Sobre a precariedade democrática brasileira: "Do Império à República" (1972), de Sérgio Buarque de Holanda, como crítica de seu tempo Raphael Guilherme de Carvalho 1 A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. 2 A fachada da democracia sempre está presente, inclusive nos regimes autoritários e totalitários. Com essas palavras, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, em entrevista à revista Veja, em 28 de janeiro de 1976, parece cutucar o regime ditatorial brasileiro, então em pleno vigor. Na mesma entrevista, Sérgio Buarque evoca Benedetto Croce e sua famosa e sempre atual expressão toda história é história contemporânea, para afirmar a iniludível ancoragem do pensamento histórico (profissional, diga-se) na realidade presente. Quatro anos antes, o historiador daria ao público o livro Do Império à República (1972), sétimo volume da coleção História Geral da Civilização Brasileira. Ainda que o tema do livro concentre-se na crise do Império e passagem à República, subjaz a ele uma preocupação com a precária democracia brasileira, desde seu desenvolvimento e percalços históricos até aquele presente, autoritário e não-democrático. Há um capítulo todo dedicado à questão, intitulado A democracia improvisada, que remonta a um estrondoso eco da famosa expressão de seu livro de estreia, Raízes do Brasil (1936), quando afirmou que a democracia no Brasil sempre foi um lamentável malentendido. Pode-se afirmar, portanto, que a preocupação com a democracia é uma constante embora frequentemente reformulada na obra de Sérgio Buarque e uma das principais, senão a principal de suas linhas de força. O objetivo do trabalho que aqui se propõe é explorar, com apoio na teoria da história de Jörn Rüsen, de que forma o contexto em que foi produzido Do Império à República serve 1 Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PGHIS/UFPR), sob orientação da Professora Dra. Helenice Rodrigues da Silva. Bolsista do CNPq. 2 HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1936, p. 122.
de alicerce para a constituição de sentido da obra e, inversamente, como a obra responde aos déficits de orientação do período e realiza sua função cultural de orientação no tempo. Ao relacionar teoria da história e historiografia, pretende-se compreender a obra histórica como, além de uma investigação crítica sobre o Império brasileiro, concomitantemente uma intervenção em seu tempo presente, a partir do problema posto pela interferência militar, que pôs fim à experiência democrática iniciada em 1945, após a ditadura de Vargas. Se, no livro de 1936, ele criticava o personalismo e autoritarismo herdados da colonização ibérica, que constituíam entraves ao enraizamento de valores modernos democráticos, cabe investigar a percepção de Sérgio Buarque no livro de 1972 sobre a continuidade de tais obstáculos, bem como sua posição crítica em relação ao regime militar, confirmada em entrevistas e tomadas de atitude do intelectual. A questão da democracia não aparece nitidamente em Raízes do Brasil, não se vê uma definição formal conceitual. Há, sobretudo, a descrição dos entraves à democracia. Por um lado, a confusão entre público e privado, personalismo e cordialidade, o que se traduz em um Estado patrimonial. Por outro, uma forma de Estado tutelar, nas reformas de cima para baixo da sociedade e na sua reorganização rumo ao progresso. Sérgio Buarque explica que, historicamente, a construção das instituições republicanas sempre veio de cima para baixo. Esse modelo autoritário de organização, trazido de Portugal, e fora intensificado devido à escravidão. A confusão entre o público e o privado personalismo, contribuiu para a nãoseparação entre as coisas públicas e os negócios privados, culminando no homem cordial, incapaz de separar as coisas do trato pessoal das coisas de feitio público. A corrupção, por exemplo, seria uma das possíveis nefastas consequências dessa dificuldade. A democracia como mal entendido significa, portanto, a projeção, no espaço público, de um velho personalismo luso-colonial e um discurso de ruptura com essa mesma tradição, criando um reformismo comprometido menos com o interesse comum que com a permanência de sua lógica. O polêmico homem cordial aparece como figura central na formação do caráter brasileiro, de uma elite preocupada consigo mais que com os rumos da nação. Antes de Do Império à República, além de obras como Caminhos e Fronteiras (1957) e Visão do Paraíso (1959), Sérgio Buarque daria continuidade às contribuições aos jornais, prática que desenvolveu desde o início de suas atividades intelectuais, nos anos 1920, como 2
