O QUINTO POSTULADO APRESENTADO COMO HISTÓRIA DE PROBLEMAS.

Documentos relacionados
UTILIZANDO O GEOGEBRA PARA CONSTRUÇÃO DE MODELOS PLANOS PARA A GEOMETRIA HIPERBÓLICA

Geometria. Roberta Godoi Wik Atique

Uma breve história da Geometria Diferencial (até meados do s

O V postulado de Euclides Romildo da Silva Pina - IME - UFG

A matemática atrás da arte de M. C. Escher

UTILIZANDO O GEOGEBRA PARA CONSTRUÇÃO E EXPLORAÇÃO DE UM MODELO PLANO PARA A GEOMETRIA ELÍPTICA

DOS FUNDAMENTOS DA GEOMETRIA À GEOMETRIA HIPERBÓLICA PLANA: UM ESTUDO A PARTIR DE SUA HISTÓRIA E APOIADO EM UM SOFTWARE

O QUINTO POSTULADO DE EUCLIDES COMO HISTÓRIA DE PROBLEMAS 1

Profa. Andréa Cardoso UNIFAL-MG MATEMÁTICA-LICENCIATURA 2015/1

UMA COMPARAÇÃO CRÍTICA ENTRE A GEOMETRIA EUCLIDIANA E AS GEOMETRIAS NÃO EUCLIDIANAS: PERSPECTIVA PARA O ENSINO DE GEOMETRIA

História da Matemática incorporada à Educação Matemática

Geometria Não-Euclideana

ENCONTRO COM O MUNDO NÃO EUCLIDIANO

Teorema de Ceva AULA. META: O Teorema de Ceva e algumas aplicações. OBJETIVOS: Enunciar e demonstrar o Teorema de Ceva; Aplicar o Teorema de Ceva.

Da Geometria Euclidiana à Teoria da Relatividade Geral

INTRODUÇÃO AO PLANO HIPERBÓLICO COM O GEOGEBRA

Do mito da Geometria Euclidiana ao ensino das Geometrias Não Euclidianas

GEOMETRIA DO TAXI: ALGUMAS DISCUSSÕES COM VISTAS À FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA 1. Fernando Gasparin Fabrin 2.

GEOMETRIA I. Walcy Santos Sala C127 Gab 02

A Geometria Euclidiana

META Introduzir e explorar o conceito de congruência de segmentos e de triângulos.

Lógica Proposicional Parte 3

Como ler Saccheri. Ricardo Bianconi

Um pouco de história. Ariane Piovezan Entringer. Geometria Euclidiana Plana - Introdução

GEOMETRIAS NÃO-EUCLIDIANAS: UMA BREVE INTRODUÇÃO

Introdução à Cosmologia Física

Um Texto de Geometria Hiperbólica

DO MITO DA GEOMETRIA EUCLIDIANA AO ENSINO DAS GEOMETRIAS NÃO EUCLIDIANAS - A EXPERIÊNCIA NO IFFLUMINENSE CAMPUS CAMPOS-CENTRO

Introdução às Geometrias Não Euclidianas na educação básica. Introduction to Nom-Euclidean Geometry in primary education

Expressões Algébricas

Geometria (euclidiana)

LISTA DE EXERCÍCIOS MAT GEOMETRIA E DESENHO GEOMÉTRICO I

Círculos ou circunferências

MAT-230 Diurno 1ª Folha de Exercícios

META Introduzir os axiomas de medição de segmentos e ângulos. OBJETIVOS Determinar o comprimento de um segmento e a distância entre

A FORMA das coisas. Anne Rooney Por Margarete Farias Medeiros Geometria Plana/2017 IFC- Campus Avançado Sombrio

Escola Básica e Secundária da Graciosa. Matemática 9.º Ano Axiomatização das Teorias Matemáticas

Ficha de Trabalho de Matemática Trabalho de Grupo Ano Lectivo 2004/05 Ângulos internos de um triângulo 7.º Ano

UMA RECONSTRUÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DO SURGIMENTO DAS GEOMETRIAS NÃO EUCLIDIANAS

Figura 1 Disco de Poincaré

MAT Geometria Euclidiana Plana. Um pouco de história

Geometria Projetiva. Claudio Esperança Paulo Roma Cavalcanti

QUADRILÁTEROS DE SACCHERI

Uma introdução histórica 1

CONSTRUÇÕES GEOMÉTRICAS FUNDAMENTAIS

GEOMETRIAS NÃO EUCLIDIANAS: O QUE DIZEM AS PESQUISAS REALIZADAS?

