Uma lata (1) existe para conter algo, Mas quando o poeta diz lata (2) Pode estar querendo dizer o incontível



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Transcrição:

PROPOSTA DE ANÁLISE DO POEMA METÁFORA, DE GILBERTO GIL (ANALYSIS PROPOSITION FOR GILBERTO GIL S POEM METÁFORA ) Cláudia ASSAD Alvares (UFRJ - USP) ABSTRACT: This work intends to analyze Gilberto Gil s poem Metáfora considering two unified perspectives: the first one, which is horizontal and lineal, is set at the present time; the second one, vertical and staked out, which is come across when dissecting Metáfora, attempts to mark out the course the words meta and lata take. The lexical course taken will be retrieved through the study of paradox as a theoretical ground. The study of paradox integrates the whole of the theoretical texture devised by Gregory Bateson (1972). KEYWORDS: paradox; frame; metaphor; lata ; meta 0. Introdução Uma lata (1) existe para conter algo, Mas quando o poeta diz lata (2) Pode estar querendo dizer o incontível Uma meta (1) existe para ser um alvo, Mas quando o poeta diz meta (2) Pode estar querendo dizer o inatingível Por isso não se meta (3) a exigir do poeta Que determine o conteúdo em sua lata (3) Na lata (4) do poeta tudo-nada cabe, Pois ao poeta cabe fazer O incabível Deixe a meta (4) do poeta, não discuta, Deixe a sua meta (5) fora da disputa, Meta (6) dentro e fora, lata (5) absoluta, Deixe-a simplesmente metáfora Metáfora, enquanto atividade criadora, contém diversas injunções paradoxais, afinal, trata-se de "conter" o "incontível", "atingir" o "inatingível" e caber o "tudo-nada", o "incabível". Tais injunções são comparáveis às que ocorrem no campo da pragmática e distinguem-se das injunções contraditórias em um aspecto fundamental: a possibilidade de escolha; enquanto na contradição simples a escolha é logicamente possível (por exemplo, um motorista que se depare na estrada com duas placas, uma ao lado da outra, com as seguintes mensagens, respectivamente impressas: Pare e Não pare, pode optar por parar ou não sem maiores prejuízos), no paradoxo, o que se presencia é a falência da própria escolha. Veja-se o seguinte exemplo (Watzlawick, Beavin e Jackson, 1993): Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 1175-1180, 2004. [ 1175 / 1180 ]

Os enunciados abaixo estão sintática e semanticamente corretos: (1) Chicago é uma cidade populosa. (2) chicago é um trissílabo. O enunciado (1) está em linguagem objetal; refere-se a um objeto (no caso, uma cidade); já o enunciado (2) é um meta-enunciado; refere-se à palavra chicago e está, portanto, em metalinguagem. Os dois enunciados estão em níveis claramente distintos e as aspas sinalizam tal distinção. Sabemos que a mistura de níveis gera o paradoxo; vamos agora contextualizar este exemplo: suponha-se que alguém resolva condensar esses dois enunciados num terceiro e tente escrevê-lo corretamente ; é claro que não vai conseguir, pois, para fazêlo, teria de escrever chicago com e sem as aspas, ao mesmo tempo, o que é virtualmente impossível. Portanto, o enunciado condensado: (3) Chicago é uma cidade populosa e um trissílabo, forçosamente, permaneceria incorreto. 1. O enquadre psicológico de Gregory Bateson Bateson, G. (1972:178), ao estudar o enquadre psicológico, afirma que a grande maioria das mensagens, tanto metalingüísticas como metacomunicativas, permanece implícita; (...). Uma cena presenciada pelo autor em janeiro de 1952, no zoológico de Fleishacker, em São Francisco, foi o primeiro passo em direção à formulação de sua hipótese de pesquisa. A cena era bastante simples: dois macacos brincando, envolvidos em uma seqüência interativa que simulava um combate. Segundo o autor, para um observador humano, era claro que aquela seqüência, no todo, não era um combate; do mesmo modo, era evidente para esse mesmo observador que, também para os macacos, aquilo era não-combate. Bateson então conclui que esse fenômeno, o da brincadeira, só seria possível se os participantes envolvidos na interação, no caso os macacos, fossem capazes de algum grau de metacomunicação; por outras palavras, se de algum modo pudessem transmitir um ao outro a mensagem isto é uma brincadeira : (...) devemos encarar, então, duas peculiaridades próprias da brincadeira: (A) as mensagens ou sinais trocados durante a brincadeira são de algum modo não-verdadeiros, ou nãointencionados; e (B) aquilo que é denotado por esses sinais é nãoexistente. Bateson, G. (1972:187). Bateson usa suas análises e conclusões sobre a brincadeira como um exemplo introdutório na discussão de enquadres e contextos. Sua hipótese é a de que a mensagem isto é brincadeira define um enquadre paradoxal comparável ao paradoxo de Epimenides. O autor diagrama esse enquadre do seguinte modo: Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 1175-1180, 2004. [ 1176 / 1180 ]

