FILHOS... FILHOS? MELHOR NÃO TÊ-LOS : A FEMINILIDADE ALÉM DA MATERNIDADE. Por: ANIA REIS DE ARAGÃO

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Transcrição:

Artigo publicado no livro Questões Cruciais para a Psicanálise Série Teoria da Clínica Psicanalítica I Organizadoras: Andréa Hortélio Fernandes e Analícea de S. Calmon Santos Salvador: EDUFBA, 2005. FILHOS... FILHOS? MELHOR NÃO TÊ-LOS : A FEMINILIDADE ALÉM DA MATERNIDADE Por: ANIA REIS DE ARAGÃO Psicóloga do Serviço Médico da Universidade Federal da Bahia Psicóloga/Psicanalista da Clínica Lugar Formação em Psicanálise pela Associação de Psicanálise da Bahia Especialista em Teoria da Clínica Psicanalítica Universidade Federal da Bahia E-mail: ania@ufba.br Salvador 2005

1 Filhos... Filhos? Melhor Não Tê-Los 1 : A Feminilidade Além Da Maternidade 2 Sinto-me culpada por não querer ter filhos. Todo mundo diz que um filho é uma bênção. Por que eu não quero esta bênção? questiona-se uma paciente em análise, dividida por um lado pelas cobranças sociais que impõem a maternidade como realização feminina e por outro, pelo desejo de continuar os seus projetos profissionais, não podendo conceber a idéia de interrompê-los por uma gravidez. Atualmente, o número de mulheres que não querem pagar o preço para conferir o que é a maternidade, parece ter crescido, ou hoje se pode assumir mais claramente esta escolha. O que desperta a atenção é menos uma relevância estatística e mais a veemência com que elas sustentam a sua posição, que não deixa de se configurar como uma recusa a enquadrar-se nas exigências do Outro social, que responde que o que deve querer uma mulher é tornar-se mãe, considerando a maternidade como a natureza feminina, a máxima expressão do ser mulher. A repetição de questões como estas por mulheres, na clínica e fora dela, suscitou a intenção de pesquisar sobre as relações entre a maternidade e a feminilidade, tomando como questão norteadora o que faz uma mulher não demandar um filho, um tema menos explorado, mas muito instigante e atual. Recorre-se a autoras como Chatel (1995), Tubert (1996) e Safer (1997), que no campo da psicanálise na atualidade elegeram também o feminino e a maternidade como objetos de investigação, alicerçando suas descobertas clínicas nas teorias de Freud e Lacan. Entendendo-se que a maternidade não está ligada apenas à capacidade reprodutiva da mulher, mas à trajetória edípica que a tira da ordem biológica e a instaura na ordem do desejo, há espaço na teoria psicanalítica para considerar que uma mulher

2 não demande um filho. Não é isto que a fará mais incompleta. Como seres marcados pela falta, portanto desejantes, para homem ou mulher, mulher ou mãe, a incompletude é o destino inexorável. No momento em que se trata de desejo e não de necessidade - um dos saltos que a psicanálise empreendeu rompendo com os paradigmas da época - perde-se a possibilidade da satisfação da sexualidade humana definida por um objeto determinado, como um filho. Tanto desejar ter filhos, quanto decidir por não tê-los, qualquer das situações vai reativar posições infantis e remeter cada sujeito à complexa trama das suas relações edípicas. Demandar filhos pressupõe estar submetido à castração simbólica, portanto posicionar-se diante da problemática da diferença entre os sexos, admitindo não ser possível o gozo do Outro, o gozo absoluto, como também estar confrontado com a finitude. Pode-se pensar que a maternidade é um momento em que estas questões concernentes ao sexo e à morte são atualizadas, como afirma Tubert (1996, p. 169): O nascimento de um filho, na medida em que supõe a sucessão das gerações, remete à sombra, à existência terrena, ao corpo destinado a morrer [...] Paradoxalmente, é tão-só a aceitação da morte o que faz possível a transmissão da vida. E não demandar filhos? Essa mesma autora argumenta que a rejeição da maternidade pode estar ligada à rejeição da morte, a um retorno ao narcisismo infantil, a uma fantasia de beleza e juventude eternas, a ilusão de um corpo que não sofre a ação da passagem do tempo. Algumas mulheres não podem suportar a idéia das modificações corporais a que leva uma gravidez. Parece haver para estas, a fantasia de que se forem mães, deixarão de ser mulheres e jovens. Safer (1997) apresenta a relação entre a recusa à maternidade e a rejeição da morte por um outro prisma. Ela salienta que as mulheres que não demandam a

