TOMÁS DE AQUINO: O HÁBITO COMO QUALIDADE QUE DETERMINA A AÇÃO

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Transcrição:

TOMÁS DE AQUINO: O HÁBITO COMO QUALIDADE QUE DETERMINA A AÇÃO BOVETO, Lais (UEM) OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM) Neste texto, pretendemos abordar a perspectiva tomasiana do conceito de hábito, estabelecendo algumas relações com a concepção aristotélica. Utilizamos, para tanto, a questão 49 (I a II ae ) da Suma Teológica de Tomás de Aquino e os livros I e II da obra Ética a Nicômaco de Aristóteles. A questão 49 intitulada Os hábitos em geral quanto à sua substância está inserida na parte Os hábitos e as virtudes e está dividida em 4 artigos: 1. O hábito é uma qualidade?; 2. O hábito é uma espécie determinada de qualidade?; 3. O hábito existe em ordem ao ato?; 4. Sobre a necessidade do hábito. Antes de tratarmos de cada um dos artigos, é fundamental compreendermos o conceito aristotélico de hábito que está presente na obra tomasiana, mas recebe um tratamento diferenciado por parte dos dois estudiosos. Em Aristóteles, observamos que, no Livro II da Ética, o hábito é apresentando como meio pelo qual os homens aprendem as virtudes morais. Sendo a virtude, como vimos, de dois tipos, nomeadamente, intelectual e moral, a intelectual é majoritariamente tanto produzida quanto ampliada pela instrução, exigindo, consequentemente, experiência e tempo, ao passo que a virtude moral ou ética é o produto do hábito, sendo seu nome derivado, com uma ligeira variação da forma, dessa palavra. E, portanto, fica evidente que nenhuma das virtudes morais é em nós engendrada pela natureza, uma vez que nenhuma propriedade natural é passível de ser alterada pelo hábito. (ARISTÓTELES, Ética, L. II, 1, 1). O Filósofo expressa que a virtude moral não nos é concedida pela natureza. Recebemos a potência para desenvolver as virtudes morais, mas a capacidade de agir de acordo com elas só pode ser adquirida pelo hábito. Ao contrário das capacidades 1

sensitivas, como a visão, por exemplo, as virtudes morais só podem ser desenvolvidas pelo exercício constante, pelo hábito de exercê-las. Assim, Aristóteles afirma que [...] a virtude moral ou ética é produto do hábito [...] (Ética, L. II, 1, 1), ou seja, para que o homem seja ético é necessário que tenha o hábito de agir de maneira ética. Contudo, como este hábito não é oferecido pela natureza, é necessário que o homem seja educado para adquiri-lo. Nesse sentido, as ações humanas se encontram imersas na cultura, nos hábitos e no conhecimento. São esses aspectos que nos movem e temos a liberdade de encaminhá-los para boas ou más ações. A prática social cotidiana depende, diretamente, dos hábitos adquiridos, das escolhas realizadas e do conhecimento que possuímos. Escolhas, conhecimento e hábitos determinam, desse modo, as características sociais do homem, pois determinam, também, o seu agir. É através da participação em transações com nossos semelhantes que alguns de nós se tornam justos e outros, injustos [...]. Em síntese, nossas disposições morais são formadas como produto das atividades correspondentes. Consequentemente, nos compete controlar o caráter de nossas atividades, já que a qualidade destas determina a qualidade de nossas disposições. Não é, portanto, de pouca monta se somos educados, desde a infância dentro de um conjunto de hábitos ou outro; é, ao contrário, de imensa, ou melhor, de suprema importância. (ARISTÓTELES, Ética, L. II, 1, 2). A noção aristotélica de hábito está relacionada, diretamente, com a percepção de política do Filósofo. A política pode assegurar a existência da cidade, no sentido de desenvolver leis, costumes e práticas educativas. O desenvolvimento dos hábitos, por sua vez, assegura as características que cada homem necessita para conviver com o outro, condição essencial para a existência da sociedade. O bem da polis e o bem individual formam uma unidade indissolúvel. O homem, neste sentido, deve ser educado, desde cedo, para compreender que o bem da cidade assegura sua própria felicidade. A educação é que afasta o homem de um estado de animalidade para inserilo em um estado de humanidade. Como Aristóteles viveu em um contexto em que a Filosofia passou a se concentrar no homem em sua totalidade diferentemente do período anterior em que o foco era a natureza, sua noção de desenvolvimento moral e 2

