ação para a definição



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Transcrição:

U NIVE RSID ADE LUSÍ ADA DE L ISBO A Faculd ade d e Ciências Humanas e Sociais Doutoo rame nto e m Hii stóri a Área Científica de História a da Arte A defesa do património imóvel histórico-artístico no Estado Novo: a contribuição da legislal ação para a definição de uma política patrim monial V. 1 Realizado por: Helena Cristina Marques da Silva Pedreirinho Orientado por: Prof. Doutor Luís Manuel Aguiar de Morais Teixeira Constituiçã ão do Júri: Presidente : Orientador r: Arguente: Arguente: Vogal: Vogal: Prof. Doutorr Eng. Diamantino Freitas Gomes Durão Prof. Doutorr Luís Manuel Aguiar de Morais Teixeira Prof. Doutorr Paulo Alexandre Rodrigues Simões Rodrigues Prof.ª Doutora Maria João Quintas Lopes Baptista Neto Prof. Doutorr Horácio Manuel Pereira Bonifácio Prof. Doutorr Carlos César Lima da d Silva Motta Tese aprovada em: 9 de Dezembro de 2013 Lisboa 2011

Agradecimentos O presente trabalho não teria sido possível sem a contribuição e o apoio de todos os que, de uma forma ou outra, permitiram a pesquisa e a análise indispensáveis à conclusão da presente tese. Por isso, queremos aqui deixar o nosso agradecimento: As nossas primeiras palavras de agradecimento vão para o Professor Doutor Luís Morais de Teixeira, nosso orientador, pela disponibilidade, pelo rigor, pelo estímulo e pelas sugestões que sempre nos foi manifestando. O nosso agradecimento, também, a todos os que nos abriram as portas a fim de concretizar as pesquisas necessárias, em especial, à Dra. Celina Bastos, do Museu Nacional de Arte Antiga; ao Dr. João Santos Vieira e à Dra. Eugénia Costa, do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, à Dra. Maria José Agostinho, Dra. Françoise Le Cunff e Dra. Perpétua, do Arquivo Histórico do Ministério da Educação Nacional, ao Dr. Paulo Tremoceiro, do Arquivo Nacional Torre do Tombo, à Dra. Isilda Oliveira da Silva e ao Dr. Paulo Duarte, do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico; ao Professor Arquitecto Augusto Brandão, da Academia Nacional de Belas Artes Por último, agradeço ao José Manuel, por todo o apoio que sempre me prestou. 3

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Índice geral 1º Volume Resumo 9 Abstract 11 Palavras.chave/Keywords 13 Siglas e abreviaturas 15 Introdução 17 I Parte - Prolegómenos em torno da institucionalização de um sistema de defesa do património edificado 23 1. A consciência patrimonial e a herança liberal 23 1.1. A presença dos valores nacionais e históricos na valorização da consciência patrimonial 26 1.2. O contributo da actividade museológica na preservação da memória colectiva 31 1.3. A valorização do passado como fonte de preservação do património edificado e a necessidade de concretização de mecanismos de tutela 37 1.4. O contributo das comissões de monumentos na qualificação patrimonial 43 1.5. O acto classificativo como instrumento de salvaguarda 48 1.6. A política de intervenção 50 2. O contributo da Primeira República para uma concepção abrangente de defesa património 53 2.1. A vocação educativa do património 54 2.2. A criação de um quadro legal de protecção do património arquitectónico 57 2.3. A concepção teórica versus a realidade prática 67 5