crítico literário. Em 1949, Sérgio Buarque participou de um comitê organizado pela Unesco, quando colaborou, mais outros intelectuais, em um dossiê sobre os vários sentidos a polissemia do conceito de democracia no pós-guerra. O dossiê deveria fornecer a maior variedade possível de pontos de vista sobre do conceito de democracia, de natureza cambiante e capaz de sintetizar aspectos diversos ou conflitantes. Dos estudos e debates de Sérgio Buarque sobre democracia, apareceram três artigos: Os problemas da democracia mundial (COSTA, 2004: 21-24), A Democracia e a tradição humanista (COSTA, 2004: 31-36) e Introdução à democracia (25-30). No primeiro artigo, de 1949, em momento de carência profunda de orientação (RÜSEN, 2001), de discussão sobre os rumos da democracia após a Segunda Guerra Mundial, Sérgio colocou em movimento as principais questões levantadas pelo Comitê da Unesco, a saber: Entre essas diferentes espécies de democracia existem caracteres comuns? É possível admitir-se hoje que a célebre fórmula governo do povo, pelo povo, para o povo serve para determinar os critérios essenciais da democracia? Problema terminológico: a palavra democracia deve ser usada para exprimir uma noção estreita, noção política, designando os métodos que dirigem a tomada de decisões, ou há de ser empregada para exprimir um conceito largo, conceito político-social, designando não apenas as condições e métodos da tomada de decisões, mas também os seus resultados? Problema psicológico e social: uma democracia, na acepção estreita da palavra, poderiam funcionar como tal se nada fosse feito para torná-la democracia no sentido lato da palavra? Problema político, problema das prioridades, das relações entre os fins e os meios: a democracia política representaria o melhor meio para atingir o objetivo da democracia social? A democracia social seria o melhor meio de se alcançar o objetivo da democracia política? A democracia política seria o melhor meio de se chegar a algum objetivo particular, fosse qual fosse? Existe entre esses dois conceitos uma relação meio e fim? Há situações, e em caso afirmativo quais seriam elas, em que a um governo democrático compete reprimir em tempo de paz uma propaganda tendente à mudança de regime? É admissível que um sistema político de partido único seja conciliável com um forma democrática de governo? Qual a natureza, terminológica, de fato, ou normativa, do desacordo entre os teóricos adeptos da prioridade da democracia política considerada como o meio de se realizar a democracia social e aqueles que preconizam a democracia social como meio de realizar a democracia política. (COSTA, 2004: 23). Os impasses, mais o sentido etimológico truncado do termo democracia, é o tema do segundo artigo escrito por Sérgio Buarque de Holanda, ainda em 1949, A Democracia e a tradição humanista. Sérgio percebe uma oposição, nos argumentos dos demais participantes, entre democracia burguesa (de origem capitalista) e democracia de massas (de origem 3
socialista). No entanto, existe um elemento comum e essencialmente antiautoritário entre as opiniões díspares: participam de uma tradição comum de humanismo. Tanto as formas coletivistas como as instituições liberal-democráticas buscam igualmente a justiça, a igualdade, a liberdade, a liberação do homem para o amplo desenvolvimento de suas faculdades, o igual acesso aos benefícios da civilização e a livre participação nas funções públicas. Nenhuma delas professa a doutrina da dignidade superior de uma raça ou a prioridade definitiva do Estado sobre o indivíduo. [...] Seria lícito, talvez, objetivar que, na prática atual, nenhum desses princípios é universalmente respeitado. Contudo, a simples circunstância de existir sobre eles um acordo geral basta para que se considere sem pessimismo a possibilidade de um auspicioso entendimento (COSTA, 2004: 35). Por fim, no terceiro artigo sobre esse tema, Introdução à democracia, de 1951, Sérgio Buarque afirma que, além dele mesmo, somente um outro autor brasileiro participou mais ou menos ativamente do debate, o crítico literário paranaense Wilson Martins. Mesmo assim, Sérgio analisa criticamente o livro de Wilson Martins. O historiador diz que nenhum governo democrático pode se realizar sem promover o bem público, coisa desprezada por Wilson Martins. Em Do Império à República, a democracia aparece atrelada à análise do funcionamento do sistema representativo do Império. Com base em dados, ele procura delinear o quadro de uma democracia improvisada epíteto que dá nome a