2004) (Duração: 90 minutos)

Sistema de Monitorização e Avaliação da Rede Social de Alcochete. Sistema de Monitorização e Avaliação - REDE SOCIAL DE ALCOCHETE

A emergência de novos conceitos e a implementação destas medidas vieram alterar algumas práticas e culturas dominantes nas. Manuel I.

ACTIVIDADES DE ENRIQUECIMENTO CURRICULAR ANO LECTIVO 2011 / 2012 TIC@CIDADANIA. Proposta de planos anuais. 1.º Ciclo do Ensino Básico

CURSO DE FORMAÇÃO EM CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS

COMPETÊNCIAS ESSENCIAIS E IDENTIDADE ACADÉMICA E PROFISSIONAL

PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO PARA TUTORES - PCAT

Orientação para Aposentadoria. Donália Cândida Nobre Assistente Social Suzana Pacheco F. de Melo Psicóloga

Modelo de Intervenção em Crises., Modelo Centrado em Tarefas

Classes sociais. Ainda são importantes no comportamento do consumidor? Joana Miguel Ferreira Ramos dos Reis; nº

REDUÇÃO DE DANOS EM SERVIÇOS DE SAÚDE

TRABALHO PEDAGÓGICO NA PERSPECTIVA DE UMA ESCOLA INCLUSIVA. Profa. Maria Antonia Ramos de Azevedo UNESP/Rio Claro.

PSICOLOGIA APLICADA. A. Filipa Faria Cátia Silva Barbara Fernandes Ricardo Rocha

NÃO HÁ MEMÓRIA DE UMA CAUSA ASSIM

Centro Nacional de Apoio ao Imigrante

Experiências Pré-Profissionais. Na Direção Regional de Educação. Conceito de Experiências Pré-Profissionais

Transcrição:

A doença e a exclusão social. Um contributo para a compreensão da experimentação e das representações dos doentes de Machado-Joseph numa situação de ruptura das dinâmicas e processos de estruturação identitária. Daniela Medeiros Soares * e Sandro Serpa ** Resumo Partindo do pressuposto de que, ao contrário da ideia dominante no senso comum, de facto, a saúde e a doença representam sempre a articulação de realidades físicas com definições e representações sociais, sendo a doença uma realidade também socialmente construída, procuramos reflectir sobre a situação dos doentes de Machado-Joseph, na tentativa de apresentar os principais factores envolvidos na reconstrução identitária destes doentes que vivem um processo de erosão biográfica, na ilha de São Miguel, Açores, Pode-se concluir que a Doença de Machado-Joseph, vista como uma doença das classes mais desfavorecidas, com a sua degeneração corporal a um nível muito elevado e consequente redução das capacidades relacionais e de resposta às expectativas sociais, implica uma auto-imagem negativa, uma desestruturação do controlo sobre a vida e uma redução drástica da rede de contactos familiares, profissionais e sociais por parte do doente, a tal ponto intensa que podemos falar de isolamento social. Processos de estruturação identitária Nesta comunicação, iremos reflectir sobre a experimentação e as representações dos doentes de Machado-Joseph (uma doença neurodegenerativa hereditária, de início tardio e de transmissão autossómica dominante, aparecendo em gerações sucessivas de cada família onde as probabilidades de um(a) filho(a) ter a doença são de cinquenta por cento), na tentativa de caracterização e explicitação de algumas das dinâmicas dos principais factores envolvidos na (re) construção identitária dos doentes de Machado-Joseph, na ilha de São Miguel, nos Açores, num processo de erosão biográfica. Esta doença provoca incapacidade motora progressiva e afecta sobretudo os sistemas motores (marcha, movimentos oculares e dos membros, fala, deglutição). Trata-se de uma doença sem tratamento conhecido, na qual se observa uma perfeita integridade mental, sendo a sobrevida média para a doença de 21,4 anos, com uma idade média de aparecimento de cerca de 40 anos (Coutinho, 1993). Apesar de já ter sido identificada em vários locais do mundo, é nas ilhas dos Açores que a doença atinge a sua expressão máxima, sendo cerca de 41 os doentes na ilha de São Miguel (Lima, 1996: 33). De acordo com a investigação realizada 1, os entrevistados 2 podem ser caracterizados como situados em grupos desprivilegiados com um limitado capital social, cultural, económico e simbólico. Este factor de distribuição social da doença será da maior relevância na compreensão das suas estratégias identitárias e respectivas representações sobre a Doença de Machado-Joseph. * Socióloga. Técnica Superior (Área de Sociologia) em Ponta Delgada, nos Açores. ** Sociólogo. Docente do Departamento de Ciências da Educação, em Angra do Heroísmo, da Universidade dos Açores. 1 Para uma análise mais desenvolvida consultar Soares e Serpa, 2004a) e Soares e Serpa, 2004b). 2 Atendendo aos objectivos da investigação e ao seu objecto de pesquisa, optou-se por uma metodologia de pendor qualitativo, com a realização de entrevistas a doze doentes e a outros informantes privilegiados, assim como observação directa não participante. 4