3. A transição política e o contexto social, económico e político 72 3.1. O período da Ditadura (1926-1932) e a definição de um sistema jurídico patrimonial a partir da herança liberal 73 3.2. O mandato de Alfredo de Magalhães 76 3.3. A formação ideológica de Cordeiro Ramos 80 3.4. A reorganização dos serviços artísticos 85 II Parte - A acção do Estado em prol do património edificado: da reforma administrativa 89 1. A institucionalização do regime do Estado Novo 89 1.1. A Tutela do Património Nacional 96 2. A educação ao serviço da ideologia 98 2.1. O Ministério da Educação Nacional 102 2.2. A Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas Artes 117 2.3. A Junta Nacional de Educação 118 2.3.1. A actividade patrimonial 138 2.3.1.1. A definição de orientações 144 2.3.1.2. Uma nova abordagem 151 2.3.2. Os serviços de inspecção 157 2.4. A Academia Nacional de Belas Artes 160 2.4.1. Os pelourinhos 172 2.4.2. O inventário artístico 174 2.4.3. As Missões Estéticas de Férias 178 2.5. A distribuição e descentralização de poderes 190 2.5.1. A representação local 191 2.5.2. Das Comissões Municipais de Arte e Arqueologia 192 2.5.3. Os conservadores de Monumentos 199 2.6. A descoordenação entre tutelas 204 6

III Parte - A Concepção Jurídica como instrumento da Política Patrimonial 217 1. A sustentação jurídica da política patrimonial 217 1.1. A salvaguarda do património como responsabilidade do Estado 220 2. Do processo classificativo 225 2.1. A valoração do património 235 2.1.1. O interesse nacional 236 2.1.2.O valor artístico 239 2.1.3. O valor histórico 241 2.1.4. O valor turístico 242 2.1.5. O valor paisagístico 244 2.2. Aplicação dos critérios valorativos 245 2.3. Classificações genéricas 247 2.3.1.O património defensivo 249 2.4.Os valores concelhios 254 2.5. A Paisagem 262 3. A preservação do património classificado 268 3.1. A ausência de apoios 286 3.2. A política de sanções 289 3.3. A prática de intervenção 293 3.4. As novas funcionalidades 309 3.4.1. A função turística 313 IV Parte - Os novos patrimónios 321 1. As zonas de protecção como ponto de partida de um conceito amplo de património 323 1.1. A protecção no âmbito das áreas envolventes 332 1.2. A responsabilidade dos organismos locais 335 2. Uma perspectiva de conjunto 341 2.1. Vilas e Aldeias: o carácter regional de terra portuguesa 346 7

2.1.1. Vila de Marvão 349 2.1.2. Vila de Óbidos 350 2.1.3. Vila de Ourém 351 2.1.4. Vila de Monsaraz 351 2.1.5. Aldeia de Monsanto 352 2.1.6. Vila de Amarante 353 3. A planificação urbana 354 3.1. Núcleos Históricos e Artísticos 368 3.1.1. Cidade de Évora 369 3.1.2 Baixa Pombalina 370 3.1.3 Cidade de Abrantes 373 3.1.4. Campo dos Mártires da Pátria 373 3.1.5. Miranda do Douro 374 4. Património em meio rural 374 5. A falta de sistematização jurídica 377 V Parte - O processo de adesão à comunidade internacional 383 1. A perspectiva internacional na legislação portuguesa 383 2. A adesão à protecção internacional de obras de arte 395 3. A participação portuguesa nos organismos internacionais 398 3.1. Portugal e a Organização das Nações Unidas 398 3.1.1. O IBI, o ICCROM, e o ICOMOS 400 3. 2. Portugal e o Conselho da Europa 410 Conclusões 414 Legislação 419 Bibliografia 445 8

