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6 Considerações finais Esta pesquisa teve como objetivos investigar como o nordestino migrante reconstrói as suas identidades sócio-culturais que emergem em sua história de vida (Linde, 1993) e refletir sobre o processo sócio-histórico-cultural da migração no Brasil e suas relações com o modo como o migrante se posiciona no contexto sócio-cultural de sua terra de origem, Lagoa da Roça, Paraíba, e da cidade do Rio de Janeiro, para a qual ele migra, buscando-se o entendimento dos significados que ele atribui a cada construção de identidade. Na minha pesquisa, escolhi um único indivíduo entre os porteiros do Rio de Janeiro para fazer a primeira entrevista, denominada Meu sonho era trabalhar na roça. Os dados forneceram tanta riqueza para a análise que achei pertinente manter o trabalho focalizado no mesmo entrevistado, já que os resultados que encontrava respondiam qualitativamente aos meus objetivos. Realizei, então, a segunda entrevista, nomeada Era roça mesmo, que me possibilitou conhecer melhor as experiências de Seu Francisco em sua terra natal e no Rio de Janeiro, contribuindo para o aprofundamento da análise. Na nossa terra, configuram-se os bons momentos, a perspectiva de vida e a esperança. Segundo Souza (2006), à medida que o indivíduo se desterritorializa, mais fragmentado se apresenta seu modo de vida. As narrativas de Seu Francisco revelam como ele se constrói diferentemente em suas experiências em sua terra natal, onde encontramos um homem agentivo, cujas ações orientam-se para a autonomia na roça, enquanto no Rio de Janeiro, torna-se mais passivo, sem expectativas definidas. Diferentes identidades emergem a partir das avaliações, que indexicam suas diferentes posturas sócio-culturais, alinhadas historicamente por ideologias políticas marcantes no processo da migração no Brasil. A análise dos dados mostrou um quadro tão rico de construção de identidades de Seu Francisco, que optei por apresentá-lo separadamente, de acordo com as seções analisadas. Em relação à motivação de deixar sua terra, vimos que Seu Francisco migra à procura de melhores condições financeiras na cidade do Rio de Janeiro,

102 no entanto, observamos o quanto conflituoso foi esse processo. Ao mudar de ambiente cultural e social, ele depara-se com circunstâncias as quais não faziam parte de suas expectativas. Ao começar seu trabalho na construção de prédio, pelo fato de não ser conhecido naquele lugar, sente-se sozinho, desamparado, triste. A análise da fala de Seu Francisco nos faz perceber que ele começa a se construir mais passivamente desde o momento em que sai de sua terra até sua chegada ao Rio de Janeiro, processo que se estende até o momento em que conversamos. Precisa da voz do outro para transmitir seu entendimento, afastando qualquer responsabilidade em relação ao que está sendo dito. Ele utiliza a fala reportada, estratégia lingüística usada como instrumento de posicionamento e de afastamento de responsabilidade para avaliar sua situação. Verificamos esse posicionamento na narrativa meus sonhos... que eu tinha lá no interior onde morei, era trabalhar na roça, segmento 1, linhas 13-16, entrevista 1, de como tomou a decisão de ir para o Rio de Janeiro, quando usa a fala dos colegas como motivação para deixar sua terra. Se eles não tivessem lhe dito como seria possível viver melhor no Rio de Janeiro, talvez Seu Francisco não tivesse se interessado em sair de sua roça. A partir do momento em que Seu Francisco sai de sua terra e muda as características de vida, que faziam parte de sua identidade cultural, ele começa a afastar as responsabilidades de abandonar suas raízes. Contraditoriamente, na segunda entrevista, em sua narrativa era roça mesmo, entrevista 2, segmento 2, linhas 162-175, parece que Seu Francisco reinterpreta aquela situação, re-significa e constrói a identidade sócio-cultural relacionada aos seus laços de família, como estratégia de acolhimento em seus traços culturais de origem, atribuindo a sua motivação de migrar ao fato da irmã e o cunhado já estarem morando no Rio de Janeiro. Ele não mais menciona a influência dos colegas em sua decisão, como na primeira entrevista, e sim a do cunhado, que já conhecia o Rio de Janeiro. Em relação a seu trabalho na roça, observamos no segmento 1 meus sonhos... que eu tinha lá no interior onde morei, era trabalhar na roça, linhas 6-10, entrevisra 1, que Seu Francisco posiciona-se agentivamente como um homem inserido na cultura de sua terra, que trabalhava, queria prosperar e preservar suas raízes, porém era marcado pela exclusão social. Seu Francisco usa o discurso do outro para me fazer conhecer a sua situação de trabalho. Embora

