Experiência e Subjetividade. Geografia do Prazer nos espaços de sociabilidade lésbica do Rio de Janeiro dos anos 1950-1960.



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Transcrição:

Experiência e Subjetividade. Geografia do Prazer nos espaços de sociabilidade lésbica do Rio de Janeiro dos anos 1950-1960. Nadia Nogueira PPG-UNICAMP Margareth Rago UNICAMP O tema que estimula a escrita deste texto é o lugar ocupado pelas lesbianas na história do Rio de Janeiro dos anos 1950-1960. A discussão a respeito do lesbianismo no Brasil ocorreu em virtude da pesquisa desenvolvida no doutorado em História na Universidade de Campinas, a partir da relação amorosa de Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop. Apesar de elas terem se mantido durante uma década, entre os anos de 1951 e 1961 na casa que construíram em Samambaia, no alto da serra em Petrópolis no Rio de Janeiro, percorro a geografia urbana da cidade desse período, na tentativa de mapear os lugares onde se poderiam encontrar práticas do homoerotismo feminino, bem como o exercício de sociabilidades diferenciadas do modelo social tradicional das relações de gênero, baseado no casal heterossexual monogâmico e na família nuclear. Algumas questões permearam as minhas buscas: as lesbianas contavam com espaços privilegiados para seus encontros na cidade? Que códigos elas criaram para se encontrarem? Que gestos corporais usaram para se reconhecerem? Que estratégias criaram para escapar aos estigmas da perversão, da violência, da negação do seu corpo e do seu prazer, estigmas que sabemos ser tão fortemente lançados contra elas? Procuro assim, mapear a cartografia da subcultura lesbiana nos espaços públicos do Rio de Janeiro dos anos 1950-1960. Utilizo a expressão lesbiana para retirar o peso negativo que o discurso médicocientífico conservador dirigiu ao homoerotismo feminino, visto como sinônimo de doença, perversão, passível de cura com tratamento adequado e as próprias lesbianas, percebidas como feias, mal amadas, incapazes de conquistar um homem, e que por isso, volta sua afetividade para as próprias mulheres. Criticar e romper com esse discurso normatizador, que impregnou o imaginário brasileiro a respeito dessas práticas é também o que esse texto 1

se propõe, além de mapear os lugares no qual puderam criar e praticar formas de sociabilidade pautadas por seus próprios padrões, evidenciados nas roupas, nos comportamentos, nos códigos e estratégias criados para poderem se relacionar afetiva e sexualmente entre mulheres. Não se discutiam tão claramente essas questões naqueles tempos; certas coisas não eram faladas e um véu espesso encobria os relacionamentos amorosos femininos. Válvulas de escape noites que pulsam Nos anos 1950, a cidade do Rio de Janeiro e seus respectivos bairros passaram por profundas transformações urbanísticas: remoção de morros; a aberturas de túneis, ruas e avenidas, o bairro de Copacabana emerge como lugar de total liberação dos costumes. Boates escuras, bares para os mais diferentes gostos e paladares, restaurantes modernos e sofisticados com música ao vivo de qualidade compõem um novo cenário da cidade que se moderniza. Neste ambiente eclético e multifacetado a vida pulsa na madrugada com pessoas de todos os hábitos, culturas e idades se misturando, independente das suas origens, crenças, classe social. Uma sociabilidade cujos códigos se pautavam para além dos bons costumes dominantes, por meio de formas diversificadas de lazer e da multiplicidade de pessoas circulando. Surgem lugares agenciados por uma intensa geografia do prazer em função da maior liberdade de locomoção, pela possibilidade de caminhar entre desconhecidos e que se refletiram também na composição desses novos espaços, diferenciados pela clientela que os freqüentavam, algumas mulheres desacompanhadas, bebendo, cantando, vivendo a madrugada. É possível pensar que a tradição cedeu lugar à transgressão? 2