Resumo O presente trabalho tem como objecto de estudo, o contributo da legislação nacional para a definição de uma política defensora do património histórico-artístico, durante um período da história portuguesa do século XX, a que corresponde o regime político do Estado Novo (1932/1933-1974). Procura-se, a partir do suporte documental constituído pelos diplomas legais publicados durante o período em análise, identificar em que medida o universo normativo produzido durante o período em estudo, interiorizou a evolução conceptual e metodológica no âmbito do património edificado, e se reflectiu na definição de uma política patrimonial por parte do Estado. Partindo de uma análise legislativa, recorre-se, também, à consulta de variados processos de classificação e intervenção no património arquitectónico, no âmbito dos quais se produziram directrizes e orientações que permitem evidenciar o modo se processou o enquadramento teórico e prático do processo patrimonial. A par desta vertente, procura-se contextualizar as medidas de defesa do património edificado no âmbito das instituições que, fazendo parte do sistema orgânico definido pelo Estado, foram parte integrante na forma como a vertente patrimonial evoluiu durante o regime do Estado Novo. E, em paralelo, analisa-se o percurso seguido, no contexto do perfil político e ideológico que caracterizou o Regime. Na medida em que a compreensão dos instrumentos patrimoniais utilizados pelo Regime, é indissociável dos antecedentes históricos, procede-se ao respectivo enquadramento, recuando até ao século XIX, período marcante pelo despontar da consciência patrimonial, e evidenciando a I República pelo que de positivo consagrou à causa patrimonial, nomeadamente, na perspectiva legal. 9

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Abstract The present study is focused in the contribution of national legislation to define the historical and artistic architectural heritage during the Estado Novo period (1932/1933-1974). Using as main documental support the legal acts published during that period, I tried to understand how the evolution of heritage concepts and forms of intervention were processed, and in what way they contributed to the national heritage policy. Besides a legislative point of view, various files of listing and intervention in architectural heritage are analysed, within which were produced the guidelines that reflect how was accomplished the connection between the theoretical and practical heritage process. The safeguard measures are also put in context within the main public institutions, that being part of the administrative organization, were directly involved with built heritage, being responsible for its protection and had an important role in the evolution of issues related with architectural heritage during the Estado Novo. The historical and artistic heritage issues are also analysed in the political and ideological profile that characterized the regime. As the understanding of heritage instruments used by Estado Novo, can not be understood as autonomous from historical antecedents, it is also done its framing, going back to the XIX century, a period marked by the emergence of the awareness of heritage, and putting in evidence the I Republic period, by the important role then devoted to the architectural heritage, namely in the legal perspective. 11

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Palavras-chave Keywords Arquitectura Classificação Estado Novo Ideologia Legislação Nacionalismo Património Propaganda Architecture Listing Estado Novo Ideology Legislation Nationalism Heritage Propaganda 13

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Siglas e Abreviaturas ACMF Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças AHME Arquivo Histórico do Ministério da Educação AN Assembleia Nacional ANBA Academia Nacional de Belas Artes AN/TT Arquivos Nacionais Torre do Tombo AOS Arquivo Oliveira Salazar CAA Conselho de Arte e Arqueologia CC Câmara Corporativa CE Conselho da Europa CIAM Congresso Internacional de Arquitectura Moderna CMAA Comissões Municipais de Arte e Arqueologia CML Câmara Municipal de Lisboa CMN Comissão dos Monumentos Nacionais CPAE Conselho Permanente de Acção Educativa CSBA - Conselho Superior de Belas Artes CSMN Conselho Superior dos Monumentos Nacionais D.G- - Diário do Governo DGAC Direcção-Geral dos Assuntos Culturais DGEMN Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais DGES Direcção-Geral do Ensino Superior, Secundário e Artístico DGESBA Direcção-Geral do Ensino Superior e Belas Artes DGFP Direcção-Geral da Fazenda Pública DGT - Direcção-Geral do Turismo DPC Divisão do Património Cultural ESBAL Escola Superior de Belas Artes de Lisboa ESBAP Escola Superior de Belas Artes do Porto FCG Fundação Calouste Gulbenkian IAC Instituto para a Alta Cultura IBI Instituto Internacional dos Castelos Históricos ICOM Conselho Internacional dos Museus 15