intelectual é direcionada a permitir ao ser humano existir, em sociedade, como ser autônomo e livre. A preocupação com a totalidade, com a noção de unidade e com um agir responsável surge, também, nos textos tomasianos. Tomás de Aquino vivencia, no século XIII, o momento em que a cidade e o comércio florescem. A preocupação com o conhecimento, as ciências, assim como, com a evangelização esteve presente neste período e se manifestou, especialmente, nas Ordens Mendicantes (OLIVEIRA, 2007). A realidade social vivenciada pelo mestre Tomás é, evidentemente, muito diferente da Antiguidade, contudo, isso não impede que as teorias aristotélicas sejam aplicadas ao cristianismo medieval, na tentativa de promover uma Filosofia cristã. A unidade existente entre razão e fé, esteve presente no medievo e, muitas vezes, é interpretada como o vínculo entre duas coisas diferentes. É necessário destacar que, para os pensadores medievais, razão e fé, alma e matéria, constituíam uma unidade indissociável 1. Esta percepção levou Tomás de Aquino a desenvolver um pensamento original tanto em termos teológicos, como filosóficos (OLIVEIRA, 2005) 2. No caso de sua análise do conceito de hábito, essa originalidade pode ser percebida pelo método com o qual Tomás de Aquino apresenta as noções de hábito e virtude. Se em Aristóteles o hábito é o meio para o desenvolvimento das virtudes morais e da ética; no mestre Tomás, as virtudes são formas de manifestação dos hábitos. Logo no início da questão 49, isto é expresso com a indicação de que primeiro serão abordados os hábitos em geral e, posteriormente, [...] as virtudes e os vícios, e outros hábitos semelhantes [...] (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 49). No primeiro artigo da questão 49, Tomás de Aquino questiona se o hábito é uma qualidade e, na sequência, indaga se é uma espécie determinada de qualidade. 1 Conforme o professor Gerald Cresta, os homens medievais distinguiam razão e fé, porém não as consideravam num estado de oposição ou de superioridade. Mas, como interdependentes: para que a razão se desenvolva a fé é essencial e a fé só pode existir num ser que possui e utiliza a razão. Este punto de partida originario constituído por la fe es el que mueve al entendimiento a examinar el objeto creído. Se parte de la fe porque se está frente a un objeto de conocimiento al cual no es posible acceder con los sentidos, y sobretodo porque se trata de un objeto trascendente que es dado históricamente por la fe a la razón natural para que ésta última lo examine (CRESTA, Es Posible el conocimiento de Dios? aproximaciones y diferencias entre Santo Tomás y San Buenaventura. Disponível em: http://www.hottopos.com/rih4/gerald.htm. Consulta em: 24/mai/2010). 2 No período pré-tomista (séculos IX XIII), predominava a escolástica de Santo Agostinho, que, embora não distinguisse fé e razão, priorizava a primeira. 3