3 maternidade se vêem, ao contrário, confrontadas mais de perto com a questão da finitude: elas não terão herdeiros, de gens ou de bens, nem perpetuarão o nome de família. Tudo isto lhes faltará, e por isto mesmo, não serão menos desejantes que aquelas que desejam um filho, apenas demandarão algo diferente. É desta autora, uma psicanalista americana, a única obra encontrada especificamente sobre o tema deste estudo: Além da Maternidade. Mas o que será que acontece em termos das operações psíquicas que entram em jogo no tornar-se mulher, com aquelas mulheres que não demandam um filho? Que marcas significantes podem ter produzido este efeito subjetivo no decorrer da sua constituição psíquica e quais as saídas possíveis para o desejo feminino além da maternidade? Conforme Safer (1997, p. 107), a relação da mulher com a sua mãe, mais especificamente com o desejo da mãe portanto para onde se voltava a falta materna - está presente como o que de certa forma a levou a não demandar um filho: As mulheres que entrevistei concordaram que o relacionamento com a mãe foi um ingrediente essencial na sua decisão, e muitas consideraram que o pai também teve um impacto significativo. Se o passado não determina o futuro, lança realmente os fundamentos.toda mulher obtém da experiência com a própria mãe a noção do que é ser mãe. A personalidade da mãe, sua relação com a filha, o casamento e a forma como leva sua vida se tornam para a filha a base do que significa ser mulher, tanto num nível inconsciente quanto num nível consciente. Toda filha se identifica com, se rebela contra e finalmente tenta encontrar uma forma de se harmonizar com o legado emocional da mãe. Foi possível escutar de uma paciente em análise, a filha caçula de uma prole numerosa, como lhe foi marcante uma frase dita pela sua mãe: Se fosse hoje, não teria casado cedo, nem teria tantos filhos. Teria estudado, trabalhado, hoje teria uma vida melhor. Esta insatisfação materna parece apontar algo para esta mulher, hoje casada, mas que não se vê abrindo mão de sua realização profissional por uma criança.

4 Safer acrescenta que não demandar um filho é algo que opera como uma tentativa de separação da mãe, rompendo com o que poderia ser este possível traço identificatório, ao menos como ideal social: a maternidade. Há uma diferenciação radical destas mulheres em relação às suas mães: elas não serão mães. Salienta que algumas mulheres chegam a tomar posições extremas como recorrer, por exemplo, à esterilização por histerectomia, uma interferência que se faz no real do corpo e que exclui qualquer possibilidade de defrontar-se com o ser mãe. Entretanto, como será que estas concepções encontram consistência e se apóiam nas construções teóricas de Freud e de Lacan? A despeito da genialidade dos avanços realizados por Freud na compreensão dos percalços que a menina tem que atravessar no tornar-se mulher 3, ele permaneceu arraigado aos valores da sua época, estabelecendo três saídas possíveis do Édipo feminino, mas considerando o caminho normal para a feminilidade o tornar-se mãe. Todavia, é necessário enfatizar um dos aspectos da teoria freudiana sobre a feminilidade, que será retomado por Lacan e por outros autores na atualidade: a fase pré-edípica em que a menina elege a mãe como objeto de amor. A decepção enfrentada pela menina pelo fato de que a mãe não lhe pode transmitir o traço do feminino produz um furo afetivo que lhe permite voltar-se para um novo objeto amoroso, o pai. Amar o pai, entretanto, não a faz apagar o momento anterior com a mãe, a quem amou e ao mesmo tempo rivalizou. A dificuldade maior para a menina, na saída edípica, momento em que deverá efetuar a passagem para o pai e depois para um outro homem, é que deveria identificar-se com a mãe, mas nesta trajetória, se depara com uma dupla falta, a do falo e a de um significante que dê conta do feminino, além de reencontrar a mãe, seu antigo amor.