ICOMOS - Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios ICCROM - Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauração dos Bens Culturais IGESPAR - Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico IHRU Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana IPPAR Instituto Português do Património Arquitectónico IPPC Instituto Português do Património Cultural JEN Junta de Educação Nacional JNE Junta Nacional da Educação MEN Ministério da Educação Nacional MIP - Ministério da Instrução Pública MEF Missões Estéticas de Férias MF Ministério das Finanças MNAA Museu Nacional de Arte Antiga MOP Ministério das Obras Públicas MOPC Ministério das Obras Públicas e Comunicações MP Mocidade Portuguesa ONU Organização das Nações Unidas PGU Planos Gerais de Urbanização RAACAP - Real Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses RGEU Regulamento Geral das Edificações Urbanas SEC Secretaria de Estado da Cultura SMN Serviço dos Monumentos Nacionais SNBA Sociedade Nacional de Belas Artes SNI Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo SPN - Secretariado da Propaganda Nacional TNDM Teatro Nacional de D. Maria II TNSC Teatro Nacional de São Carlos UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura 16

Introdução O contributo da legislação publicada durante o Estado Novo, na definição de uma política patrimonial referente, em particular, ao património edificado, foi o tema escolhido para o presente estudo. A opção do tema deveu-se a motivos vários que nos fizerem perceber que a temática e o período cronológico escolhido careciam de um estudo aprofundado que faltava ainda fazer. Percepção que decorreu, também, do estudo efectuado no âmbito da nossa dissertação de mestrado, em que nos debruçámo-nos sobre a evolução dos conceitos de património durante o século XX. Se diversos trabalhos científicos têm vindo a ser publicados, que em muito têm contribuído para a evolução do conhecimento na área dos estudos patrimoniais, nomeadamente, do património arquitectónico, constatámos, porém, que faltava um estudo que tivesse por objecto principal, uma análise dos diplomas jurídicos publicados durante o regime do Estado Novo, de forma a avaliar em que medida a legislação publicada contribuiu para a sustentação de uma política em prol da defesa e preservação do património histórico-artístico nacional. Porquanto a análise de todo o universo patrimonial se tornava uma tarefa demasiado abrangente, optámos por focalizar o nosso estudo no património edificado. Tendo consciência da relevância de todo o século XX na evolução dos conceitos de património e na consciencialização do valor dos bens patrimoniais no contexto da sociedade contemporânea, escolhemos o período referente ao Estado Novo, que decorreu entre 1932/1933 e 1974, como o período em análise, tendo em atenção diversos factores que considerámos relevantes. Abrangendo uma grande parte do século XX, e atendendo às características político-ideológicas do Regime, que encarou o património como um factor de eleição, o período em causa teria todas as condições para constituir um marco na transição de um sistema patrimonial ainda em fase inicial, para um outro patamar em que, evidenciada a sua relevância política, social, económica e cultural, se procuraria definir uma política patrimonial para o futuro. Acresce que o período em estudo se caracterizou por, internacionalmente, registar desenvolvimentos fundamentais nos estudos e conceitos patrimoniais, com incidência, não apenas a nível interno dos Estados, mas visando uma 17