um dos capítulos da obra em que apenas 1% da população tinha direito a votar. Sérgio Buarque de Holanda destaca que as reformas eleitorais restringiram direitos, deixando de fora 99% da população. O significado histórico da experiência lembrada do passado depende do contexto de orientação do presente. A mobilização do passado pela lembrança histórica propicia que sejam iluminados efeitos do passado presentes na vida atual. O passado presente no mundo atual, conforme o que já se assinalou, é, a princípio, tradição. A história é o procedimento intelectual com que se toma ciência dessa presença e se pode comunicá-la (RÜSEN, 2001: 73). A narrativa de Sergio Buarque de como se deu o fim do Império brasileiro compreende a compreensão de fatores significativos para o mundo de seu contexto de orientação. Sérgio Buarque percebe uma tradição de orientação política, consolidada na 4
segunda metade do século XIX e que ainda se fazia presente entre os contemporâneos de Sergio Buarque de Holanda. A problemática de Do Império à República torna explícita a permanência e atualidade de tal tradição no Brasil dos anos 1970. Ao fazer a crítica de traços essenciais da experiência política do Império, Sergio Buarque de Holanda de certa forma nega a tradição política brasileira e, por extensão, nega também seus desdobramentos contemporâneos. Um exemplo interessante é o capítulo 3 A Fronda Pretoriana, que tematiza as transformações passadas pelo Exército brasileiro ao longo do século XIX e das decorrências de tais alterações para as relações dessa corporação com o regime imperial. Sergio Buarque transcende a tematização do passado brasileiro e critica conjunturas temporais muito mais próximas de seu contexto: Primeiro, porque os componentes de uma classe, à qual se entregam armas para a defesa das instituições, estão facilmente sujeitos à tentação de usá- lãs para subverter as mesmas instituições, quando lhes parecer estas incômodas ou nocivas à sua nação ou à sua profissão, e a profissão se confunde muitas vezes com a nação para aqueles que a exercem. Depois, porque numa briga entre políticos e soldados, são praticamente nulas as possibilidades de se saírem bem os primeiros. Os políticos podem esquecer isso, mas os soldados bem sabem como a vontade de alguns pode ter muito mais valia do que a autoridade de outros, de acordo com o princípio irrefutável de que o homem armado sempre tem razão (HOLANDA, 2012: 387). Este trecho reverbera um sentido que ultrapassa a experiência passada e investe em direção ao tempo presente, o tempo vivido por Sérgio. Ele refere-se, implicitamente, a uma tentação ou uma pulsão sempre presente de os militares se adonarem do poder. Sergio Buarque de foi crítico e oposição ao regime militar, como demonstram diversas entrevistas e, por exemplo, seu pedido de aposentadoria da Universidade de São Paulo (USP) em 1969, como forma de protesto contra a aposentadoria compulsória de colegas. Do Império à República, conforme Arthur Assis, dissimula a crítica ao regime militar, como um maneira de torná-la viável em um espaço público sobre o qual era exercido forte controle estatal (ASSIS, 2010). Para Sérgio Buarque de Holanda, devemos inventar uma democracia, diferente das outras democracias, européia ou americana, calcadas em valores impessoais e racionais, associados à civilidade e à polidez (SANCHES, 2007). Assim, superando as raízes ibéricas, talvez a democracia no Brasil deixasse de ser um lamentável mal-entendido. 5
Referências ASSIS, A. A teoria da história como hermenêutica da historiografia: uma interpretação de Do Império à República. Rev. Bras. Hist.[online]. 2010, vol.30, n.59, pp. 91-120. COELHO, J. M. A democracia é difícil. Entrevista com Sérgio Buarque de Holanda. In: Sérgio Buarque de Holanda. Org. Renato Martins. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009 (Encontros), pp. 84-93 [Originalmente publicado na Revista Veja, jan., 1976]. COSTA, M. Para uma nova história: textos de Sérgio Buarque. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2004. DIAS, M.O.L.S. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. In: HOLANDA, S.B. Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1985 (Col. Grandes Cientistas Sociais, n. 51). HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1936.. Do Império à República. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Tradução Estevão de Rezende Martins. Brasília: UnB, 2001. SANCHES, R. R. Sérgio Buarque de Holanda: intelectual independente. Tese (Doutorado em sociologia). Universidade Estadual Paulista. Araraquara, 2007. 6