Universidade Federal do Rio de Janeiro INSTITUTO DE MATEMÁTICA Departamento de Métodos Matemáticos

MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DA MATEMÁTICA DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO LIETH MARIA MAZIERO

CONSTRUÇÕES GEOMÉTRICAS E DEMONSTRAÇÕES nível 1

Conceitos e Controvérsias

GEOMETRIA DE POSIÇÃO

Aula 7 Complementos. Exercício 1: Em um plano, por um ponto, existe e é única a reta perpendicular

A história das geometrias não euclidianas para formação do professor: uma proposta baseada no uso de vídeos didáticos

Geometrias Não Euclidianas. Zilmara Raupp de Quadros de Oliveira

Geometria Não Euclidiana

III.2 Se os segmentos A B e A B são congruentes ao segmento AB então os segmentos A B e A B também são congruentes.

RETAS E CIRCUNFERÊNCIAS

A Geometria do Planeta Terra

Teorema do ângulo externo e sua consequencias

AS COMPLEXÕES DE LEIBNIZ NOS ELEMENTOS DE EUCLIDES APESENTAÇÃO: RAQUEL ANNA SAPUNARU

Matemática. Nesta aula iremos aprender as. 1 Ponto, reta e plano. 2 Posições relativas de duas retas

Algumas Reexões. Na Sala de Aula

A história do quinto postulado, as geometrias não-euclidianas e suas implicações no pensamento científico

GEOMETRIA DE POSIÇÃO OU GEOMETRIA EUCLIDIANA

Elementos de Lógica Matemática. Uma Breve Iniciação

CONSTRUÇÕES GEOMÉTRICAS E DEMONSTRAÇÕES nível 2

1- Traçar uma perpendicular ao meio de um segmento AB - Método Mediatriz.

CONSTRUÇÕES COM RÉGUA E COMPASSO NÚMEROS CONSTRUTÍVEIS. Público alvo: Público em geral. Pré-requisito: elementos da geometria plana.

POLÍGONOS TRIÂNGULOS E QUADRILÁTEROS

CADERNO DE ATIVIDADES DE GEOMETRIA PLANA DESENHO GEOMÉTRICO. Aluno: nº: turma: Disciplina: Profº: data: Disciplina: Matemática QUESTIONÁRIO

Geometria Espacial de Posição

Plano de Ensino. Identificação. Câmpus de Bauru. Curso Licenciatura em Matemática. Ênfase. Disciplina A - Geometria Plana

Axiomas e Proposições

Geometrias Não-Euclidianas e a Geometria da Relatividade

Curso de Engenharia - UNIVESP Disciplina Matemática - Bimestre 1. Exercícios da semana 1 - vídeo aulas 1 e 2

AS CÔNICAS DE APOLÔNIO

Plano de Trabalho 2. Introdução à Geometria Espacial

1. Quantos são os planos determinados por 4 pontos não coplanares?justifique.

DA GEOMETRIA DE EUCLIDES À GEOMETRIA EUCLIDIANA: A GÊNESE DAS GEOMETRIAS MODERNAS

DESENHO GEOMÉTRICO ETECVAV

Aula 09 (material didático produzido por Paula Rigo)

Física Moderna. Gravitação e Curvatura

4. Posições relativas entre uma reta e um plano

Capítulo O objeto deste livro

Geometria Analítica. Geometria Analítica Geometria É importante compreender a geometria, para dar resposta a questões como: 15/08/2012

Desenho Técnico e CAD Geometria Plana Desenho Geométrico. Geometria Plana Desenho Geométrico. Geometria Plana Desenho Geométrico