5 André (1998) traz a relação da filha com a mãe, como um amor sem saída, senão com ruptura; a história de uma separação que sempre se procrastina. Lacan (1969/1970 1992, p. 105) fala da relação com a mãe como uma devastação, o que não significa que seja uma relação desastrosa na realidade, mas uma relação que não se dá sem marcas duradouras, que serão reativadas na relação com um homem, ou como se está tratando, com um filho: O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isto. Chatel (1995), uma psicanalista francesa que trabalha com mulheres que optaram pela interrupção voluntária da gravidez, toma exatamente a noção da devastação, para teorizar sobre estes casos de mulheres que procuram o aborto. Defende que não necessariamente se aborta o filho que não se quis ter, mas o que se quis ter para perder, o que remete à relação desta mulher enquanto filha, com a sua mãe. Explicará que no tornar-se mulher, o apelo que a menina faz àquele que detém o falo, o Pai, ocorrerá apenas num segundo momento, pois antes houve o desencontro devido à mãe não poder lhe conferir um traço com o qual se identificar. Isto seria a devastação: não é infelicidade, nem sintoma resultante de uma mãe má, mas a impossível partilha da experiência feminina : A maternidade não se transmite de mãe para filha como o falo se passa entre os homens. Uma filha não pode se tornar mãe para essa criança senão quando houver atravessado a devastação por uma forma de extração, de separação sem substituto. Ela deve abandonar a esperança de obter diretamente de sua mãe a autorização para parir. Ter atravessado a devastação durante os anos da adolescência assegura a uma mulher chances de se tornar mãe sem esbarrar nos efeitos devastadores do gozo do Outro. (CHATEL, 1995, p.48-49).

6 Ela aponta que é muito comum que a gravidez ocorra em momentos em que a mulher se encontra prestes a realizar algum outro desejo. Enfatiza que este desejo de que não abre mão e que a leva ao aborto, é muito freqüentemente a operação de uma sublimação, de uma criação (CHATEL, 1995, p. 42). Escuta-se de uma paciente em análise que, apesar da culpa que lhe traz um aborto, provocado alguns anos antes, isto foi o que lhe restava fazer: um filho seria para mim a morte. A morte das minhas possibilidades de crescimento como mulher. Faz o aborto num momento em que ela havia deixado a cidade de origem para vir à capital, a fim de continuar os estudos, lembrando que a mãe dizia: embora meus filhos sejam tudo, se pudesse, teria feito diferente. Em muitos casos, diz Chatel (1995, p. 42): Na sobredeterminação que presidiu ao aparecimento dessa gravidez a abortar, verifica-se que a gravidez atualiza um significante particular pelo qual a mãe desta mulher deu a compreender a sua filha que esta não foi desejada [...] Tal mulher irá abortar, pois, também, a si mesma, segundo este aspecto de recusa do desejo materno. Tubert (1996), psicanalista que pesquisa sobre as novas tecnologias reprodutivas, também chega a conclusões semelhantes, quanto à relação com a mãe: traz exemplos de mulheres que demandam engravidar, sem êxito, e, quando escutadas mais atentamente, aparecem na trama discursiva, aspectos difíceis na sua posição de filha, que elas atualizam ao tentarem se tornar mães, produzindo no corpo o efeito sintomático de não engravidar. A maternidade aparece ainda, para muitas mulheres como um sacrifício a que não estão dispostas. Não se vêem dando a vida pelo outro, como foi possível escutar no discurso bem matemático de uma outra paciente: filho é igual à morte. A mãe doa vida. Se doa a sua vida ao filho, fica com menos vida, ou seja, subtrai a sua.