103 ele quisesse trabalhar nas plantações de sua terra, as oportunidades de espaço eram quase nulas, por isso ele não ganhava quase nada, não tinha futuro. Dessa maneira, ele faz um outro enquadre marcado por um ponto avaliativo que evolui da voz dos colegas para sua própria voz (Segmento 1, linhas 13-16, entrevista 1). Podemos observar que suas expectativas e intenções eram modeladas de acordo com as suas necessidades, culturalmente significadas através do senso comum que a cidade é moderna e o campo é atrasado. Na segunda entrevista, ao pedir que ele me contasse como era o trabalho dele na roça, podemos observar que esse enquadre desencadeia a narrativa mas o meu pai era ali sempre a gente tudo que fosse pra trabalhar... se seguindo ele, segmento 15, linhas 78-97, que traz à cena o relacionamento dele com o pai, indexicando uma identidade agentiva, que ele constrói a partir da família. Em seu trabalho na roça, enquanto abrigado em seu meio sócio-cultural, ele age, trabalha e se liberta das mãos do pai. O que notamos, no entanto, é que, após os dezoito anos, mesmo trabalhando com mais autonomia, ele continuava seguindo os mesmos caminhos traçados pelo pai. Tinha poucas opções de trabalho na roça, por isso, suas práticas culturais eram sua vida, o ar que respirava, como ele mesmo avalia. Sua identidade em sua terra emerge a partir de seu posicionamento como um homem que seguia a profissão do pai na roça, cujo trabalho era suficiente para sentir-se produtivo, não fosse o baixo retorno financeiro. Seu Francisco constrói sua identidade agentiva, pelo princípio da relacionalidade, quando, na segunda entrevista, segmento 3, meu primeiro trabalho foi o:: trabalho da roça mesmo, linhas 25-27, linhas 40-41 e entrevista 2, segmento 4 era só trabalhando, linhas 64-72, une a voz dele com as vozes das outras pessoas de sua terra, fazendo com que todos juntos compartilhassem das mesmas experiências na roça. Assim, ele constrói uma identidade individual sustentada por suas raízes e práticas grupais. Coloca-se ao lado dos outros trabalhadores, tornando sua situação de trabalho similar a deles. Parece que ele quer tornar aquela situação coerente para mim ao me fazer entender que se tratava de uma experiência de trabalho compartilhada. Quando pergunto, na primeira entrevista, pela realização de algum sonho no Rio de Janeiro. Seu Francisco faz menção ao trabalho como prioridade em sua vida e fala da solidariedade encontrada. Podemos verificar, em sua explicação aí é uma família enorme que eu tenho aqui no meu trabalho entendeu?,

104 segmento 18, linhas 39-42, entrevista 1, que ele constrói uma identidade coletiva ao justificar, através de uma avaliação, que poderia considerar seu trabalho uma realização de sonho no Rio de Janeiro, já que o fazia sentir-se numa família. Assim, ele se constrói a partir de similaridades que o adequavam para fazer parte do grupo de trabalhadores do prédio. Cabe salientar, em relação a seu trabalho no Rio de Janeiro, que, na segunda entrevista, no segmento 13 caramba to com cinqüenta anos, linhas 538-554, ele se constrói como um homem satisfeito com sua situação atual, mas inseguro em relação ao futuro. Logo após afirmar que estava bem com sua vida, Seu Francisco usa a fala da esposa para mostrar uma situação de insegurança em relação ao trabalho, que o preocupava. Podemos observar que a fala do outro indexica uma certa passividade em assumir suas interpretações. Parece que ele precisa do outro para avaliar sua situação. No segmento 12 não não é tempo perdido não você procure ta em tempo, linhas 286-287, entrevista 2, verificamos que Seu Francisco entende que a falta de estudo também fazia com que ele se sentisse inseguro no trabalho. Ele considera, em uma avaliação, a idéia de continuar seus estudos através da fala de outras pessoas que o aconselhavam a estudar. A avaliação é um elemento importante nas narrativas de Seu Francisco. No momento em que conversa comigo, na primeira entrevista, ele pode refletir, significar e avaliar os eventos e situações que constituem sua história de vida. Muitas das avaliações que ele faz são construídas com grande emoção. Ao usar a expressão chorando, com uma acentuação forte na primeira sílaba, no segmento 8 chegar aqui achar tudo assim, linhas 97-105, entrevista 1, ele constrói a identidade de um homem triste, sozinho, desamparado. Ainda na primeira entrevista, no segmento 10 você quer ir embora agora voltar comigo pra Paraíba, linhas 120 123, ele sustenta que, ao começar sua vida no Rio de Janeiro, trabalhando numa obra, sentiu-se abandonado. Usa a fala reportada como estratégia de posicionamento, construindo-se com mais passividade ao demonstrar que deixaria tudo para voltar para sua terra, o que ocorreria se alguém o despertasse para isso. Na primeira entrevista, Seu Francisco apresenta um self emocional conflituoso que sinaliza seu posicionamento em relação à sua chegada ao Rio de Janeiro. Suas emoções respondem aos valores culturais, que orientam sua agência