Todos os enunciados dentro deste quadro são inverdades EU TE AMO EU TE ODEIO O enquadre paradoxal de Bateson A primeira proposição deste quadro contradiz a si mesma. Se o primeiro enunciado for verdadeiro, então deve ser falso. Se for falso, deve ser verdadeiro. Mas a primeira proposição inclui todas as outras que estão dentro do enquadre. Assim, se a primeira proposição for falsa, todas as outras devem ser verdadeiras; e vice-versa, se for verdadeira, todas as outras devem ser falsas. Bateson, G. (1972:184). Pode-se notar, inicialmente, que a primeira proposição ( todos os enunciados dentro deste quadro são inverdades ) contradiz a si mesma por estar dentro do quadro e, portanto, ela própria é uma inverdade. De acordo com essa proposição, se o primeiro enunciado ( Eu te amo ) for verdadeiro, então deve ser falso, pois está dentro do quadro e é, portanto, uma inverdade; aplicando-se o mesmo raciocínio chega-se à conclusão de que se for falso, então deve ser verdadeiro. Por outro lado, a primeira proposição inclui as outras ( todos os enunciados... ) e, por conseguinte, se ela for falsa os enunciados dentro do quadro ( Eu te amo e Eu te odeio ) devem ser verdadeiros; chega-se ao inverso por meio de raciocínio idêntico: se a primeira proposição for verdadeira, então, os enunciados devem ser falsos (inverdades). Esta situação, em que há uma mistura de níveis (objetal e meta), constitui o paradoxo de Russell, o que, convém notar, caracteriza a fala, que não segue os moldes da lógica, pois, naquela há mistura de níveis (enquadres são implícitos). Ressalte-se que, no sonho, a pessoa que sonha exibe uma curiosa inabilidade em produzir mentamensagens, o que se justifica pelo fato de, durante o sonho, não saber que está sonhando. Por esse mesmo motivo, o sonhador não distingue entre brincadeira e não-brincadeira e fantasia de não-fantasia, a não ser quando passa ao estado de vigília, em que pode enquadrar seu sonho no momento em que toma consciência de que sonhou. Isto se dá porque o sonho não tem enquadres. Imagine-se, por exemplo, alguém sonhando que está caindo de um abismo: o sujeito experimenta uma inexplicável Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 1175-1180, 2004. [ 1177 / 1180 ]