dimensão mais global e universal, os quais deram um contributo decisivo para uma nova etapa de debates sobre o património. Por isso, este foi um período particularmente rico no âmbito do património histórico-artístico, e que só mediante uma ponderação sobre os mecanismos teóricos e práticos adoptados pelo Estado se pode percepcionar a forma como, em Portugal, se equacionou a evolução da temática patrimonial. No entanto, e porque uma análise como a que nos propusemos fazer é indissociável dos antecedentes que tiveram lugar a partir do século XIX e, em especial, a partir da I República, o nosso estudo ampliou-se até ao período de Oitocentos, atendendo aos contributos significativos que, desde então, ocorreram em prol do património nacional. Terminámos o presente estudo em 1974, mas como o fim do Regime não pode ser entendido de uma forma estanque, no que respeita à intervenção junto do património arquitectónico, e tendo em atenção a manutenção da legislação e dos organismos existentes durante uma fase inicial do regime democrático, optámos por fazer referência, em situações pontuais, a processos que se estenderam para além do fim do Estado Novo, mas que reflectem uma continuidade face à prática seguida durante a sua fase final. Ao longo dos últimos anos têm vindo a ser produzidos e publicados diversos estudos que se debruçam sobre a temática do património, e é cada vez maior o número de dissertações de mestrado e teses de doutoramento que se tem dedicado ao assunto, para além de estudos específicos. Neste contexto, existem algumas obras de referência, quer quanto ao tema de estudo, quer quanto ao período cronológico escolhido, que cumpre evidenciar. No que respeita aos estudos que abordaram as questões inerentes ao património, nos períodos antecedentes ao Estado Novo, identificámos o de Paulo Simões Rodrigues, que faz uma análise exaustiva sobre o valor e o significado dos monumentos durante o século XIX e até à implantação da República (Rodrigues; 1998), o de Lúcia Rosas, que aborda essencialmente a temática do restauro em Portugal, tomando como referência a arquitectura religiosa medieval, durante grande parte do período Oitocentista e a fase inicial da Ditadura Militar (Rosas, 1995), e o de Maria Helena Maia (2007), também sobre a temática do património e do restauro. Jorge Custódio (2008) tratou de forma minuciosa a prática de conservação e restauro durante o período da I República, estudo de grande utilidade para a compreensão do tema 18

tratado no nosso trabalho. No entanto, não foi possível aceder em tempo útil ao estudo em causa, tendo muita da informação que tratámos no capítulo I do presente trabalho, decorrido de pesquisas por nós feitas anteriormente. Outros contributos evidenciaram o papel de algumas instituições ou personalidades, como sucedeu com José Chagas que estudou o contributo de Possidónio da Silva (Chagas, 2003), com Ana Cristina Martins, que tratou a Associação dos Arqueólogos Portugueses (Martins, 2005), com Maria Helena Lisboa (2007) e o seu trabalho sobre as Academias e as Escolas de Belas Artes. Estudos mais abrangentes cuidaram de aspectos gerais do património, referindo-se, em particular, Eduardo Esperança (1996), ou de aspectos relacionados com aspectos ideológicos ou de política do Estado Novo, como Ernesto Leal (1997), Sérgio Matos (2008), Ramos do Ó (1993), Fernando Rosas (1992, 1993, 1996), entre outros. Diversas obras focam a história da história de Portugal e a história do Estado Novo, destacandose os nomes de Veríssimo Serrão (1994). Oliveira Marques (1977), José Mattoso (1996), João Medina (1993), Luís Torgal, Fernando Catroga e José Amado Mendes (1996). Sobre o período em estudo, a maioria dos estudos que se debruçaram sobre o tema da salvaguarda do património, trataram do tema, acima de tudo, do ponto de vista da análise dos procedimentos e metodologias de intervenção no património edificado. Domingos Bucho debruçou-se sobre as práticas de restauro arquitectónico, dedicandose, em particular às fortificações do distrito de Portalegre (Bucho, 2000), Nuno Rosmaninho aborda a problemática ideológica e de intervenção urbanística (1996, 2006), José Amador dedicou-se ao tema da gestão do património artístico durante o século XX, no qual se incluem referências a alguns contextos normativos e principais entidades intervenientes (Amador, 2002). Essenciais são os trabalhos de Maria João Neto (1995) e de Miguel Tomé (1998). Apesar de alguns dos estudos referidos aludirem à componente legislativa no âmbito das práticas de intervenção, o tema é tratado de forma marginal e, nessa medida, a abordagem do aspecto legislativo, como definidor de um direito do património, estava por fazer. A nossa investigação centrou-se em diversas fontes escritas, tendo por principal objectivo a documentação existente nos organismos responsáveis pela educação, por ser no seio da tutela educativa que se deviam definir os mecanismos jurídicos aptos a 19

