A trajetória do desenvolvimento do pensamento linguístico: inserções críticas em relação ao cenário pré-século XX

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Transcrição:

A trajetória do desenvolvimento do pensamento linguístico: inserções críticas em relação ao cenário pré-século XX Thiago Soares de OLIVEIRA 1 Resumo Este trabalho pretende abordar, de forma pontuada, a trajetória do desenvolvimento do pensamento linguístico ocidental anterior ao século XX, construindo um percurso evolutivo dos estudos sobre linguagem, ressaltando alguns dos principais autores a se preocuparem com o tema, desde Platão até os neogramáticos do século XIX. Adota-se como metodologia a pesquisa bibliográfica, tendo em vista a farta produção acerca do assunto. Como não se pretende uma simples revisão de literatura, ao longo do trabalho, várias inserções crítico-analíticas são promovidas a fim de demonstrar o caráter mais filosófico do que científico das preocupações com a linguagem no período que antecede o século XX. Palavras-chave: História da Linguística; Linguística; Linguagem. Abstract This study addresses, punctuated way, the trajectory of the development of previous Western linguistic thought the twentieth century, building an evolutionary course of studies on language, highlighting some of the key authors to be concerned with the subject, from Plato to the neogrammarians nineteenth century. We adopted the methodology as literature, in view of the abundant production on the subject. It is not intended as a simple literature review, throughout the work, several critical-analytical inserts are promoted in order to demonstrate the more philosophical than scientific concerns about the language in the period prior to the twentieth century. Keywords: Linguistic History; Linguistics; Language. 1 Mestrando em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Analista Judiciário e Professor de Língua Portuguesa da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, CEP 28035-100, Campos dos Goytacazes - RJ, CEP. E- mail: so.thiago@hotmail.com.

Considerações iniciais Ainda que os trabalhos atuais enfatizem os estudos linguísticos partindo temporalmente do século XX como base de análise em razão da publicação da obra saussuriana intitulada Curso de Linguística Geral, momento a partir do qual emergiu a ciência linguística moderna tal como hoje é conhecida, esses trabalhos não retiram da História da Linguística a propriedade de explicar, relatar e respaldar a evolução de inúmeras teorias linguísticas que hoje estão em voga. Considerando, desse modo, que muito das ideias atuais são o reflexo das modificações pelos quais pensamentos linguísticos passaram, este trabalho se justifica pela importância acadêmica introdutória nos estudos da linguagem, para alunos de graduação ou não, uma vez que propicia a reflexão crítica e subsidia as possibilidades de aprofundamento das ideias dos autores citados. Aliás, não se pretende esgotar o tema proposto, mas fomentar reflexões a respeito de como as preocupações filosóficas sobre a linguagem evoluíram, possibilitando, inclusive, a emergência da Linguística como a ciência que estuda a linguagem, em termos sintéticos. A obra de Saussure, todavia, não será objeto desta pesquisa, devido ao objetivo principal de abordar a trajetória do desenvolvimento do pensamento linguístico ocidental anterior ao século XX. Nesse rumo, servem de supedâneo teórico autores que transitam entre áreas do saber, tais como a História da Linguística e a Linguística, independentemente de sua área precípua de estudo, porque eles tendem ao viés interdisciplinar de abordagem dos conteúdos. Para efeitos metodológicos, adota-se a pesquisa bibliográfica a fim de adequar a fonte de dados, que se consubstancia na obra desses autores, à pesquisa que se pretende. Além do mais, a farta literatura a respeito dos estudos linguísticos permite a articulação teórico-analítica proposta neste trabalho. Por fim, é preciso ressaltar que a imensa dimensão em que se inserem os estudos linguísticos não pode ser esgotada em poucas páginas, tampouco pode ser completa a trajetória de evolução do pensamento linguístico, eis que ambos demandam contínua reflexão crítica. No entanto, isso não impede que a imensidão linguística seja explorada, inclusive de forma retrospectiva. Por óbvio, trabalhos que se dedicam aos estudos da linguagem pós-século XX também são importantes, pois demonstram que, com efeito, os pensamentos linguísticos evoluíram, seja reformulando teorias vigentes, seja ocupando o seu lugar.