Apesar da constante repressão da sociedade para todos os comportamentos que escapassem às normas conservadoras, foi possível encontrar na cidade do Rio de Janeiro, práticas, experiências, estilos de vida de pessoas que criaram um território próprio para viver os relacionamentos amorosos entre iguais. Não que tais práticas significassem uma ruptura total e definitiva com as fórmulas conhecidas e aceitas socialmente, mas, os lugares freqüentados pela boêmia, por artistas do teatro de revista, por cantoras e cantores da noite, foram também verdadeiras válvulas de escape para o encontro entre as lesbianas nos anos 1950, sobretudo, para aquelas que ousaram a ocupar a cena pública, seja usando terno e gravata, ou vestidos longos e esvoaçantes. A intenção é conhecer um pouco dessa cartografia urbana, na qual o prazer cedeu lugar à tradição, por meio dos códigos e estratégias criados para se reconhecerem, se relacionarem, se amarem nos espaços outros ocupados por elas. Esquinas de Copacabana As mulheres que viveram a noite de Copacabana, sua boêmia, sua agitação noturna foram em sua maioria as profissionais que trabalhavam na noite, como prostitutas, cantoras, dançarinas dos cabarés; algumas tiveram que brigar com seus familiares, para ocupar o palco das boates. Desta maneira, Copacabana se constituiu no imaginário internacional como um espaço dos excessos, da permissividade, do carnaval, da sensualidade, dos corpos aparentes, envolventes. O Restaurante Alcazar ainda hoje localizado na Avenida Atlântica, no coração de Copacabana, recebia os grupos mais variados: prostitutas em busca de um cliente, dançarinas que vinham tomar a famosa sopa servida na madrugada, boêmios que ali convergiam para um último gole e também os homossexuais, tanto femininos como masculinos. Um lugar onde dava de tudo - afirmam as lesbianas que foram entrevistadas - 3

porque ali era possível conhecer alguém para uma troca afetiva e sexual entre pessoas do mesmo sexo e permanecer sem passar pelo constrangimento de ser abordado pela polícia que poderia fazer perguntas indiscretas e humilhantes (Green, 2000; Entrevistas). Algumas lesbianas se vestiam com as roupas consideradas elegantes, adequadas para estar na noite, como um terno de belo corte, uma gravata combinando e invariavelmente como calçado um mocassim, que era uma espécie de código entre elas. Como não havia roupas de corte unissex naqueles tempos, o terno parecia o mais próximo da elegância para aquelas que gostavam de um visual mais masculino e o sapato mocassim representava uma espécie de reconhecimento da orientação sexual. No cotidiano, muitas usavam saia, camisa ou camiseta polo e o famoso mocassim, marca registrada, confirma Antonia, moradora de Copacabana, embora muito jovem nos anos 1960, percebia os códigos das lesbianas, ou entendidas, como preferem ser chamadas, a palavra lésbica é vista por elas como sinônimo de doença. Em contrapartida havia as que usavam vestidos esvoaçantes, sandálias de salto alto e maquiagem, delineador nos olhos e batom de cores fortes, uma marca da feminilidade foram também os acessórios: brincos, colares e anéis compunham a bela aparência. A Boate Etoile, na Galeria Ritz, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana era freqüentado praticamente apenas por mulheres. As entrevistadas afirmam que embora o clima da boate fosse tranqüilo, onde poderiam até trocar carícias sutis enquanto dançavam no escuro havia o risco constante da chegada da polícia, que se incomodava com aquelas que usavam roupas masculinas: de vez em quando a polícia batia e botava todo mundo prá correr (Antonia). O Bar Pizzaiolo, uma pizzaria que funcionava em Copacabana, teve grande destaque na década de 1960 como ponto de encontro, com muita paquera e troca de confidências, muitas encontraram lá sua primeira namorada, onde todas se reuniam antes de ir para as boates Zigue-Zague e Gaivota na Barra da Tijuca, no Rio. 4