A palavra hábito vem do verbo habere [haver-ter]. [...]. Se, porém, ter é tomado no sentido de uma coisa que, de alguma forma, se tem em si mesma ou relativamente a outra, como esse modo de ter supõe alguma qualidade, então o hábito é uma qualidade. Daí a afirmação do Filósofo: chama-se hábito a disposição pela qual a coisa disposta se dispõe bem ou mal ou em si mesma ou em relação a outra coisa, de modo que a saúde é um hábito. É nesse sentido que falamos agora de hábito e por isso deve-se concluir que ele é uma qualidade. (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 49, a. 1). Vemos que mestre Tomás parte da origem latina da palavra hábito, ao passo que o conceito aristotélico está vinculado à origem grega da palavra ethos (hábito) e éthos (caráter) são congêneres. Tanto em um sentido, quanto em outro, o hábito qualifica o sujeito, dispondo-o bem ou mal em relação a si mesmo ou a outra coisa. No segundo artigo, isto se torna mais claro com a demonstração da diferença entre hábito e disposição, com a finalidade de comprovar que o hábito é uma qualidade distinta. Disposição tem dois sentidos: no primeiro, é o gênero do hábito, por isso o livro V da Metafísica afirma a disposição na definição do hábito. No segundo, é algo contraposto ao hábito. É a disposição propriamente dita, que se contrapõe ao hábito de duas maneiras: uma, como o perfeito e o imperfeito na mesma espécie: assim a disposição, conservando o nome comum, está inerente ao sujeito imperfeitamente, e por isso, facilmente se perde: enquanto o hábito está inerente perfeitamente, de modo que não se perde com facilidade. Assim, as disposições se tornam hábitos, como a criança em adulto. [...]. É por esse motivo que ele [Aristóteles], para provar essa distinção, invoca o linguajar comum, segundo o qual as qualidades que por sua razão são facilmente móveis, se por algum acidente se tornam dificilmente móveis, se chamam hábitos. O contrário sucede com as qualidades que são por natureza dificilmente móveis: pois se alguém domina imperfeitamente uma ciência, a ponto de poder perdê-la com facilidade, diz-se antes estar disposto à ciência do que ter a ciência. Donde se vê que o nome de hábito implica uma certa durabilidade; mas a disposição, não. (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 49, a. 2). Desse modo, é relevante ressaltar que o mestre dominicano indica o hábito como uma qualidade específica, que se diferencia da disposição por ser dificilmente removível difficile mobile e por ser qualitativamente superior a esta. Na passagem acima, a disposição é apresentada como uma característica que, por se desenvolver, transformase em hábito. Nesta ideia está expressa a relevância do hábito como qualidade que 4

dificilmente perdemos e acreditamos que, por esse motivo, deve ser desenvolvida e direcionada às ações virtuosas. O que nos leva a pensar desse modo em relação à análise da questão 49, é o fato de que Tomás de Aquino indaga, no artigo seguinte, se o hábito implica ordenação ao ato. Sua conclusão é que [...] o hábito não implica só ordenação à natureza da coisa, mas também, por conseqüência, à ação, enquanto é fim da natureza, ou conduz para o fim. (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 49, a. 3). Assim, a qualidade hábito implica em uma ação que conduz à finalidade da natureza e à determinação das potências para o bem ou para o mal. No artigo quarto, esta argumentação prossegue com a questão relativa à necessidade ou não dos hábitos. Tomás de Aquino explica que são necessários três requisitos para uma coisa se dispor a outra, tal qual alguém se dispõe bem ou mal para algo. O primeiro, é que essa coisa seja composta de potência e ato e não exista por si mesma, pois se assim não o for, não haverá lugar para o hábito ou para a disposição, tal como ocorre em Deus. O segundo requisito, para que ocorra tanto a disposição, quanto o hábito, é que o sujeito tenha potência relacionada a mais de uma ação, ou seja, é necessário que haja possibilidade de escolha. Assim, o exemplo que o mestre Tomás apresenta é de um corpo celeste que tem, em potência, um único movimento este não poderá ser sujeito de disposições ou hábitos. O terceiro requisito, é que haja condições de comparação entre muitas formas e ações para que o sujeito possa se dispor bem ou mal em relação a estas, ou seja, para que tenha escolha. Observa-se, portanto, que o argumento utilizado por Tomás de Aquino para comprovar a necessidade do hábito, relaciona-se à escolha. Os hábitos e as disposições só podem existir em seres que têm como característica a potência a realizar diferentes ações boas ou más. QUANTO AO 2º, deve-se dizer que a potência de algum modo está para muitas coisas: por isso precisa que seja determinada por alguma outra coisa. Se houver alguma potência que não esteja para muitas coisas, não necessita de hábito determinante, como foi dito. É este o motivo por que as forças naturais não exercem suas ações por meio de hábitos, já que por si mesmas estão determinadas a uma só coisa. QUANTO AO 3º, deve-se dizer que não é o mesmo hábito que está para o bem e para o mal, como mais adiante se verá. Mas é a mesma potência que está para o bem e para o mal. Por isso são necessários os 5