GEOMETRIA MÉTRICA ESPACIAL

UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM MATEMÁTICA EM REDE NACIONAL - PROFMAT TALITA MELSONE MARCONDES

DESENHO TÉCNICO ( AULA 02)

O USO DO GEOGEBRA NA INVESTIGAÇÃO DA GEOMETRIA ELÍPTICA. Celina A. A. P. Abar Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- Brasil

Axiomas de Incidência Axiomas de Ordem Axiomas de Congruência Axioma das paralelas Axiomas de Continuidade

Euclides, Geometria e Fundamentos. Geraldo Ávila. Introdução

AFINAL, COMO SURGIRAM AS GEOMETRIAS NÃO EUCLIDIANAS?

NOÇÕES SOBRE ALGUMAS GEOMETRIAS NÃO EUCLIDIANAS

Lista de exercícios sobre triângulos. (Comitê olímpico)

GGM /11/2010 Dirce Uesu Pesco Geometria Espacial

Escola E.B. 2,3 General Serpa Pinto Cinfães Proposta de resolução da ficha formativa nº /2013

U. E. PROF. EDGAR TITO - Turma: 2º ano A Prof. Ranildo Lopes Obrigado pela preferência de nossa ESCOLA!

GEOMETRIA PLANA. Segmentos congruentes: Dois segmentos ou ângulos são congruentes quando têm as mesmas medidas.

Transcrição:

O QUINTO POSTULADO APRESENTADO COMO HISTÓRIA DE PROBLEMAS. Línlya Natássia Sachs Camerlengo de Barbosa Universidade Estadual de Londrina linlyasachs@yahoo.com.br Resumo: Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a forma de apresentar a história do surgimento das geometrias não-euclidianas. Sugerimos aqui a apresentação deste episódio como história de problemas caracterizada pela apresentação da história bem sucedida na resolução do problema em questão e também das tentativas fracassadas e assim o fizemos. Desta forma foi possível apresentar a discussão com respeito ao quinto postulado de Euclides, algumas tentativas de prova e, por fim, a convicção na possibilidade de construção de outras geometrias negando o postulado das paralelas. Palavras-chave: História da Matemática; Quinto Postulado; Geometrias Não-Euclidianas. 1. A história O objetivo desta pesquisa é fazer uma reflexão sobre o surgimento das geometrias não-euclidianas e apresentar esta história como história de problemas em que a história caracteriza-se pela apresentação de problemas e não pela apresentação de períodos. Por que uma reconstrução histórica do surgimento das geometrias não-euclidianas? Seria a história um elemento importante no ensino de matemática? D Ambrosio (1996) ressalta que para teorias e práticas matemáticas serem vistas como atividades humanas desenvolvidas e utilizadas em um contexto específico a história da matemática é fundamental. Matthews apresenta alguns motivos pelos quais a história da ciência pode contribuir para seu ensino: (1) motiva e atrai os alunos; (2) humaniza a matéria; (3) promove uma compreensão melhor dos conceitos científicos por traçar seu desenvolvimento e aperfeiçoamento; 1

(4) há um valor intrínseco em se compreender certos episódios fundamentais na história da ciência (...); (5) demonstra que a ciência é mutável e instável e que, por isso, o pensamento científico atual está sujeito a transformações que (6) se opõem a ideologia cientificista; (7) a história permite uma compreensão mais profícua do método científico e apresenta os padrões de mudança na metodologia vigente. (MATTHEWS, 1995, p.172-173) É possível ainda fazer uma distinção entre a natureza dos argumentos a favor da participação da história no processo de ensino-aprendizagem da Matemática: os argumentos de natureza epistemológica e os argumentos de natureza ética. Os argumentos de natureza epistemológica focalizam o conhecimento matemático propriamente dito e justificam que a história seja útil ao estudante para que ele compreenda e se aproprie da própria Matemática, ou seja, a Matemática neste caso é vista como tendo um fim em si e por si mesma. Os argumentos de natureza ética, por sua vez, sugerem que o conhecimento matemático seja um meio para a construção de valores e atitudes que visem a formação integral do cidadão. É importante lembrar que os argumentos de naturezas epistemológica e ética não são necessariamente excludentes e a suas distinções não são totalmente rígidas (MIGUEL; MIORIM, 2005). 2. Maneiras de se contar a história Na área das ciências biológicas, Ernst Mayr faz uma classificação para as possíveis formas de se reconstruir história, especificamente história da ciência. Para Mayr (1998) há cinco maneiras distintas de reconstrução histórica, sendo elas a história lexicográfica, a cronológica, a biográfica, a cultural e sociológica e a história de problemas. A história lexicográfica tem um caráter essencialmente descritivo, apresentando um conjunto de dados o quê, quando, onde, desfavorecendo desta maneira a possibilidade de reflexão. A história cronológica tem um caráter temporal, linear e evolutivo; pode acontecer que em uma abordagem cronológica seja ocultado o problema científico pela apresentação linear dos fatos. A história biográfica procura apresentar progressos da ciência por meio das vidas 2