sensação de terror, como se a queda fosse real. Logo, embora as imagens no sonho não denotem o que aparentam denotar, evocam o mesmo terror que teria sido evocado se se tratasse de um abismo real. Fenômeno semelhante ocorre, por exemplo, no cinema cuja tela possua três dimensões: as cenas são experimentadas como se fossem reais. Realidade e ficção se misturam, neste caso, por um esquecimento do enquadre ficção. Todas estas considerações, decorrentes da análise do exemplo que introduziu esta discussão, se apoiam na teoria da dupla vinculação descrita por Bateson. Esse autor, ao estudar o fenômeno do paradoxo no âmbito da comunicação esquizofrênica, publicou em 1956, junto com colaboradores, um artigo intitulado Toward a theory of schizophrenia, no qual introduziu o conceito de Duplo vínculo ou Dupla injunção (Watzlawick, Beavin e Jackson, 1993:191). Em sua versão tradicional, o conceito contém duas comunicações mutuamente exclusivas, sendo que a segunda, de um modo geral implícita no discurso, é uma metamensagem. Além disso, o sujeito é impedido de escapar à situação paradoxal. Estreitamente vinculado ao conceito de dupla injunção está o de transcontextualidade, definido por Bateson (1969). Para esse autor, um enunciado ou uma ação não podem ocorrer isolados: há que se ter um contexto para que se possa interpretá-los. Esse fato é a base do significado transcontextual; no caso da dupla injunção, ocorre, segundo o autor, um entrelaçamento de contextos e, conseqüentemente, as metamensagens associadas a esses contextos também se entrelaçam, fato este que irá gerar o paradoxo. Ressalte-se que esses contextos são simultâneos e mutuamente exclusivos e, por esse motivo mesmo, realizam juntos o paradoxo presente na dupla injunção. As metacomunicações se passam em nível diferente ao da linguagem objetal. Bateson (1972) observa que aquelas enquadram as mensagens ou enunciados no discurso e que "a grande maioria das mensagens, tanto metalingüísticas como metacomunicativas, permanece implícita". 2. Enquadre, reenquadre e paradoxo: uma proposta de análise para Metáfora "A noção interativa de quadro, então, refere-se à noção de qual atividade está sendo encenada; enquadrar é um modo de mostrar (...) por que razão dizemos ou fazemos algo, qual é a intenção, qual o significado do que é dito; "reenquadrar" alguém ou uma situação é ressignificar o que o outro diz ou faz ou toda a situação". (Tannen e Wallat; 1987). Temos, portanto, que o autor do texto enquadra e o leitor reenquadra (a partir das lacunas deixadas pelo autor), fato que se por um lado ocorre em "Metáfora", por outro não ocorre, já que o poema não tem enquadres, ou seja, não nos fornece as âncoras que nos permitem enquadrar o discurso em uma dada realidade. Trata-se de uma espécie de "metáfora flutuante" em uma piscina polissêmica de duas palavras ("lata" e "meta") que, muito longe de representarem referenciais, provocam - justamente pela falta destes - um "afogamento" no leitor, em meio a um percurso lexical permeado por paradoxos. Resta-nos, então, brincar com duas perspectivas superpostas - quais sejam, a visão horizontal, linear, sintagmática - que se posiciona no tempo presente e a visão paradigmática, vertical e "recortada" com a qual nos deparamos ao mergulhar na Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 1175-1180, 2004. [ 1178 / 1180 ]

"piscina" - e tentar estabelecer o caminho percorrido pelas palavras "meta" e "lata". Ao sobrepor as duas visões, temos a impressão de estarmos dentro de um mundo sem molduras, como os sonhos. Não há enquadres. Trata-se de uma dimensão temporal fragmentada, pois as lacunas e a falta de nexos desenlaçam determinantes e determinado e instauram uma sintaxe que é, mas também não é sintaxe, como se o hemisfério esquerdo do cérebro tivesse sofrido um "arrombamento" e estivesse "olhando" atônito para os pedaços espalhados que sobraram. Harmonizar as duas perspectivas é o mesmo que travar um embate entre o sincrônico e o diacrônico e tentar unir o que é mutuamente excludente. Então o melhor é excluir o próprio tempo e torná-lo um não-tempo, ou seja, deixar parado no tempo o que é atemporal. A lata-objeto (1) e a lata-palavra (2) realizam juntas um paradoxo, em função da mistura de níveis lógicos, ou seja, temos nível objetal em 1 e metanível em 2; além dessa antinomia semântica há ainda um paradoxo semântico-gramatical, pelo enlace simultâneo que ocorre entre "conter" e "incontível"; esta análise é extensiva aos dois primeiros usos da palavra "meta", já que o "alvo" é algo "atingível" e o que é atingível não pode, ao mesmo tempo, ser inatingível. Na terceira estrofe, o morfema supra-segmental permite a passagem de nome a verbo -meta (3) - e com isso alerta o leitor incauto: não se atreva a "exigir do poeta que determine" o que não pode ser determinado, afinal, o conteúdo da lata (3) - que também é a (4) - é, na verdade, um não-conteúdo, pois ali cabe "tudo-nada"; daí, nada mais natural para o poeta do que ter de fazer caber o incabível, em um lugar que é também um não-lugar. A última estrofe utiliza o paralelismo sintático, fato que nos autoriza a interpretar "meta (6)" como verbo, o que é corroborado pela seqüência - no início de cada verso (Deixe/Deixe/Meta/Deixe) - no imperativo; com isso, o texto parece dirigir ao leitor uma mensagem bastante explícita, qual seja a de "deixar" a meta (4) e (5) do poeta; é de se notar que o uso do imperativo negativo - "não discuta" - tem por objetivo deixar claro para o interlocutor que o que é do poeta (a meta) não está em discussão, bem como está fora de qualquer disputa, fato que sugere, inclusive, a eliminação de uma possível ambigüidade em relação ao possessivo "sua". Por outro lado, "meta dentro e fora" prescinde de qualquer objeto para ser posto em algum lugar, já que não se pode colocar nenhum objeto dentro e fora ao mesmo tempo, fato que configura o paradoxo derradeiro do poema; acrescente-se que não poderia ser de outro modo, pois a "lata (5) absoluta" é o próprio poema, único, absoluto como cada poema e cada metáfora. Desse modo, o leitor deve deixar tudo não como está, mas como não está, uma vez que a cada nova interpretação o poema estará sendo ressignificado, reenquadrado por um determinado enfoque que, ao final, deixa o poema "simplesmente metáfora", mas também não deixa ou, por outras palavras, faz que permaneça único enquanto criação, mas múltiplo enquanto representação. 3. Finalizando Para finalizar, a palavra grega metaphora significa literalmente transferência : meta trans- + pherein levar, Ullmann (1964:443). Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 1175-1180, 2004. [ 1179 / 1180 ]