7 Esta paciente lembra-se de uma pessoa conhecida que descobre ao mesmo tempo uma gravidez e uma doença grave, optando por ter o filho, o que a faz retardar o tratamento, com danos irreversíveis. Outro ponto que se encontra é o filho como um intruso. Há que se pensar nesta completude imaginária que a gravidez significa para certas mulheres, ter dois corpos em um, e a contraposição destas outras que não conseguem suportar esta idéia, sem uma sensação de sufocamento, desejando manter-se em falta, lembrando o que a psicanálise aponta como desejo de desejo insatisfeito : Finalmente, aceitei algo essencial: não quero ter um bebê quero simplesmente querer (SAFER, 1997, p.38). Também, o desejo por ter um filho pode remeter ao desejo de revivescência da infância perdida. No depoimento de algumas mulheres que não demandam filhos, aparece uma recusa - consciente ou não - a este retorno. Em alguns casos verifica-se a relação com uma mãe controladora ou intrusa, a mulher temendo a repetição desta relação, tanto no que se refere a ocupar esta posição para o bebê, como de que o bebê seja para ela o que a controla e suga. Não ter alguém que dependa dela, não se sentir responsável por alguém, é uma forma de garantir-se desejante. Em todo caso, o que salta aos olhos na maioria dos depoimentos, é o fato de que estas mulheres, ao optarem por não ter filhos, puderam demandar o que faltou às suas mães: não o filho, mas o trabalho ou a arte. Muito amiúde suas mães eram mulheres que tinham alguma habilidade artística ou profissional não realizada, porque abdicaram dela em favor da maternidade. O pai aí, muitas vezes serviu como o suporte identificatório: muitas se consideraram herdeiras intelectuais do pai (SAFER, 1997, p.41).

8 A psicanalista Horney 4 (apud André, 1998, p. 200) levantou a possibilidade de um complexo de masculinidade, que não se confundiria com a homossexualidade, mas desencadearia também uma identificação ao pai, embora diferente do desejo de ser homem. O que provocaria tal efeito não seria a inveja do pênis, mas uma decepção ocasionada pelo pai, uma vez que a mãe é quem usufrui dos desejos paternos: Esta decepção pode ter como efeito que a menina renuncie não apenas a sua reivindicação amorosa dirigida ao pai, mas também ao seu desejo de um filho [...] O abandono do pai enquanto objeto de amor é acompanhado por uma identificação com ele [...] Essa identificação ao pai não deve ser confundida com o desejo de ser homem: ela é o desejo de desempenhar o papel do pai. A menina vai adotar uma série de suas características: escolhe a mesma profissão dele, comporta-se em relação a sua mãe da mesma forma que ele, tosse como ele, etc., mas isso sem que chegue necessariamente a uma escolha de objeto homossexual completo. A identificação da menina ao pai pode estar relacionada com a posição histérica. Mas será que uma mulher que não deseja ter filhos, sempre estaria identificada ao pai, indicando desta forma uma posição histérica? Esta é uma questão que deve ser pensada mais cuidadosamente. Contudo, inicialmente o que se pode observar, em muitos discursos do livro de Safer, bem como na escuta clínica de pacientes em análise que não demandam ter filhos, é o surgimento da pergunta da histérica sobre o enigma da feminilidade, relançada da seguinte forma: que mulher sou eu, se não quero ser mãe?. Há ainda relatos em que a decisão de não ter filhos ocorre para que a mulher não divida com um filho o amor do homem, como se buscasse o reconhecimento simbólico do pai, representado pelo olhar deste homem, que possibilita o seu reinvestimento narcísico. Safer (1997, p. 23), ao discutir com o marido a sua dúvida quanto à maternidade, ilustra isto: Ele me disse ternamente que aquilo que realmente queria e necessitava era eu, independente do resultado o que foi uma das razões que me fez crer que tinha finalmente escolhido o homem certo. É muito comum que estas