Traçando o percurso linguístico precedente ao século XX Antes do surgimento da Linguística como ciência e da definição de seus objetos teóricos, já havia a preocupação com a linguagem por motivos diversos, tais como: "a necessidade de manter viva a pronúncia correta de textos religiosos ancestrais", como ocorreu na Índia antiga; "a necessidade de um vocabulário técnico e conceitual para ser usado na análise lógica das proposições", exigência de filósofos gregos clássicos, entre outras razões (WEEDWOOD, 2002, p.17). Na verdade, "a história registrada da linguística ocidental começa em Atenas: Platão foi o primeiro pensador europeu a refletir sobre os problemas fundamentais da linguagem" (WEEDWOOD, 2002, p. 21). Segundo WEEDWOOD (2002), esse filósofo, por meio de um de seus famosos diálogos, o Crátilo, representou a atmosfera de questionamento que pairava sobre a cidade-estado de Atenas. Em sua obra, Platão retrata três interlocutores com visões distintas acerca das conexões existentes entres as palavras e aquilo que elas denotavam. O primeiro deles, Crátilo, sustentava que a língua espelhava exatamente o mundo; o segundo, Hermógenes, entendia a língua como arbitrária, em contradição a Crátilo; o terceiro interlocutor, Sócrates, representava o ponto intermediário entre os dois primeiros, apontando os pontos fortes e as fraquezas de ambos. Hermógenes, por exemplo, foi contestado em longo diálogo por Sócrates, entendedor de que as palavras, como ferramentas que são, necessitam de propriedades para que se tornem adequadas ao uso. Por isso, os nomes não poderiam ser inteiramente arbitrários e impostos ao bemquerer. Filósofos posteriores a Platão, como Aristóteles, seu discípulo, e os estoicos, também se dedicaram a entender a relação entre as palavras e as coisas, mas observaram com detida atenção os constituintes semânticos dos enunciados. Aristóteles, em De interpretatione, alinhavou o entendimento desse processo em três etapas: os signos escritos eram a representação dos signos falados, que, na verdade, representavam impressões na alma. Estas, por sua vez, eram apenas a aparência das coisas reais. Vale registrar que "foi Aristóteles, ao segmentar o discurso em partes e investigar a estrutura da oração, quem sedimentou as bases da gramática grega" (SANTOS, 2009, p. 11). Esse trabalho foi impulsionado em seguida por Dionísio de Trácia (séc. II a. C.), com a imposição do antigo dialeto falado na província de Ática, na Grécia, aos seus falantes.

Eis aí o nascimento da "gramática no sentido que se mantém hoje" (SANTOS, 2009, p.11). Ainda nesse viés de entendimento da linguagem, os estoicos, bem como outros autores, acrescentaram considerações à noção primeira proposta por Aristóteles, entendendo que, "embora todos os homens possam receber as mesmas impressões das coisas que percebem, como sustentava Aristóteles, os conceitos que eles formam dessas impressões diferem, e são eles que estão representados na fala" (WEEDWOOD, 2002, p. 27). Essa asserção de Weedwood (2002) confirma como as novas ideias, concebidas ou reestruturadas a partir de outras preexistentes, vão continuamente renovando o rumo da história, num processo sucessivo e constante, a fim de encontrar um suposto equilíbrio para o conhecimento que, ao ser desestabilizado por um sobrevindo problema, acaba por reprojetar um novo trajeto histórico. Pode-se perceber, nessa direção expositiva, que as primeiras preocupações a respeito do que a linguagem representava foram mais filosóficas do que linguísticas e, desde a época de Platão (429-347 a.c.), essa inquietação se avolumou, perpassando múltiplos entendimentos de diversos estudiosos que se dedicaram ao assunto. Na verdade, a ciência linguística moderna tomou forma apenas no início do século XX, com a publicação póstuma dos estudos do professor suíço Ferdinand de Saussure. Previamente ao advento dessa obra, as constatações filosóficas sobre a linguagem não eram estritamente linguísticas, embora amplas e também abarcando a preocupação com a língua, implicando uma preocupação com as coisas do mundo. Isso não significa, entretanto, que as várias concepções a respeito da questão da linguagem não se encontrassem em determinado ponto da articulação das ideias. Como foi visto anteriormente, Crátilo, personagem da obra platônica homônima, já defendia a noção de língua como espelho do mundo, diferentemente do que sustentava Hermógenes, outro interlocutor do diálogo. Contudo, ainda não havia o contorno da clássica noção de Saussure (1995), de que a língua é convencionada e social, sendo a fala individual e parte da língua. Sobre esse assunto, há referência em obras recentes cuja finalidade precípua não é firmar-se como um manual de história da Linguística, mas explicar a capacidade do ser humano de interagir socialmente, valendo-se, para tanto, da língua. Isso significa que, mesmo à guisa de introito, a história da Linguística bem embasa algumas pretensões analíticas no que concerne ao amplo assunto da linguagem. Koch (2012), por