Segundo Ullmann: A estrutura básica da metáfora é muito simples. Há sempre dois termos presentes: a coisa de que falamos e aquilo com que a estamos a comparar. Na terminologia do Dr. Richards, o primeiro é o teor, o segundo o veículo, enquanto que o traço ou traços que têm em comum constituem o fundamento da metáfora. (1964:442-443). Comparem-se as duas expressões: café amargo e amargo contratempo ; se alguém diz que bebeu um café amargo, isto significa que o café tinha um sabor desagradável, ruim. Por outro lado, em amargo contratempo temos uma metáfora cujo fundamento são os semas da palavra amargo transferidos para contratempo, significando que este foi desagradável, ruim. É de se notar que a transferência, fundamento da metáfora, enlaça dois níveis de significação distintos, sendo o conotativo a essência da metáfora e também o nível que imprime ao conjunto teor-veículo novos sememas. Sabemos que o paradoxo é gerado pela mistura de níveis; desse modo, pode-se concluir que a metáfora-ela mesma-título-conteúdo é um paradoxo. RESUMO: Este trabalho pretende analisar o poema Metáfora, de Gilberto Gil, sob duas perspectivas integradas: uma, horizontal e linear - que se posiciona no tempo presente; outra, vertical e "recortada" - com a qual nos deparamos ao dissecar Metáfora - e tentar estabelecer o caminho percorrido pelas palavras "meta" e "lata". O resgate desse percurso lexical terá como arcabouço teórico o estudo do paradoxo, que integra toda a tessitura teórica concebida por Gregory Bateson (1972). PALAVRAS-CHAVE: paradoxo; enquadre; metáfora; lata; meta REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSAD Alvares, Cláudia. 1996. O jogo da linguagem e a construção do sentido. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Mimeo. RJ: UFRJ. BATESON, Gregory. 1972. A Theory of Play and Fantasy. Steps to and Ecology of Mind. NY.: Ballantines Books, 177-196. SIMÕES, D. M. P. 1999. Metodologia do ensino da gramática sob bases semióticas. In Linguagem & Ensino. Vol. 2, Nº. 1 (107-122). TANNEN, D. e C. Wallat. 1987. Interactive Frames and Knowledge Schemas in Interaction: Examples from a Medical Interview. In Social Psychology Quarterly. 50 (2): 205-16. ULLMANN, S. 1964. Semântica - Uma Introdução à Ciência do Significado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. WATZLAWICK, P.; J. H. Beavin e D. D. Jackson. 1993. Pragmática da Comunicação Humana. SP: Cultrix. Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 1175-1180, 2004. [ 1180 / 1180 ]