105 nessas circunstâncias. Na busca de entendimento para a situação que enfrentara ao chegar em uma cidade que lhe era estranha, assumindo uma ocupação que lhe era completamente nova, vimos, no segmento 8 chegar aqui achar tudo assim, linhas 91-95, que ele faz uso de uma avaliação comparativa: sentia-se como se tivesse sido encaixotado. Constrói-se mais passivo ao fazer entender que se sentia como forçado àquela situação que não correspondia às suas expectativas de uma vida melhor na cidade grande. Naquele momento, a situação que vivenciava não era melhor do que a que tinha em sua terra antes de migrar, por isso, ele afasta a sua responsabilidade em sua decisão de deixar a roça. A análise mostrou, no segmento 23 mas amigo mesmo aqui..., linhas 221-242, que Seu Francisco possui expectativas diferentes das minhas e que nossos conhecimentos estão localizados em experiências próximas e distantes umas das outras (cf. Geertz, 1999), assim como essas experiências são orientação sócio-cultural na maneira como ele se constrói a cada situação. O conceito que ele tem de amigo é diferente do que me foi ensinado. Eu entendia que todos fazem amigos em qualquer lugar onde vivem, porém, minha expectativa estava muito distante da de Seu Francisco. Era como se, até aquele momento, ele nunca tivesse considerado o fato de ter amigos ou não. Por isso, ele leva algum tempo para me falar quem ele poderia entender como amigo no Rio de Janeiro. Quando pergunto se ele tinha amigos em sua terra, que acompanhamos no segmento 17 aí era meus amigos era aqueles assim, linhas 243-252, Seu Francisco não tem dificuldade em responder, porém não sabe quem ele poderia considerar como amigo. Fala de vizinhos, colegas do colégio, mas não se refere a uma pessoa como amigo, construindo-se como um homem que não se preocupava em ter amigos. Seu Francisco deixa claro em sua entrevista que trabalho e família estão fortemente integrados em sua construção de identidade. Na segunda entrevista, segmento 22 assim agradeço a deus hoje to bem é hoje, > entendeu?<, linhas 578-586, podemos observar que, mesmo trabalhando, com sua casinha para morar, ele alinha-se estar satisfeito nos últimos dez anos, depois que sua vida com sua esposa se estabilizou. É importante ressaltar que a narrativa sobre seu relacionamento com a esposa não partiu de perguntas diretas, mas de sua tomada de turno com o enquadre escolhido por ele, o que sustenta o fator família na

106 construção de identidade no Rio de Janeiro, tornando-o mais agentivo na busca de um bom relacionamento com a esposa. Ao retornar para sua terra, dois anos após a migração, observamos no segmento 15 "ah eu achei todo mundo assim diferente, linhas 25-36, que Seu Francisco constrói-se diferente da sua família na roça. Suas práticas culturais anteriores ganham nova significação à medida em que ele vivencia novas experiências em outra cidade. Por isso, ele avalia sua família como se eles estivessem diferentes, sem perceber que ele também tinha mudado. Outro ponto importante observado é o sentimento de conformismo que Seu Francisco transmite em suas circunstâncias de vida, característica de passividade. Ao final da primeira entrevista, quando pergunto pelos sonhos que realizou no Rio de Janeiro, segmento 18 aí é uma família enorme que eu tenho aqui no meu trabalho entendeu?, linhas 48-51, entrevista 1, ele atribui a Deus, ao destino e à ajuda de colegas os caminhos que tinha seguido, construindo-se satisfeito por escolhas pelas quais ele não assume responsabilidade. Consideramos, no entanto, que a dedicação de Seu Francisco ao trabalho foi fator importante para a sua permanência no mesmo emprego por vinte e oito anos. Ainda no segmento 18, linhas 37-51, entrevista 1, Seu Francisco avalia sua vida re-construída, posicionando-se como um homem satisfeito no momento por estar com uma família e o mesmo emprego há vinte e oito anos. Apesar do sofrimento, dos conflitos e arrependimento, re-constrói identidades a partir: de um novo tipo de trabalho, bem diferente do que tinha em sua terra; de uma outra família, diferente da que foi obrigado a deixar; e a partir de outros relacionamentos, que tanto o ajudaram a ter forças para continuar. Na segunda entrevista, segmento 22 assim agradeço a deus hoje to bem é hoje, > entendeu?<, linhas 578-586, ele diz estar bem no momento, com seus filhos, após reconstruir sua vida com sua esposa. Podemos, então, entender, que a migração para o Rio de Janeiro, apesar de ter sido um processo conflituoso, havia lhe proporcionado uma certa estabilidade financeira e familiar, que ele não pôde encontrar em sua terra antes de migrar, e que, naturalmente, foi resultado da agência, que ele não assumia. Podemos observar no decorrer das entrevistas, que existe uma grande negociação sócio-cultural entre entrevistador e entrevistado. Essa negociação é construída através dos enquadres e alinhamentos que eu e Seu Francisco usamos