de alguns cientistas e, desta maneira, criam-se mitos como a genialidade de cientistas isolados e são esquecidos muitos personagens que foram importantes para tais progressos. A história cultural e sociológica descreve a ciência como forma de atividade humana vinculada ao meio intelectual e institucional da época, mas para Mayr (1998) as atividades humanas ligadas aos aspectos sociais e intelectuais são muito diversificadas e não condizem com os objetivos da história da ciência. A história de problemas caracteriza-se pelo estudo dos problemas e não pelos períodos; procura-se apresentar a história bem sucedida na resolução do problema em questão e também as tentativas fracassadas. Miguel e Miorim (2005) apresentam a concepção de história-problema que se assemelha à história de problemas de Mayr (1998), porém com um caráter educacional: uma história que põe problemas, isto é, que parte de problemas que se manifestam em práticas pedagógicas e investigativas do presente e que preocupam, de certa forma, o professor de Matemática e/ou o pesquisador em educação matemática do presente (MIGUEL; MIORIM, 2005, p.160). Opõe-se à história-crônica, de caráter estritamente factual, que ao ser apresentada em sala de aula ou em livros didáticos, na forma de acessório, sobrecarrega o currículo com novas informações factuais e apresenta a superfluidade do elemento histórico aos estudantes. É com as concepções de história-problema (MIGUEL; MIORIM, 2005) e de história de problemas (MAYR, 1998) que faremos a apresentação da história do surgimento de geometrias não-euclidianas. Cabe ressaltar que o nosso objetivo não é fazer uma investigação histórica, mas uma investigação historiográfica do aparecimento das geometrias não-euclidianas, para a qual utilizaremos fontes históricas e historiográficas sobre o tema. 3. O Quinto Postulado como história de problema 3.1. Euclides e Os Elementos A obra Os Elementos é atribuída a Euclides, mas pouco se sabe sobre ele. Há três grandes hipóteses, apresentadas por Nobre (2009): Euclides foi realmente quem escreveu esta obra e outros trabalhos; Euclides foi o líder de um grupo de matemáticos de 3

Alexandria, e juntos escreveram vários trabalhos mas assinavam em seu nome; as obras atribuídas a Euclides foram escritas por um grupo de matemáticos que adotou o nome de Euclides em referência a Euclides de Megara, que vivera cerca de cem anos antes. Acontece com Euclides o mesmo que com outros matemáticos da Grécia Antiga: restamnos apenas macérrimas informações sobre a vida e a personalidade do homem. (BICUDO, 2009). Da mesma forma, não se sabe ao certo o que pertencia de fato ao original de Os Elementos, já que não existe nenhum texto original da obra. Existem apenas os manuscritos em grego, latim e árabe que chegaram à Europa no século XII. Por isto, não se sabe o que pertencia ao original e o que pertencia aos vários comentaristas, tradutores e copistas (CHABERT, 1997, p.287). De qualquer maneira, a importância desta obra é indiscutível: apenas a Bíblia tem mais edições no mundo ocidental que Os Elementos (KATZ, 1998, p.59) e antes da imprensa, cópias manuscritas dominavam o ensino de geometria (STRUIK, 1992, p.90). O primeiro dos treze livros de Os Elementos contém 23 definições, 5 postulados e 9 noções comuns. São os postulados: 1. Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto. 2. Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta. 3. E, como todo centro e distância, descrever um círculo. 4. E serem iguais entre si todos os ângulos retos. 5. E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça os ângulos interiores e do mesmo lado menores do que dois retos, sendo prolongadas as duas retas, ilimitadamente, encontram-se no lado no qual estão os menores que dois retos. (EUCLIDES, 2009) O quinto postulado, também conhecido como o postulado das paralelas, parece ter sido evitado por Euclides: Proclus (século V), grande comentarista de Os Elementos, notou que as primeiras 28 proposições são demonstradas sem que ela fosse citada. Desde os tempos de Euclides, inúmeras foram as tentativas de provar o quinto postulado, 4