A experimentação da doença de Machado-Joseph Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Numa sociedade em que o auto-controlo é um valor importante, a Doença de Machado-Joseph representa uma progressiva dificuldade na realização das actividades do dia-a-dia, com deficiências relativas ao corpo que resultam em incapacidades de desempenho nas interacções sociais, implicando uma profunda aprendizagem por parte do doente. Uma constante relatada por todos os entrevistados é a crescente dificuldade em andar, em movimentar-se, e em pegar em objectos por falta de controlo corporal, o que dificulta ou impossibilita a realização de actos quotidianos comuns. Após a identificação e visibilidade da doença, verifica-se a manutenção de uma relação conflitual com o corpo, vivendo o actor numa permanente angústia, com a deterioração do estado corporal. No sentir a sua doença, o doente pode manifestar uma sensação de impureza ou de auto-culpabilização. Daí que a preocupação de gestão da doença possa estar presentes a níveis muito profundos, manifestando estes doentes um grande interesse por questões alimentares, medicamentosas e de domínio corporal. É desta forma que se pode compreender a insistência na necessidade de cuidado alimentar e de frequentar as sessões de fisioterapia que lhes permite uma sensação de domínio sobre o corpo, na procura de tentar seguir e dominar a evolução da sua doença. Na experimentação da sua doença, com a fraqueza física inerente, para além dos aspectos evidentes de sofrimento físico e psíquico, a doença também implica uma perda da capacidade produtiva e económica. Uma das dimensões sublinhadas é a incapacidade para o trabalho, facto que envergonha o doente e é considerado socialmente desclassificador, verificando-se no seu discurso desgosto em ter de deixar de trabalhar. Este facto pode ser compreendido tendo em conta que o trabalho representa um factor nuclear modelador da valorização social do doente, contribuindo para atribuir um sentimento de identidade esperada aos olhos dos outros e de auto-estima perante si próprio. A doença aumenta a vulnerabilidade social, tendo profundas consequências económicas, sociais e familiares, implicando um forte apoio como forma de minorar o sofrimento do doente. Os apoios institucionais a indivíduos portadores da Doença de Machado-Joseph recenseados nos centros de saúde da Região Autónoma dos Açores encontram-se formalizados no Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A de 21 de Outubro e no Decreto Regulamentar Regional nº 9/93/A de 6 de Abril, onde é garantido o acesso a uma pensão de invalidez no âmbito do regime geral da Segurança Social, desde que sofram de uma incapacidade funcional igual ou superior a 70%, nos termos da Tabela Nacional de Incapacidades. Num determinado momento da evolução da doença, um dos familiares próximos pode ser levado pelos pais a deixar o emprego ou a escola para auxiliar os doentes (sendo chamados de cuidadores ). Está, ainda, garantido um subsídio de acompanhante aos doentes que sejam reconhecidos como incapacitados funcionais a 70% ou que deixem de ter a capacidade de locomoção e que atinge onze mil escudos mensais, valor irrisório para contratar alguém do exterior da família. Pode-se concluir que a Doença de Machado-Joseph, vista como uma doença das classes mais desfavorecidas, com a sua degeneração corporal a um nível muito elevado e consequente redução das capacidades relacionais e de resposta às expectativas sociais, implica uma auto-imagem negativa, verificando-se a diminuição da auto-estima e a desestruturação do controlo sobre a vida do doente. Deste modo, dá-se uma redução drástica da rede de contactos, a tal ponto intensa que podemos falar de isolamento social. Esta doença implica uma ruptura na vivência do quotidiano exigindo uma ressocialização do doente às novas condições, obrigando-o a uma redefinição das suas expectativas e projectos de vida, implicando, por isso, uma afectação de recursos, sendo que as condições concretas de existência e as representações constituem-se como elementos determinantes na definição das suas acções. 5