107 para dar significado aos eventos e ações, que são expressos no momento da nossa conversa, produto de uma interação criativa. Assumimos papéis predeterminados - o porteiro nordestino que vai ser entrevistado pela professora - mas que se transformam à medida que interagimos durante as entrevistas. A partir dos enquadres e alinhamentos construídos, criamos uma estrutura de participação em que eu também me alinho, co-construo e construo enquadres que o fazem pensar, interpretar e negociar comigo suas experiências de vida e sentimentos. Nossa interação é construída gradativamente desde a primeira entrevista, de tal modo que, a assimetria se reduz na segunda entrevista, que passa a assumir algumas características de uma conversa informal. Minha experiência no nordeste me faz sentir parte do grupo dele e eu uso o recurso do animador encaixado quando me alinho com ele, e co-construo seu desejo de voltar à sua terra. Faço as minhas palavras serem as de Seu Francisco (Segmento 27, linhas 650-652, entrevista 2), ratifico a minha vontade de vê-lo voltar e o tranqüilizo (Segmento 27, linhas 617-618, entrevista 2). Verificamos que, ao final da segunda entrevista, chego a fazer sugestões para que ele voltasse à terra dele, escrevendo para o Gugu ou juntando um dinheirinho (Segmento 27, linhas 637-638, 640-641, entrevista 2). Como pesquisa qualitativa, a entrevista faz um estudo sobre a representação social na vida cotidiana. A análise das entrevistas nos permite conhecer um pouco das experiências de Seu Francisco, aprendendo com ele muito sobre a vida de um nordestino e conhecendo a subjetividade sócio-cultural que constitui, com outras tantas vidas pertencentes ao mesmo grupo de sua roça em Lagoa da Roça, Paraíba, Nordeste, Brasil, a condição do indivíduo na sociedade. A moderna entrevista demonstra como nossa vida faz sentido ao compartilharmos nossas experiências. Por isso, precisamos fazer das nossas pesquisas um lugar de interação. É importante entender que somos o outro para o outro e isso já é uma semelhança (cf. Buscholtz e Hall, 2003). A nova pesquisa é uma maneira de construir a vida social ao tentar entendê-la (Moita Lopes, 2006). Espero que esta pesquisa possa contribuir para um maior entendimento das migrações nordestinas para o Rio de Janeiro, como um movimento individual; que se leve em consideração o processo migratório do nordestino caracterizado pelas esperanças, sentimentos e emoções que se revelam nas interações sociais, deste mesmo nordestino, que chega a um meio sócio-econômico-cultural muito

108 diferente do que deixara em sua terra de origem. Que a lógica das representações dos grupos de migrantes possa dar maior enfoque ao papel social do migrante nordestino como todo indivíduo que trabalha, acerta, erra, tenta e compartilha experiências. Entender que estamos em contínuo processo de construção de identidades e observar com mais cuidado como, com quem e onde as estamos construindo é ser agentivo no mundo, abrir alternativas em nossos relacionamentos e colaborar numa sociedade mais humana, mais preocupada com as pessoas (Moita Lopes, 2006); é aplicar responsabilidade e solidariedade para com o outro a partir de uma nova forma de conhecimento na vida social (Moita Lopes, 2006). Quando conhecemos e respeitamos as particularidades individuais entendemos que os outros vivem como nós nos percebemos vivendo: de acordo com regras culturais ou atuando com papéis sociais determinados, mas como pessoas que vivem se indagando o que devem fazer, cometendo erros, fazendo escolhas, vacilando, tentando parecer bons e procurando momentos de alegria (Abu-Lughod, 1993). Sabemos que um porteiro é nordestino pelo seu modo de falar, ou pelo tipo físico, assim como sabemos que existem muitos nordestinos porteiros de prédio no Rio de Janeiro. Os resultados da análise desta pesquisa nos fazem entender que existe algo mais além das evidências, que se manifesta através de um processo sócio-histórico-político, não visível, significado através de sonhos e esperanças fragmentados pelos caminhos de Seu Francisco. Esta pesquisa trouxe à cena uma história de um homem comum, escondido atrás da cortina de um palco de nordestinos, esquecidos no cenário de um país que tem pressa e não tem tempo de ouvir o que esses nordestinos têm a contar. Precisamos estar atentos para que o moderno, que fecha a cortina do atrasado, não esconda as histórias de vida do nosso povo, precioso instrumento de conhecimento humano.