transformando-o assim em uma proposição. Apresentaremos aqui algumas destas tentativas de prova. 3.2. Tentativas de prova É interessante notar por que as tentativas falharam. Em geral, elas se utilizam de argumentos equivalentes ao quinto postulado, tornando as provas inválidas. Comecemos pelo mundo árabe. Dois matemáticos iranianos merecem destaque: Omar al-khayyam (1048-1131) e Nasir ad-din al-tusi (1201-1274). Como nos mostra Charbert (1997), al-khayyam criou oito novas proposições para provar o postulado das paralelas. Uma delas dizia que se um quadrilátero simétrico possui dois ângulos retos, então os outros dois são também ângulos retos. O problema estava justamente nesta proposição: equivalente ao quinto postulado. Este quadrilátero foi o ponto de partida para os estudos de Saccheri no início do século XVIII. Nasir ad-din, da cidade de Tus, publicou em 1250 sua tentativa de prova do quinto postulado no livro intitulado Discussão que elimina dúvidas sobre as linhas paralelas. Ele considerou o mesmo quadrilátero de al-khayyam. Em um manuscrito datado de 1298 (provavelmente escrito pelo seu filho) há um novo argumento, porém também equivalente ao quinto postulado: se uma linha GH é perpendicular a CD em H e oblíqua a AB em G, então as perpendiculares são maiores do que GH sobre o lado em que GH faz um ângulo obtuso com AB e menores do outro lado (KATZ, 1998, p.271). Para Charbert (1997), os primeiros comentaristas europeus na geometria na época do Renascimento, como Clavius, Cataldi, Borelli e Vitale, não trouxeram nada novo de fato aos resultados gregos e árabes. Apenas John Wallis (1616-1703) produziu realmente uma contribuição original. Wallis propôs um novo postulado, aparentemente mais plausível, para realizar a prova: dado um triângulo ABC e um segmento de reta DE, existe um triângulo DEF tal que ABC e DEF são semelhantes. Para a infelicidade de Wallis, este é mais um argumento equivalente ao quinto postulado. 5

Giovanni Girolamo Saccheri (1667-1733) foi um padre jesuíta e lógico italiano. Um pouco antes de morrer, publicou o livro Euclides livre de toda falha, que não foi muito reconhecido, até um século e meio depois, quando Beltrami o redescobriu (GREENBERG, 2001, p.154). A ideia de Saccheri era provar o quinto postulado usando a redução ao absurdo: assumia a negação do postulado das paralelas e tentava chegar a uma contradição. Utilizou a hipótese (já utilizada por Omar al-khayyam e por Nasir ad-din al-tusi) de que se um quadrilátero simétrico possui dois ângulos retos, os outros dois são iguais entre si. Há, portanto, três possibilidades: a. ambos serem ângulos retos; b. ambos serem ângulos obtusos; c. ambos serem ângulos agudos. Para provar que a primeira opção é a verdadeira, Saccheri tenta provar que as outras duas são falsas. A hipótese dos ângulos obtusos ele afirma ser falsa, pois contradiz o Teorema de Saccheri-Legendre (A soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é menor ou igual a 180º). Mas não conseguiu encontrar contradição na hipótese dos ângulos agudos. Disse então: A hipótese do ângulo agudo é falsa porque é repugnante à natureza da linha reta. Tenta assim chegar à conclusão de que a soma dos ângulos internos de um quadrilátero é igual à quatro ângulos retos, o que equivale ao quinto postulado (GREENBERG, 2001, p.155). Adrien-Marie Legendre (1752-1833) propôs várias provas para o quinto postulado de Euclides. Lobachevsky estudou estas tentativas de prova e elas foram o que talvez finalmente o convenceu da realidade da geometria não-euclidiana (CHARBERT, 1997). Em uma das provas, Legendre concluiu que a soma dos três ângulos internos de um triângulo é igual a dois ângulos retos. Há, porém, um argumento em sua prova que não está demonstrado: por um ponto qualquer situado no interior de um ângulo pode-se desenhar uma reta que corta os dois lados do ângulo. E este também é um argumento equivalente ao quinto postulado. Por isso, a prova de Legendre não é válida. 6