As representações da Doença de Machado-Joseph Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Os estigmas tendem a evocar sentimentos de medo e de repulsa e a serem associados a pessoas com um conjunto de atributos negativos (Goffman, 1988). Como exemplo de uma conotação moral negativa, apresenta-se como uma regularidade digna de nota a acusação, feita pela população em geral, de os doentes estarem alcoolizados ou bêbedos. Tal compreende-se devido ao acentuado desequilíbrio no andar, o que nos permite considerar que a interiorização da analogia entre a Doença de Machado-Joseph e o alcoolismo se encontra profundamente enraizada na comunidade micaelense. As explicações e interpretações populares da enfermidade encontram-se presentes na comunidade, tratando-se de uma dimensão não controlada pelo discurso médico. Verificamos a existência da designação de siclíticos (portadores de sífilis) aos doentes de Machado-Joseph por parte de alguns entrevistados. Acontece que a sífilis, não sendo tratada, se desenvolve progressivamente, em que a última fase (a mais avançada) é designada de sífilis terciária, a fase mais difícil de tratar. É nessa terceira fase que os doentes começam a sentir sintomas visíveis e a sífilis pode provocar tonturas, desequilíbrio no andar, alterações de marcha e paralisias musculares, sintomas esses muito semelhantes ao da Doença de Machado-Joseph, daí surgindo a associação da Doença de Machado-Joseph à sífilis. Desta forma se compreende que a Doença de Machado-Joseph seja sentida, pelo menos moralmente, como contagiosa, sendo um factor muito importante a possibilidade de culpabilização individual ao poder ser considerada uma doença de carácter sexual, surgindo o medo do contágio, o que contribui para o surgimento de processos de segregação social na procura de evitar ou pelo menos reduzir a frequência e a amplitude das relações sociais com o doente. Portador de uma identidade perturbada provocada pela visibilidade pública da sua doença, o doente (vivendo uma experiência de ruptura pessoal, profissional e social) procura uma reorientação das suas estratégias identitárias neste processo de erosão biográfica. As manipulações do estigma Em relação às estratégias identitárias, o que se verifica é que estes doentes sentem imensas e profundas dificuldades em intervir sobre a sua própria identidade, em virtude quer do seu reduzido capital, a todos os níveis, quer pela impossibilidade de, a partir de certa altura, disfarçar a presença da Doença de Machado-Joseph. As estratégias dos doentes de Machado-Joseph identificadas na primeira fase, quando a doença ainda não é conhecida pela comunidade, são essencialmente manobras defensivas, como a indisponibilidade para frequentar as consultas, de forma a afastar ou retardar o processo de estigmatização. Na fase seguinte, verificam-se estratégias de fuga. O doente estigmatizado (con) vive num ambiente de tensão, com uma permanente pressão psicológica, com perda da auto-estima e desestruturação do controlo sobre a sua vida, o que origina profundas consequências psicológicas e emocionais, com uma tendência para o fechamento sobre si mesmo. Isto acontece num contexto de ruptura com o modo de vida anterior à doença, com uma crescente dependência do doente no seu dia-a-dia. Verifica-se, assim, uma drástica modificação no contacto social com a visibilidade da doença, com a perda de relações sociais, surgindo a desvalorização e o descrédito pessoal, familiar e social. Tratam-se de factores que têm profundas consequências para estes doentes e que aumentam a sua vulnerabilidade. O facto de esta doença incidir primordialmente sobre grupos desprivilegiados com um reduzido capital escolar, propicia um particular agravamento da sua situação ao contribuir para a redução das suas oportunidades de valorização e dignificação resultando, deste modo, numa forma de exclusão social. 6