exemplo, em breve introdução à sua obra Inter-ação pela Linguagem, explica sinteticamente que as várias formas segundo as quais, ao longo da história, a linguagem humana tem sido concebida são diferentes. Algumas delas ainda encontram adeptos na atualidade, como é o caso, segundo a autora, da mais antiga das concepções, a qual entende a linguagem humana como representativa do mundo e do pensamento, ou seja, a noção de linguagem como espelho. Vale lembrar que esse era o juízo do interlocutor Crátilo na obra de Platão. A partir dessa percepção mais antiga, conforme Koch (2012, p. 7), "o homem representa para si o mundo através da linguagem e, assim sendo, a função da língua é representar (= refletir) seu pensamento e conhecimento de mundo". De acordo com a segunda concepção, que entende a língua como um código, assim como o fez Hermógenes em Crátilo, considerando-a arbitrária, a transmissão de informações passa a ser a função primordial da linguagem. Quanto à terceira concepção, cujo rudimento já se detectava nas explicações de Sócrates, terceiro interlocutor da obra platônica, "é aquela que encara a língua como atividade, como forma de ação, ação interindividual finalisticamente orientada; como lugar de interação que possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais diversos tipos de atos [...]" (KOCK, 2012, p. 7-8). Nessa linha expositivo-reflexiva, é possível perceber, apesar de breves as explanações retrotecidas, que "o interesse pela linguagem é muito antigo", mas foram os gregos aqueles que se preocuparam "em definir as relações entre o conceito e a palavra que designa, ou seja, tentavam responder à pergunta: haverá uma relação necessária entre a palavra e seu significado?" (PETTER, 2014, p. 12). Segundo Weedwood (2002), ainda que os gregos tenham elaborado vários dos conceitos que desempenham hoje papel fundamental na Linguística moderna, bem como empreendido estudos de gramática, tal como o fez, por exemplo, Apolônio Díscolo em relação à sintaxe, esses estudos ficaram inacessíveis até sua devida adaptação para o latim utilizado na Antiguidade. Por isso é que se afirma que a gramática grega não foi transmitida ao Ocidente diretamente, mas intermediada pelos romanos. Em outras palavras, "foi através dos gramáticos romanos da Antiguidade tardia que a doutrina gramatical grega, filtrada pela língua latina, se incorporou à tradição ocidental dominante", consoante explica Weedwood (2002, p. 34). Nessa direção, já se compreende que, partindo do constante interesse em entender as coisas do mundo com base na relação entre a palavra e o significado dela

advindo, os estudos gramaticais surgiram e foram avançando, adquirindo relevância, alcançando uma posição mais sistematizada sem, contudo, abandonar as reflexões filosóficas que sempre funcionaram como cenário para as discussões sobre a linguagem. Esse percurso conjunto era trilhado porque, "antigamente, a Linguística não era autônoma, submetia-se às exigências de outros estudos, como a lógica, a filosofia, a retórica, a história, ou a crítica literária" (PETTER, 2014, p. 13), o que, a propósito, marca a Linguística como um estudo interdisciplinar desde a sua origem, uma vez que não se limitava - e ainda não se limita - à visão de uma única área de conhecimento. Ao contrário, os estudos linguísticos, que posteriormente formariam a ciência linguística tal como hoje é conhecida, sempre foram circunscritos pelos vários ramos do conhecimento. Nessa linha traçada acerca da trajetória da relevância dos estudos gramaticais, a linguagem sempre foi personagem principal do cenário teórico. Há, contudo, um conceito definido sobre o que de fato é linguagem? Há diferença entre a conceituação desta e a de língua? Sobre linguagem, Lyons (2012) explica que várias são as concepções atribuídas pelos autores, mas que se trata, na verdade, de uma pergunta de caráter profundo com a qual os linguistas não deparam constantemente. Estudiosos como filósofos, psicólogos e linguistas "frequentemente salientam que é a posse da linguagem o que mais claramente distingue o homem dos animais" (LYONS, 2012, p. 2), o que significa que a linguagem pode ser entendida como "a capacidade humana de se comunicar por meio de signos" (FIORIN, 2013a, p.13). Em razão da finalidade deste trabalho, as concepções adotadas por Fiorin (2013a) e Lyons (2012) acerca do conceito de linguagem serão o ponto sobre o qual se desenvolverá a definição de língua. Ainda com referência à linguagem, Fiorin (2013a) acrescenta que se trata do resultado da necessidade natural de comunicação que é inerente à espécie humana, sendo que "a aptidão para linguagem é um traço genético" que, para se realizar, "passa por aprendizado, que é de domínio cultural" (p.14). E complementa, a respeito desse assunto, afirmando que Os sentidos podem manifestar-se de diversas maneiras: por meio de sons, como no caso da linguagem verbal, por meio de imagens, como na pintura, por meio de gestos, como nas línguas de sinais utilizadas pelos surdos. Temos linguagens não mistas, cujos significados se manifestam apenas de uma maneira: a escritura, a pintura, a escultura, a língua dos sinais; temos linguagens mistas, cujos significados se manifestam de diferentes maneiras, como o cinema, em que os