Estas são algumas tentativas de prova do quinto postulado de Os Elementos. Muitas outras não foram aqui apresentadas, como as de Proclus, no século V, Clairaut e Lambert, no século XVIII, Taurinus e Bolyai, no século XIX. 3.3. Geometrias não-euclidianas Muitas vezes algo interessante ocorre na ciência: quando o momento histórico é favorável para uma nova ideia se manifestar, esta nova ideia pode ocorrer a várias pessoas mais ou menos ao mesmo tempo. Foi isto que aconteceu na descoberta do Cálculo no século XVIII por Newton na Inglaterra e por Leibiniz na Alemanha. O mesmo aconteceu no século XIX com a descoberta das geometrias não-euclidianas (GREENBERG, 2001, p.177). Notou-se que o quinto postulado de Euclides além de não poder ser provado de fato tratava-se de um postulado poderia ser negado sem que contradições ocorressem. Três matemáticos merecem grande destaque neste episódio: János Bolyai (1802-1860), Carl Friedrich Gauss (1777-1855) e Nikolai Ivanovich Lobachevsky (1792-1856). Apresentaremos aqui um pouco do desenvolvimento da geometria não-euclidiana de Lobachevsky. Matemático russo, ingressou na Universidade de Kazan aos 14 anos e lá se tornou professor aos 21. Em 1827 tornou-se reitor da universidade e em 1846 foi demitido sem explicações. Ficou cego e para escrever seu último livro, precisou ditá-lo (KATZ, 1998, p.775). Lobachevsky, desde os anos de 1820, estava convicto da possibilidade de uma geometria sem que o quinto postulado fosse afirmado. Em 1829 publicou seu trabalho sobre a geometria não-euclidiana, inicialmente chamada de geometria imaginária. No continente europeu sua obra recebeu pouca atenção por ser escrita em russo. Um jornal russo atacou Lobachevsky, após sua publicação, como o insolente de falsas invenções (GREENBERG, 2001, p.184). 7

Lobachevsky propôs a geometria hiperbólica, sendo que o postulado das paralelas foi substituído por: Para toda reta l e todo ponto P fora de l, há pelo menos duas paralelas distintas a l que passam por P. Importantes consequências são decorrentes deste axioma hiperbólico: por P. Para toda reta l e todo ponto P fora de l, há infinitas paralelas a l que passam Retângulos não existem a existência de retângulos implica no postulado das paralelas de Hilbert (Para toda reta l e todo ponto P fora de l, há no máximo uma reta m que passa por P, tal que m é paralela a l). internos menor que 180º. Na geometria hiperbólica, todos os triângulos têm a soma dos ângulos Por consequência, na geometria hiperbólica todos os quadriláteros convexos têm a soma dos ângulos internos menor que 360º. Não existem triângulos semelhantes não congruentes, ou seja, é impossível ampliar ou reduzir um triângulo sem distorção. O ângulo determina o tamanho do lado de um triângulo. Apresentaremos três modelos de geometria hiperbólica: de Beltrami-Klein e os dois modelos de Poincaré. O modelo proposto por Felix Klein (1849-1925) é chamado de modelo de Beltrami- Klein, pois é semelhante ao modelo proposto por Eugenio Beltrami (1835-1900). Neste modelo, consideramos o círculo γ, com centro em O e raio OR. Os pontos são os pontos interiores a γ; retas são as cordas abertas; retas paralelas são retas que não têm ponto em comum. Henri Poincaré (1854-1912), importante matemático e filósofo francês, dominou praticamente todos os campos da matemática pura e aplicada. Um dos modelos de geometria hiperbólica proposto por ele é conhecido como o modelo do disco de Poincaré. 8