implementar um sistema jurídico de defesa do património nacional. A responsabilidade de outros ministérios junto do património edificado, levou-nos, a pesquisar outras fontes documentais junto da tutela das obras públicas e das finanças. Recorremos, como fontes principais, ao Arquivo Histórico do Ministério da Educação (AHME), ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo (AN/TT), ao Arquivo da Academia Nacional de Belas Artes (AANBA), ao Arquivo do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (AIGESPAR), ao Arquivo do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (AIHRU), ao Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças (ACMF) e ainda, ao Arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga (AMNAA). No Ministério da Educação tivemos acesso aos Fundos da Junta Nacional de Educação (JNE) e da Direcção-Geral do Ensino Superior e Belas Artes (DGESBA) onde encontrámos inúmera documentação referente ao serviço de belas artes, museus e monumentos, e, designadamente, a processos respeitantes a classificações e intervenções no património arquitectónico. O AN/TT revelou-se de extrema importância, desde logo, por conter as actas da JNE. Mas revelou-se também fundamental pela documentação existente no Fundo Salazar, no qual encontrámos documentação relativa a propostas de legislação e assuntos artísticos, bem como correspondência entre o Presidente do Conselho e algumas das figuras de relevo no âmbito da defesa do património nacional. O recurso ao AANBA revelou-se imprescindível, quer pela documentação referente aos períodos cronológicos antecedentes ao Estado Novo, onde se evidenciam as actas e demais documentação relativa às Comissões de Monumentos e ao Conselho de Arte e Arqueologia da 1ª Circunscrição, quer pela actas e demais documentação referente à actividade da Academia durante o Regime, nomeadamente, pelo seu contributo para a inventariação do património nacional ou para o cumprimento do programa das Missões Estéticas de Férias. O AIGESPAR revelou-se também muito importante, porquanto detentor de vasta documentação referente aos processos da JNE, na fase mais tardia do Regime, e que em muito contribui para avaliar a mudança de atitude e a evolução de pensamento no seio daquele organismo. A documentação existente no AIHRU, contendo inúmeros processos da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), foi essencial não só para compreender a interligação com a tutela educativa, como para a compreensão do processo de aproximação às teses e organismos internacionais. Do 20

ACMF recolhemos dados identificativos das avaliações de bens imóveis integrantes do património nacional. No AMNAA consultámos o Fundo José de Figueiredo, personalidade relevante no processo de transição e implementação do Regime. Para além das fontes escritas enunciadas, socorremo-nos de outras fontes escritas impressas, nas quais sobressaem como prioritárias, as fontes de carácter legislativo referentes à temática do património, essencialmente, os diplomas publicados que procuraram definir um quadro regulador da defesa e salvaguarda do património nacional. Neste contexto, consultámos o Diário do Governo (DG), como fonte primordial, bem como os Diários da Assembleia Nacional, onde se puderam identificar intervenções e debates sobre diversas questões de relevo, quer de definição conceptual, quer de prática de intervenção. Outras fontes escritas, impressas ou não, foram consultadas, onde se incluem pareceres, orientações, propostas legislativas, despachos, bem como documentos, manuscritos e impressos, constantes dos fundos arquivistas já referenciados. O presente trabalho está dividido em cinco capítulos, subdivididos em diversos pontos, em função dos assuntos tratados. No primeiro capítulo, Prolegómenos em torno da Institucionalização de um sistema de defesa do património edificado, procurámos fazer uma síntese dos antecedentes históricos que contribuíram para a definição de um regime legal de protecção do património, durante os períodos mais marcantes, ou seja, o período liberal a I República, e, já numa fase de preparação do Regime, a Ditadura. No segundo capítulo, A acção do Estado em prol do património edificado: da reforma administrativa debruçámo-nos sobre a implementação do sistema institucional com competências na área patrimonial, focando, em particular o MEN e os organismos dele dependes, com responsabilidades específicas na contribuição para o fomento do património nacional, como valia nacional e colectiva. No terceiro capítulo, A concepção jurídica como instrumento da política patrimonial tratámos, especificamente, do enquadramento jurídico das questões patrimoniais, procurando evidenciar os critérios jurídicos subjacentes às diversas etapas de defesa do património, apontando os aspectos positivos e negativos das práticas adoptadas. No quarto capítulo, Os Novos Patrimónios, dedicámos a nossa atenção sobre a forma como evoluiu a 21