sentidos são veiculados pelo sons da linguagem verbal e da música, pelas imagens da linguagem visual, etc. Assim, podemos falar da linguagem como uma capacidade específica da espécie humana de produzir sentidos, de se comunicar, mas também das linguagens como as diferentes manifestações dessa capacidade (FIORIN, 2013a, p. 14). No tocante à alegação de Fiorin (2013a), percebe-se que as diversas formas de linguagens, como capacidades específicas do homem e com finalidades comunicativas, podem ser acolhidas sob a noção de linguagem considerada em sentido amplo, mais geral. Para esse autor, "comunicar não é só transmitir informações, pois as pessoas se comunicam até para não dizer nada". Nesse sentido, entendida de forma abrangente, a linguagem informa, influencia, expressa a subjetividade, cria laços entre indivíduos, fala sobre si própria, põe-se à disposição da estética, estabelece identidades sociais, cria novas realidades, etc. (FIORIN, 2013a), tornando possíveis não só as necessidades puramente comunicativas, mas também as interacionais. Para isso, considera-se a existência da linguagem nesses dois principais aspectos, sem, entretanto, descartar as nuanças a ela pertencentes. Já no que concerne ao conceito de língua, Lyons (2012) 2, prosseguindo com o raciocínio, ao examinar as contribuições de Sapir (1929), Bloch e Trager (1942), Hall (1968), Robins (1979) e Chomsky (1957), contidas em obras que datam do século XX, chega à conclusão de que "a maioria deles adotou a visão de que a línguas são sistemas de símbolos projetados, por assim dizer, para a comunicação" (LYONS, 2012, p. 6). Eis aí, portanto, a compreensão de que, diferentemente da linguagem, a língua é convenção, "uma forma de categorizar o mundo, de interpretá-lo" (FIORIN, 2013a, p.16), interagindo socialmente. Ao longo dos anos, a língua foi objeto de numerosos estudos, importando, para este trabalho, as concepções empregadas antes do século XX. Por isso, não serão tecidas considerações a respeito da obra saussuriana. Retomando o caminho pelo qual percorreram os estudos linguísticos, vale ressaltar que os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX também foram palco de evolução e disseminação da língua. Segundo Petter (2014), embora o latim tenha mantido seu prestígio como língua universal, o movimento de Reforma religiosa no século XVI provocou a tradução de livros sagrados para outras línguas a fim de adquirirem maior abrangência territorial. Já nos séculos XVII e XVIII, o grande vulto foi a chamada Gramática de Port Royal, de Lancelot e Arnaud, que foi modelo para outras gramáticas 2 Para maior aprofundamento sobre a questão, conferir o capítulo Linguagem da obra Linguagem e Lingüística, Lyons (2012).