Consideramos também o círculo γ, com centro em O e raio OR. Pontos são os pontos interiores a γ; retas podem ser cordas abertas que passam pelo centro O e arcos abertos de círculos ortogonais a γ; retas paralelas são retas que não têm ponto em comum. O outro modelo de Poincaré, o modelo do semi-plano é definido pelo semi-plano aberto delimitado pela reta D. Pontos são os pontos no semi-plano aberto; retas são semiretas perpendiculares à reta D e semi-círculos cujo centro está em D; retas paralelas são retas que não têm ponto em comum. Existem, além das geometrias euclidianas e das geometrias hiperbólicas, as geometrias elípticas, que não apresentaremos neste trabalho. Vale pontuar que neste caso, o postulado das paralelas é substituído por: Não há reta paralela a l que passe por um ponto P fora de l. Como pudemos ver, na primeira metade do século XIX cresceu a convicção em duas coisas: não é possível provar o quinto postulado sem admitir outro postulado equivalente a ele e é possível construir geometrias sem manter o quinto postulado (CHARBERT, 1997). Surgiu então a dúvida sobre a consistência da geometria hiperbólica, ou seja, se existem contradições ou não. Beltrami propôs o teorema metamatemático (Se a geometria euclidiana é consistente, então a geometria hiperbólica também é) e o provou em 1868, com o auxílio da geometria diferencial. Este teorema também foi provado por Klein em 1871, mas de outra forma: por meio da geometria projetiva. 4. Conclusão Diante de argumentos favoráveis à inserção da história no ensino da matemática, sugerimos aqui uma maneira de apresentá-la história de problemas e o fizemos com o episódio do surgimento das geometrias não-euclidianas. Desta maneira mostramos um pouco da discussão sobre o quinto postulado de Euclides, algumas das muitas tentativas de prová-lo e, por fim, a convicção na possibilidade de construir novas geometrias sem manter o postulado das paralelas. 9

5. Referências BICUDO, I. Introdução e tradução. In: EUCLIDES, Os Elementos. São Paulo: Editora Unesp, 2009. CHARBERT, J-L. Proving the Fifth Postulate: True or False? In: History of Mathematics, Histories of Problems. Paris: Ellipses, 1997. p. 285-305. 1996. 2009. D AMBRÓSIO, U. Educação Matemática: da Teoria à Prática. Campinas: Papirus, EUCLIDES. Os Elementos. Tradução de I. Bicudo. São Paulo: Editora Unesp, GREENBERG, M. J. Euclidean and Non-Euclidean Geometries: Development and History. 3 ed. New York: Freeman, 2001. 1998. KATZ, V. J. A History of Mathematics: an introduction. 2 ed. Addison-Wesley, MATTHEWS, M. R., História, Filosofia e Ensino de Ciências: a Tendência Atual de Reaproximação. Trad. por Claudia Mesquita de Andrade. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v.12, n.3, 164-214, 1995. MAYR, E. O Desenvolvimento do Pensamento Biológico. Brasília: UNB. 1998. MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. História na Educação Matemática: propostas e desafios. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. NOBRE, S. R. Introdução Histórica às Geometrias Não-Euclidianas uma proposta pedagógica. Belém: SBHMt, 2009. (Coleção História da Matemática para Professores, 2). STRUIK, D. J. História Concisa das Matemáticas. Tradução de J. C. S. Guerreiro. Lisboa: Gradiva, 1992. 10

ZANETIK, J. Física e Literatura: construindo uma ponte entre as duas culturas. História, Ciências, Saúde Manguinhos. Rio de Janeiro, v.13, Out 2006. Disponível em <http://www.scielo.br>. Acesso em 24 jan. 2009. 11