abordagem dos conceitos de património, mediante a introdução de novas realidades patrimoniais constituintes de uma visão mais ampla de património. Procurámos, na medida do possível, acompanhar a evolução teórica com a apresentação de situações concretas que validavam ou não, as opções jurídicas adoptadas. No quinto e último capítulo, O processo de adesão à comunidade internacional, tivemos em atenção a evolução nacional perante a situação internacional, e o modo como as instâncias nacionais se foram colocando a par com os organismos e com os instrumentos legais internacionais, no seio dos quais se ia consolidando conceitos e metodologias destinadas à concretização de um visão patrimonial que ultrapassava fronteiras. Nas conclusões procurámos, de acordo com os resultados da investigação levada a cabo, evidenciar os novos contributos dados pela presente tese, em que, do ponto de vista da planificação de um enquadramento jurídico e, pese embora a vontade do Estado Novo de se constituir como um regime reformador e regenerador, sobressai uma escassa capacidade de inovação. Com efeito, o Estado optou por dar preferência a um complexo normativo disperso e à margem de uma definição conceptual e metodológica, em detrimento da implementação de um sistema jurídico coerente e eficaz. Nos dois volumes com anexos, insere-se um conjunto de documentação manuscrita e dactilografada, alguma inédita, a qual se julga de interesse como complemento do presente trabalho, servindo como seu suporte documental, nalguns casos e, noutros, como informação adicional que possa, de alguma forma, ser útil para o esclarecimento de questões afins ao tema da presente tese. 22

PARTE I Prolegómenos em torno da institucionalização de um sistema de defesa do património edificado 1. A consciência patrimonial e a herança liberal A fixação de uma cronologia no processo evolutivo de protecção do património histórico-artístico nacional, remete-nos para o século XX como período durante o qual se assistiu a um enorme salto qualitativo na sua compreensão, e na aceitação da sua mais-valia como factor cultural, social e económico. Pode dizer-se que muita coisa mudou: o âmbito da tutela jurídica, as funcionalidades subjacentes, a metodologia de intervenção, a consciência que a sociedade em geral passou a ter, em suma, todo um conjunto de transformações que permitiu que o olhar sobre determinado tipo de bens que são parte do nosso legado histórico e da nossa identidade, se tornasse mais abrangente, quer do ponto de vista do objecto, quer dos sujeitos envolvidos. Ao longo do século passado, o património deixou de ser visto no âmbito restrito de património monumental, pertença dos interesses de pequenas elites esclarecidas, para se tornar num bem que, no seu sentido mais amplo, se tornou inteligível e usufruído pelo colectivo. A compreensão deste processo é, contudo, indissociável das transformações que o passado lhe foi conferindo, e em particular, dos contributos dados pelo séc. XIX, palco de mudanças decisivas do ponto de vista político, cultural, económico e social. Em Portugal, e à semelhança do que se passava na Europa, embora com características decorrentes da especificidade nacional, os debates em torno da corporização de um sistema de protecção jurídica e de intervenção concreta a favor da salvaguarda dos bens nacionais, a que a lei iria conferir o título de monumentais, foram uma inevitabilidade num país carente de mudança em direcção a uma sociedade moderna. Diversos autores publicaram os seus estudos sobre temáticas patrimoniais (quer numa visão parcelar, quer global), durante a época oitocentista, tratando o modo 23