do século XVII, por demonstrar que "a linguagem se funda na razão, é a imagem do pensamento e que, portanto, os princípios de análise estabelecidos não se prendem a uma língua particular, mas servem a toda e qualquer língua" (PETTER, 2014, p. 12). Assim, do século XVI ao XVIII, foram retomadas preocupações dos antigos a respeito da linguagem e aprimoradas as sistematizações da língua. No século XIX, surgem, graças ao desenvolvimento de um método histórico, as gramáticas comparadas e a Linguística Histórica. Para Petter (2014), O pensamento linguístico contemporâneo, mesmo que em novas bases, formou-se a partir dos princípios metodológicos elaborados nessa época, que preconizavam a análise dos fatos observados. O estudo comparado das línguas vai evidenciar o fato de que as línguas se transformam com o tempo, independentemente da vontade dos homens, seguindo uma necessidade própria da língua e manifestandose de forma regular" (PETTER, 2014, p. 12). O método comparativo, conforme explica Mussalim (2012, p. 29), era um procedimento da Linguística Histórica, a partir do qual se descrevia "uma língua (sua forma fonética, sua organização sintática etc.) não por meio de uma análise interna dela mesma, mas pela comparação com outras diferentes línguas". Segundo Weedwood (2002), apesar das críticas 3 durante o século XIX, é importante entender que O método comparativo, na linguística histórica, se preocupa com a descrição de uma língua mais antiga ou de estágios mais antigos de uma língua com base na comparação das palavras e expressões apresentadas em diferentes línguas ou dialetos derivados dela (p. 115-116). Percebe-se, nesse sentido, o marcante interesse descritivo da Linguística (não prescritivo) que, no século XX, alcançaria o posto de ciência. Percebe-se também que, mesmo não sendo o interesse propriamente dito da Linguística, os estudos da linguagem do século XIX ofereceram material sistematizado suficientemente propício à manutenção da prescrição normativa que outrora havia sido instituída pela trajetória histórica de dominação dos povos. A prescrição surgiu no século III a. C. a partir da necessidade de normatizar a língua do povo que foi dominado por Alexandre Magno, conhecido como O Grande, criando um "padrão uniforme e homogêneo que se erguesse 3 Para maior aprofundamento, ver item 3.5.3, Críticas ao método comparativo, capítulo 3, A linguística no século XIX, em História Concisa da Linguística, de Barbara Weedwood.

acima das diferenças regionais e sociais para se transformar num instrumento de unificação política e cultural" (BAGNO, 2007a, p. 63). A respeito disso, importa ressaltar que Franz Bopp (1791-1867) destacou-se no século XIX, ao lançar "sua obra sobre o sistema de conjugação do sânscrito, comparado ao grego, ao latim, ao persa e ao germânico" (PETTER, 2014, p. 12), marcando, com esse estudo de gramática comparada, o surgimento da Linguística Histórica. Nessa obra, Bopp procedeu à comparação da morfologia dos verbos de cada uma dessas línguas, demonstrando que havia correspondências sistemáticas entre elas, o que utilizou como fundamento e como meio empírico para revelar o parentesco existente entre esses idiomas (MUSSALIM, 2012). Apesar de considerada por Petter (2014) como o marco do surgimento da Linguística Histórica, os estudos de Bopp enfocaram mais a comparação morfológica do que os vieses da história. De acordo com Mussalim (2012, p. 29), foi apenas com Jacob Grimm (1795-1863) e seu livro Deutsche Grammatik que o estudo propriamente histórico estabeleceuse, porque, nessa obra, o estudioso "interpretou a existência de correspondências fonéticas sistemáticas entre as línguas como resultado de mutações regulares no tempo", chegando a essa ilação após a análise do "grupo germânico das línguas indo-europeias, que tinha seus dados distribuídos em uma sequência de 14 séculos, o que possibilitou o estabelecimento de uma sucessão histórica das formas que estava comparando". Desse modo, a Linguística Histórica (ou diacrônica) provou a capacidade da mutação linguística 4 no curso do tempo, havendo, Portanto, uma diferença importante entre o trabalho de Bopp, anteriormente citado, em que o linguista buscava estabelecer o parentesco entre as línguas a partir do estudo de textos de diferentes línguas, sem, entretanto, pretender seguir nenhuma cronologia entre eles, e o trabalho de Grimm, que, diferentemente, pretendia estabelecer a sucessão das formas que descrevia (MUSSALIM, 2012, p. 29). Além de Bopp e Grimm, outros estudiosos, como Hermann Osthoff (1847-1909) e Karl Brugmann (1849-1919), marcaram o século XIX com investigações a respeito da língua e da linguagem, mas a estes últimos interessava a investigação dos mecanismos de mudança linguística, para, "a partir deles, desvendar os princípios gerais do 4 A mutação linguística é entendida por Weedwood (2002) em sentido amplo, englobando as mudanças fonéticas, sintáticas e semânticas.