O Alfredão foi um famoso bar localizado no Posto Seis de Copacabana, começou como bar e se transformou em boate, foi também um lugar importante para os encontros e a sociabilidade entre lesbianas: O Alfredão, dono do bar, tratava todas nós muito bem e era um ambiente muito eclético, havia todo tipo de gente, inclusive gente que não era meio ficava do lado de fora para ver quem freqüentava. Embora o ambiente fosse tranqüilo e de muito respeito, muitas não iam a esses lugares pelo medo de serem reconhecidas por aqueles que ficavam do lado de fora observando e de possíveis comentários posteriores. Um famoso ambiente desse período assiduamente ocupado apenas pelas amigas entendidas, pessoas que se conheciam e indicavam o ponto de encontro, foi o Bar da Fernanda, localizado no bairro da Tijuca, um importante espaço de convívio e de sociabilidade lesbiana nos finais de semana. O bar funcionava na casa da Fernanda e da Laurinda que eram namoradas e reuniam as amigas e pessoas próximas na casa transformada em uma espécie de bar, pelo serviço de bebidas; restaurante, pela impecável cozinha portuguesa comandada pela Laurinda; boate no andar superior para dançar e também os quartos, que funcionavam como "casa de recurso", expressão utilizada para designar um local utilizado para namorar, para transar. Explicando melhor o que era uma casa de recurso": Como não podiam namorar em suas próprias casas e nem mesmo em Hotéis que não as aceitavam ou Motéis, ainda incipientes, alguma amiga que tivesse um apartamento disponível e não uma casa propriamente emprestava para aquela que estivesse namorando a sua "casa de recurso" (Entrevistas). Uma característica marcante do lugar era a comida portuguesa servida em um clima bastante familiar, quem o freqüentou afirma com ar nostálgico: Reuniam-se lá as pessoas que trabalhavam e não se incomodavam em ir até a Tijuca, para ver as amigas. Lá se encontravam pessoas selecionadas entre as amigas em comum, todas conhecidas, aquelas que tivessem boa conduta e não dessem nenhum tipo de problema, por exemplo, brigas, excesso de bebida alcoólica, ou qualquer tipo de atitude inadequada, se transformava em um convite para se retirar e não voltar mais. Havia no Bar um espaço ao ar livre utilizado 5

como bar e restaurante, as pessoas ligavam para saber o que seria servido e se dirigiam para lá, para passar o dia e encontrar as amigas. Todas podiam namorar sem serem censuradas, a não ser por atos obscenos que deveriam ser praticados no andar superior da casa. As lesbianas mais cultas e elitizadas não iam ao Bar da Fernanda, elas não gostavam de aparecer publicamente e preferiam fazer festas na casa umas das outras e convidar um grupo seleto de amigas próximas. A casa funcionava nesses tempos como lugar específico para se conhecer pessoas diferentes, namorar, encontrar um amor, ou simplesmente um espaço de diversão, sem o olhar de censura da sociedade. A casa tornava-se um tipo de bar para um grupo composto de pessoas próximas, amigas íntimas, uma espécie de rede que se formava, convidavam-se entre si e acabavam compondo uma sociabilidade diferenciada (Sbardelini, 1979; Da Matta, 1985; Portinari, 1989). Um espaço com essa característica mais elitizada, composto por mulheres de camadas sociais mais elevadas, de alto nível sócio-econômico foi o Clube das Doze, nome informal para um grupo de amigas que se encontrava em uma enorme casa em Jacarepaguá. O Clube era formado por seis casais, as doze mulheres que convidavam suas amigas mais íntimas e pediam que essas convidassem outras. Algumas levavam a bebida, outras algo para comer e se formava então uma espécie de rede informal entre elas. Nessas festas, que aconteciam em uma ampla casa em Jacarepaguá, localizada fora da região central da cidade, chegavam a se reunir centenas de lesbianas. Em uma dessas festas compareceram mais de trezentas mulheres: muita gente bonita, muito bem vestida, não muito comportada. Nesses locais elas poderiam se vestir e se sentir mais à vontade, com trajes que algumas consideravam mais elegante, como terno e gravata e, em contrapartida, as outras com vestidos longos e bem maquiadas, que geralmente recebiam galanteios bastante cavalheiros das primeiras, como abrir a porta do carro e enviar flores no dia seguinte. O 6

vestuário parecia definido nessas ocasiões pelos padrões de gênero tradicionais, algumas mulheres bem femininas, que deveriam se submeter às amabilidades daquelas mais masculinizadas, o que pressupõe para o período um relacionamento entre as lesbianas próximo aos padrões normativos próprios do universo heterossexual. Muitas se casaram e tiveram filhos, pois havia uma grande dependência econômica em relação ao homem, ao marido, e a educação feminina estava muito voltada ao casamento como objetivo da felicidade. Em decorrência disso, suas relações homoeróticas foram mais camufladas, não se assumiam, pois a carga de preconceito era excessiva e podiam ser expostas publicamente, o que acarretava perda do emprego e da guarda dos filhos, no caso daquelas que eram mães. Entrevistar pessoas que utilizaram diferentes estratégias e códigos para se reconhecerem foi também uma forma de identificar como as lesbianas mais elitizadas e ricas tiveram práticas distintas para construírem suas relações. Entretanto, é muito difícil afirmar que elas não se misturavam entre si, que não estiveram juntas nos bares, restaurantes e boates que serviram de palco para toda espécie de transgressão nos anos 1950. 7