como se desenrolaram as transformações ao longo de todo aquele período 1. No entanto, e sem querer desenvolver este período, tanto mais que ele extravasa o âmbito do nosso estudo, não podemos deixar de o introduzir, já que é fundamental para a análise do património no século XX. Não pretendemos estabelecer qualquer fronteira cronológica que seja entendida como uma demarcação rígida a partir da qual se inicia o processo de consciencialização do património e de alerta para a conservação dos monumentos, mas antes seleccionar um período marcado por vicissitudes políticas de vária ordem e que correspondeu à entrada de Portugal num novo patamar político - ideológico. Neste sentido, tomamos como ponto de partida o novo ciclo político que se iniciou com a revolução liberal de 1820 2, a nossa revolução «possível» e, como tal, incompleta e episódica 3. É evidente que a riqueza do debate ideológico que caracterizou o Portugal de Oitocentos, não exclui a relevância das manifestações patrimoniais que ocorreram em épocas anteriores, de que resultaram medidas concretas de protecção, e que nos elucidam sobre o modo como ao longo da história os homens entenderam os vestígios do passado, hoje assumidos como dotados de expressão cultural 4. Com efeito, é sabido que, após alguns exemplos dispersos mais antigos, e situando-nos no âmbito da adopção de medidas de tutela destinadas a criarem uma moldura legal de protecção, há que recuar ao reinado de D. João V, para encontrar um instrumento jurídico cujos efeitos irão longamente ultrapassar a época em que foi concebido, servindo de suporte à defesa conferida ao património nos primeiros anos de vigência do regime liberal. Falamos do conhecido 1 Sobre este assunto, vd., em particular, RODRIGUES, Paulo Simões. 1998. Património, Identidade e História, O Valor e o Significado dos Monumentos Nacionais no Portugal de Oitocentos. Mas também: MAIA, Maria Helena. 2007. Património e Restauro em Portugal (1825-1880); MARTINS, Ana Cristina. 2005. A Associação dos Arqueólogos portugueses na senda de salvaguarda do património; ROSAS, Lúcia. 1995. Monumentos Pátrios: A arquitectura religiosa medieval património e restauro (1835-1928). 2 Do ponto de vista histórico, a revolução liberal culmina um processo de instauração do liberalismo que se vinha desenhando desde o final do séc. XVIII e que teve grande impulso com as novas ideias trazidas pelas Invasões Francesas, levando à adopção de uma evolução cronológica que tem como ponto de partida o ano de 1807, data da primeira invasão. Nesse sentido, SERRÃO, Joaquim Veríssimo. 2002. História de Portugal, Vol. VII; TORGAL, Luís Reis, ROQUE; João Lourenço. 1993. Introdução. In MATTOSO, José (dir. de). História de Portugal. Vol. V. pp. 12-13. 3 Luís Torgal e João Roque realçam a diferença entre as consequências da Revolução Liberal e a Revolução Francesa. No caso francês, pode-se sim, falar de uma Grande Revolução, que deu início a um novo período histórico. Idem, p. 12 4 SOROMENHO, Miguel, SILVA, Nuno Vassalo, 1993: 22-31; PINTO, E. Vera-Cruz, 1996: pp. 205-251. Os autores identificam, como ponto de partida, as medidas de protecção de edifícios militares tomadas durante a Idade Média, ditadas por razões defensivas e concretizadas por legislação régia, datada do reinado de Afonso X, na qual, para além da obrigação da manutenção de castelos e construções antigas, se obrigavam as populações a prestar trabalho nas respectivas obras de reparação (anadúva). Outros exemplos se vão sucedendo no tempo, demonstrativos da mudança de atitude por parte dos poderes públicos, deixando a conservação dos edifícios de ter apenas uma componente utilitária e de valoração simbólica, para passar a ser um elemento de integração num passado que se ia construindo como referente cultural. 24