movimento histórico das línguas e não apenas reconstruir estágios remotos das mesmas" (MUSSALIM, 2012, p. 30). Considerados neogramáticos devido aos posicionamentos adotados em relação ao estudo linguísticos, Osthoff e Brugmann teciam críticas ao pressuposto de independência das línguas e à facilidade com que seus antecessores interpretavam as irregularidades percebidas relativamente às mudanças linguísticas, considerando-as exceções casuais e fortuitas. Por isso a desaprovação daqueles estudiosos recaía sobre a suscetibilidade de não se dar à língua o aspecto científico que, para eles, era existente nesses estudos (MUSSALIM, 2012). Ante todas as considerações e explanações articuladas anteriormente, é possível depreender que foi lento o desenvolvimento das diversas perspectivas que sobre a língua recaíram. Não se esgotaram, por óbvio, as possíveis abordagens sobre o assunto tampouco foram mencionados todos os estudiosos que se debruçaram sobre a questão da linguagem, dada a relevância e a dimensão do assunto em tela. Neste trabalho, foi traçado um percurso pontual onde figuraram alguns importantes autores como personagens que construíram parte de uma ampla trajetória acerca do pensamento sobre linguagem anteriormente ao século XX. Considerações finais Em poucas linhas, autores foram articulados, convergindo seus pensamentos, com o fito de traçar uma trajetória do pensamento linguístico. Trata-se mais de uma trajetória sinótica do que exaustiva, dado que o assunto aqui abordado é assaz vasto e comporta várias percepções que não a histórica, como a empírica, por exemplo. Entretanto, optou-se pela perspectiva histórica em razão do próprio escopo traçado e do intento interdisciplinar de cruzar autores representativos de disciplinas já bem delimitadas teoricamente, sem que fossem rompidas as fronteiras entre elas. O trabalho construído evidencia, com base na História da Linguística, que a preocupação com a linguagem é bem mais antiga do que o advento da ciência Linguística, no século XX. Já na época de Platão, as ideias a respeito da relevância do ato de comunicar fervilhavam, principalmente na mente desse filósofo, sendo ele o primeiro a promover a reflexão sobre os problemas fundamentais de linguagem. Não havia, na época do filósofo, a preocupação em distinguir os conceitos de língua e de

linguagem, mas a de preservar textos antigos e um vocabulário técnico e conceitual a ser utilizado nas análises lógicas. Depreende-se, ainda, que as novas ideias se reestruturam com base em ideias preexistentes, demonstrando que os novos pensamentos podem ser resultado tanto da reconfiguração de pensamentos outrora vigentes quanto da refutação de noções anteriormente em voga. Isso, com efeito, é teoricamente representativo, especialmente porque reforça a importância dos estudos históricos e consolida o fato de que a evolução linguística não é casual, mas motivada por fatores que podem ser investigados por meio da análise das perspectivas históricas. Sob outra óptica, a perspectiva empírica também pode fornecer caminhos analíticos outros, motivo pelo qual se ressalta que não se intenciona exaurir as vias de análise propostas para esta pesquisa teórica. Diante disso, fica o registro final de que todas as ilações a que se pôde chegar foram possíveis em virtude da relevância que os assuntos relacionados à linguagem foram adquirindo durante os anos, realmente em escala evolutiva, desde as ideias filosóficas seminais de Platão até as discussões mais atuais promovidas por novas disciplinas linguísticas, tais como a Análise do Discurso e a Pragmática, por exemplo. Logo, eis mais uma razão para que as reflexões e discussões acerca da linguagem se aprofundem e aprimorem ainda mais. Referências bibliográficas BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. 1ª Edição. São Paulo: Parábola Editorial, 2007a. FIORIN, J. L. A linguagem humana: do mito à ciência. In: FIORIN, J. L. (org.). Linguística? O que é isso?. São Paulo: Contexto, 2013a. KOCH, I. G. V. A inter-ação pela linguagem. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2012. LYONS, J. Lingua(gem) e lingüistica: uma introdução. 1. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2011. MUSSALIM, F. História das ideias linguísticas. Curitiba: IESDE, 2012. PETTER, M. Linguagem, língua, linguística. In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Linguística. I. Objetos teóricos. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2014 SANTOS, V. L. Ensino de Língua Portuguesa. Curitiba: IESDE, 2009. SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.

WEEDWOOD, B. História concisa da Lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.