hábitos para que as potências sejam determinadas para o bem. (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 49, a. 4). Para o autor, os hábitos são necessários aos seres humanos para determinar suas ações para o bem. Potencialmente, os homens podem agir tanto para o bem quanto para o mal. O que Tomás de Aquino expressa é que o hábito é a forma apropriada para determinar as potências humanas para o bem. As denominadas forças naturais não são objetos dos hábitos, pois possuem uma potência direcionada a uma única ação. Deus, também, não é ordenado pelo hábito, pois possui existência em si mesmo. Mas as potências do homem necessitam de algo que as orientem. É possível, portanto, considerar que, tanto para Aristóteles, quanto para Tomás de Aquino, o hábito orienta as ações. Para o Filósofo da Antiguidade, o hábito é o meio pelo qual as ações virtuosas podem ser aprendidas; para o mestre medieval o hábito é a qualidade necessária para que as ações sejam ordenadas para o bem. Desse modo, observamos que, a concepção tomasiana de hábito é fundamentada com a teoria aristotélica, porém, é apresentada de uma nova maneira, adequada a seu tempo. A questão que se apresenta na teoria de Tomás de Aquino é a relação do homem com a espiritualidade e com Deus. Nesta noção, reside um dos pontos que consideramos relevantes no estudo do conceito de hábito na História da Educação: observar o que se mantém na teoria dos autores clássicos em relação ao conceito. Neste texto, elegemos Tomás de Aquino e procuramos observar como este considerou a percepção aristotélica de hábito em uma de suas inúmeras questões. Para o mestre Tomás, o conceito passa a se configurar como uma qualidade superior à disposição, pois, é dificilmente removível e, portanto, deve ser orientado pelo bem. Desenvolver hábitos significa, dessa maneira, desenvolver qualidades que se manifestarão nas ações humanas a ética, por exemplo, é uma qualidade de quem desenvolveu o hábito de praticar ações éticas. Outro ponto que consideramos relevante e que nos move a dar continuidade ao estudo sobre o hábito é que, na História da Educação, temos a possibilidade de aprender, com este e outros conceitos, formas de educar que podem ser aplicadas em nossos dias. Afinal, quando observamos a educação escolarizada, por exemplo, são vários os hábitos e disposições indesejáveis que poderíamos mencionar desde a falta 6

de atenção, até a falta de respeito; alunos e educadores têm se questionado a respeito de suas funções nas instituições educativas. Se por um lado, os alunos não veem na escola um ambiente estimulante e saem dela com um nível de aprendizagem abaixo do mínimo; por outro, muitos educadores não têm clareza da real função da instituição e de seu papel no processo de ensino e aprendizagem. Acreditamos que é neste sentido que o estudo de conceitos como o de hábito pode colaborar para a formação no campo educacional. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Bauru, SP: Edipro, 2009. CRESTA, G. Es Posible el conocimiento de Dios? aproximaciones y diferencias entre Santo Tomás y San Buenaventura. Disponível em: <<http://www.hottopos.com>>. Consulta em: 24/mai/2010. OLIVEIRA, T. Escolástica. São Paulo: Mandruvá, 2005.. Os mendicantes e o ensino na Universidade Medieval: Boaventura e Tomás de Aquino. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXIV, 2007. São Leopoldo, RS. Anais... São Leopoldo: Unisinos, 2007. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005. IV volume, q. 49-114. 7