Ivo Castro Introdução à História do Português Segunda edição revista e muito ampliada Edições Colibri
Índice Síntese Introdutória... 7 Capítulo I TERRITÓRIOS E COMUNIDADES LINGUÍSTICAS 1. Introdução. Conceitos de «língua portuguesa», norma, crioulo, pidgin... 9 2. Área linguística galego-portuguesa... 14 3. Português extra-europeu (Brasil, Angola, Moçambique)... 27 4. Crioulos de base portuguesa... 36 Capítulo II ORIGENS DO PORTUGUÊS NO QUADRO ROMÂNICO 5. Introdução à Romanística... 47 5.1 România. Origem do nome... 47 5.2 Elenco das línguas românicas... 48 5.3 Fenómenos de mudança pan-românicos... 51 5.4 Posição do português... 52 5.5 Latim vulgar... 53 5.6 Diferenciação do latim vulgar... 54 5.7 Substrato... 57 5.8 Superstrato... 58 6. Formação de um espaço nacional para a língua portuguesa... 60 6.1 Mapa da Península no séc. VIII... 60 6.2 Romance moçárabe... 62 6.3 Área inicial do galego-português... 64 6.4 Povoamento do território... 68
Capítulo III PORTUGUÊS ANTIGO 7. Periodização... 73 7.1 Períodos... 73 7.2 Ciclos... 74
8. Fontes escritas... 78 8.1 Problemas, métodos, classificação, bibliografia... 78 8.2 Classificação dos textos não-literários... 85 8.3 Bibliografia dos textos literários... 92 8.4 A primitiva produção escrita em português... 94 8.5 Comentário linguístico de textos... 111 8.6. Recapitulação: o sistema fonológico do Português Antigo... 144 Capítulo IV PORTUGUÊS MÉDIO 9. Transição ou crise?... 149 10. História externa... 150 11. Língua literária... 152 12. Mudanças linguísticas... 155 12.1 Síncope de -d-... 155 12.2 Eliminação de hiatos... 158 12.3 Unificação de terminações nasais... 161 12.4 Sibilantes... 162 12.5 Regularização do género... 162 12.6 Léxico... 167 12.7 Conclusão... 170 13. Comentário linguístico de textos... 172 Capítulo V PORTUGUÊS CLÁSSICO E MODERNO 14. Marco inicial do português clássico... 185 15. Mudanças linguísticas do português clássico... 188 15.1 Sibilantes... 188 15.2 Consoantes labiais b/v... 192 15.3 Vocalismo... 193 15.4 Clíticos... 195 15.5 Fenómenos mais recentes... 198 16. Textos comentados... 200 17. Textos gramaticais... 214 18. O espanhol, língua de escritores portugueses... 223 19. O português no Brasil... 228
Síntese Introdutória A LÍNGUA PORTUGUESA NO TEMPO E NO ESPAÇO Uma língua não é um objecto estático e fechado, como as descrições linguísticas sincrónicas, por conveniência prática, muitas vezes deixam supor; antes parece um corpo vivo que se acha em mutação constante, nem sempre avançando de forma linear para um objectivo determinado: também pode reverter sobre os seus passos ou pode oscilar entre avanços em várias direcções, naquilo a que se chamaria variação. Os fenómenos de mudança e variação manifestam-se em três dimensões: A. variação social (ou diastrática) uma língua, em primeiro lugar, muda ou oscila de acordo com as características e a estrutura da comunidade que a fala; B. variação geográfica (ou diatópica) em segundo lugar, muda de acordo com a organização do espaço em que é falada; C. variação cronológica (ou diacrónica) finalmente, muda à medida que o tempo vai passando. Em relação à variação social, costuma dizer-se que Portugal goza de uma condição de monolinguismo quase absoluto, sendo o português a língua que praticamente todos os portugueses aprendem à nascença e usam ao longo da vida. Bem diferentes são as coisas em Espanha, onde se fala castelhano, mas também outras línguas oficialmente reconhecidas, como o galego, o catalão e o basco, além de grupos de dialectos que descendem de línguas medievais, como o leonês e o aragonês, e que reclamam idêntico estatuto oficial. Daqui resulta que o cidadão espanhol, embora deva conhecer o castelhano, tem a possibilidade de tratar da sua vida em outra das línguas oficiais do Estado. No pequeno território português, as coisas apresentam-se mais simples: além do português, apenas se fala uma outra língua, o mirandês, que goza do estatuto de língua oficial regional. Assim, na perspectiva da variação social, língua portuguesa em Portugal apresenta-se como um objecto relativamente homogéneo, que serve de instrumento quase único de comunicação entre os membros da comunidade nacional, apenas matizado pelas cambiantes de registo cultural, formalismo, grau de intimidade ou de expressividade que são normais em sociedades antigas e estruturadas como a nossa. Mas, segundo outro critério de classificação variacional a distribuição da língua no espaço, deixa de ser possível restringir o âmbito da questão às fronteiras de Portugal. Um brasileiro tem igual direito a dizer que a sua língua é o português, exactamente como os africanos que o têm como língua materna e, nos mesmos termos, os timorenses, macaenses, indianos, etc. que nasceram em ambientes onde se preservam a cultura e a língua portuguesas. Facilmente se conclui que o português não é apenas uma língua europeia, no sentido exclusivo em que isso se dirá do dinamarquês ou mesmo do alemão e do italiano, mas também uma língua não-europeia. Talvez seja principalmente uma língua não-europeia, tendo em conta a distribuição desproporcionada da sua área geográfica e das massas populacionais que a falam na Europa e fora dela. Não têm razão, pois, as pessoas que pensam serem os portugueses os proprietários únicos da língua e os seus utilizadores mais competentes. A descontinuidade territorial do mapa linguístico do português língua autenticamente transcontinental tem implicações históricas, quer nos movimentos que a causaram, quer nas consequências futuras que o desconhecimento mútuo e o afastamento das várias populações lusofalantes não deixarão de ter sobre a unidade do sistema linguístico. Daremos mais atenção a esta dimensão, a da variação diacrónica.
A língua portuguesa não nasceu ao mesmo tempo em todo o enorme espaço que hoje ocupa, mas num pequeno território do canto noroeste da Península Ibérica, de onde se expandiu na direcção do sul. Foi seu berço a Galécia Magna (que inclui a Galiza actual, parte do norte de Portugal e o ocidente das Astúrias). Não nasceu, como pensavam Alexandre Herculano e Leite de Vasconcelos, no centro de Portugal; não nasceu na Lusitânia, mas mais a norte, num território que vai continuadamente desde a Corunha, no extremo setentrional da Galiza, até à ria de Aveiro e ao vale do rio Vouga, que nela desagua. A população nativa, galega ou portuguesa, deste território fala a mesma língua que os seus antepassados nunca deixaram de aí falar. Coisa de que um lisboeta não pode orgulhar-se: um lisboeta nativo, descendente de muitas gerações de habitantes da capital ou do sul do país, fala uma língua que não é autóctone e não descende do latim aí falado no tempo do Império Romano, mas que foi transplantada a partir da Galécia Magna após a reconquista cristã. Exactamente como a língua falada no Rio de Janeiro ou em Maputo foi para aí transportada a partir de Portugal.