Nesta situação de estigmatização, verifica-se uma inadaptação social com a redução e mesmo ruptura dos laços sociais, acabando por ser impossível ao doente investir na construção da sua autonomia. Conclusões A Doença de Machado-Joseph provoca mudanças radicais nas relações interpessoais e profissionais que facilitam o desequilíbrio económico e social. Esta doença também resulta numa forma de exclusão social ao contribuir para a perda de oportunidades sociais com a atribuição de um estatuto de estigmatizado, onde a perspectiva da morte é algo que está sempre presente. Como a Doença de Machado-Joseph provoca uma desqualificação social, com um progressivo afastamento dos outros, o doente sente-se impotente, manifestando um sentimento de frustração perante a sua exclusão, numa situação, em última instância, de morte social. Nesta análise, conclui-se pela necessidade de uma particular sensibilização de todos os agentes intervenientes, na procura de uma maior responsabilização individual do próprio doente, através de políticas de acompanhamento e de inclusão social, visando a defesa dos seus direitos sociais (e da respectiva família) de uma forma integrada e integradora. Tudo isto implica um trabalho de maior envolvimento e participação da família do doente de Machado-Joseph neste processo, numa intervenção que permita o desenvolvimento de redes de apoio formal e informal (já existentes ou potenciais), possibilitando, deste modo, a redução dos estereótipos negativos associados a estes doentes e dos factores de descrédito identitário por si vividos. A Doença de Machado-Joseph deve ser compreendida como construção social (Carapinheiro, 1986), produzida por indivíduos socialmente localizados, perpetuamente redefinida, experimentada e interpretada, resultando das interacções entre os actores e o contexto situacional no qual se inserem, sendo redutor encará-la somente na sua dimensão biológica. Como implicação, no que concerne à área das políticas públicas, no domínio da saúde e da inclusão social, verifica-se a necessidade da adopção de variáveis sociais na apreensão da gestão da identidade por parte do doente. Bibliografia CARAPINHEIRO, G. (1986). A Saúde no Contexto da Sociologia. Sociologia - Problemas e Práticas, 1, 9-22. COUTINHO, P. (1993). Doença de Machado-Joseph. Estudo Clínico, Patológico e Epidemiológico de uma Doença Neurológica de Origem Portuguesa. Porto: Laboratórios Bial. Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A de 21 de Outubro. Decreto Regulamentar Regional nº 9/93/A de 6 de Abril. DUBAR, C. (1997). A socialização. Construção das identidades sociais e profissionais. Porto: Porto Editora. (Trabalho original: La socialisation. Construction des identités sociales et professionnelles, publicado em 1991). GOFFMAN, E. (1988). Estigma. Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada (4ª ed.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara. (Trabalho original: Stigma, publicado em 1963) LIMA, M. M. de M. (1996). Doença de Machado-Joseph nos Açores. Estudo Epidemiológico, Biodemográfico e Genético. Tese de doutoramento, Universidade dos Açores, Departamento de Biologia: Ponta Delgada. 7

SOARES, D. M. & SERPA, S. (2004a). As vivências dos doentes de Machado-Joseph. Processos de socialização e de educação na gestão da identidade social. Lisboa: Instituto Mediterrânico, Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. SOARES, D. M. & SERPA, S. (2004b). A Doença de Machado-Joseph. Manipulação de uma identidade ameaçada num processo de erosão biográfica. In Fórum Sociológico, do Instituto de Estudos e de Divulgação Sociológica, Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. (aceite para publicação) 8