9 mulheres busquem como companheiros homens mais velhos, que já têm filhos ou que não possam tê-los. Esta autora aponta em muitos casos de mulheres que não demandam filhos, a origem desta idéia muito precocemente, não raro desde as brincadeiras infantis: o brincar com bonecas surge com o sujeito ocupando uma outra posição que não a de mãe, mas a de tia, professora, ou outras. No dizer de uma paciente atendida em consultório: Enquanto as outras meninas brincavam de bonecas, eu ligava o rádio e ficava o dia inteiro dançando. Esta paciente se tornou mesmo uma profissional na área de dança e não quer ter filhos. É oportuno pensar se o lugar antes ocupado pelo objeto fálico-filho não vem atualmente deslizando por uma gama maior de possibilidades, por exemplo, o trabalho ou a criação artística. Facchinete (1996) propõe que em vez da procriação, a saída para estas mulheres poderá ser a criação. Safer (1997, p.187) acentua que tanto para as mulheres que são mães, como para aquelas que decidem não ter filhos, a falta é inevitável: Reconhecer que você não está disposta ou é incapaz de assumir tudo o que hoje se espera que uma mulher assuma é sensato, realista e um alívio enorme. As mulheres que aceitam isto integralmente reconhecem que não experimentam tudo na vida e se dão conta de que ninguém na verdade o faz nem precisa. Além disto, conclui que o legado que elas deixarão para as novas gerações, que não é pela herança genética no formato de um filho, pode ser uma nova imagem da feminilidade. Talvez este quadro em que algumas mulheres não demandam filhos, mas substituem o filho/falo pelo trabalho ou pela arte, seja uma resposta criativa destes sujeitos, nestes novos tempos, mesmo que a antiga questão continue. Isto é o que na clínica tem aparecido e o que a clínica estimula a pensar. Aqui, contudo, está apenas um

10 começo, um esboço. Como diria Lacan (1972/1973-1985), numa de suas provocações, A mulher não existe, mas as mulheres existem e só podem ser contadas uma a uma, pois não formam um conjunto. E como orienta Freud (1933-1969, p. 165), pode-se recorrer aos poetas para se saber mais sobre o que quer a mulher. Na letra desta canção, o diálogo entre mãe e filha, traduz poeticamente a dificuldade de transmissão de um traço do feminino e o mistério da feminilidade: _ Oh mãe, me explica, me ensina, Me diz o que é feminina _ Não é no cabelo, ou no dengo ou no olhar É ser menina por todo lugar. _ Então me ilumina, me diz como é que termina. _ Termina na hora de recomeçar Dobra uma esquina no mesmo lugar Costura o fio da vida só pra poder cortar Depois se larga no mundo pra nunca mais voltar. _ Oh mãe, me explica, me ensina, Me diz o que é feminina _ Não é no cabelo, ou no dengo ou no olhar, É ser menina por todo lugar. _ Então me ilumina, me diz como é que termina. _ Termina na hora de recomeçar Dobra uma esquina no mesmo lugar. [...] Este mistério estará sempre lá... 5

NOTAS: 1. Primeiras estrofes do Poema Enjoadinho, de Vinícius de Moraes, que trata exatamente da ambivalência em relação a se ter uma criança. In: Literatura Comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980. 2. Artigo baseado na monografia, com mesmo título, apresentada para conclusão do Curso de Especialização em Teoria da Clínica Psicanalítica UFBA 2003. Orientada pela Profa. Eliane Maria Vasconcelos do Nascimento. 3. Para maior aprofundamento sobre as concepções de Freud concernentes à feminilidade, ver: Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os sexos (1924). Vol. XIX; Sexualidade Feminina (1931). Vol. XXI; Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferência 33, Feminilidade (1933 [1932]), Vol. XXII. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 4. Karen Horney (1885-1952), psicanalista da escola culturalista, juntamente com Eric Fromm. 5. Feminina - Letra de autoria da cantora e compositora Joyce, da música popular brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ANDRÉ, Serge. O Que Quer Uma Mulher? Rio de Janeiro: Zahar/Campo Freudiano no Brasil, 1998. CHATEL, Marie-Magdeleine. Mal-Estar na Procriação. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995. FACCHINETE, Cristiana. Um Percurso para o Feminino, 1996. Dissertação (Mestrado em Teoria Psicanalítica) - Instituto de Psicologia, UFRJ, Rio de Janeiro, 1996. FREUD, Sigmund. (1933 [1932]) Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferência 33, Feminilidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969 Vol. XXII. LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: Mais Ainda 1972-1973. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.. O Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise - 1969-1970. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. SAFER, Jeanne. Além da Maternidade. São Paulo: Mandarim, 1997. TUBERT, Sílvia. Mulheres sem Sombra Maternidade e Novas Tecnologias Reprodutivas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.