O LUGAR DA TELEVISÃO É NO MUSEU?

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Transcrição:

O LUGAR DA TELEVISÃO É NO MUSEU? Renata Andreoni Doutoranda em Comunicação Social (PUCRS), Mestre em Comunicação Social (PUCRS) e Historiadora (IPA). E-mail: andreoni.renata@gmail.com. Márcia Borges Doutoranda no POSCOM/UFSM, Mestre em Multimeios pela Unicamp e Historiadora pela UFRGS. E-mail: marcia_borges67@hotmail.com. Victor Márcio Laus Reis Gomes Doutor em Comunicação Social pela PUCRS, Mestre em Administração pela Unisinos, Bacharel em Comunicação Social, Professor ESPM Sul. E-mail: victorlaus@gmail.com. Resumo Este trabalho busca possíveis relações entre a televisão e o museu, através de uma abordagem de convergência transmidiática. A reflexão é construída sobre uma narrativa ficcional televisiva, a telenovela. Palavras-chave: Televisão; Museu; Convergência Transmidiática Abstract This paper seeks possible relationships between two apparently distant themes: television and museum. Through a transmedia convergence approach, the discussion is built on a television fictional narrative - the telenovela. Keywords: Television; Museum; Transmedia Convergence Resumen Este trabajo busca posibles relaciones entra la televisión y el museo, a través de un enfoque de la convergencia transmediatica. La reflexión se construye sobre una narrativa ficcional televisiva, la telenovela. Palabras clave: Televisión; Museo; Convergencia Transmediatica

1. Introdução Este ensaio tem o objetivo de aproximar duas temáticas que, em um primeiro momento, podem parecer distantes: o Museu e a Televisão. Nossa proposta é demonstrar possíveis aproximações, que entendemos pertinentes, podendo corroborar nas construções de seus conteúdos e de suas relações. Essas aproximações serão realizadas através de uma abordagem narrativa da sociedade contemporânea, a convergência transmidiática. A narrativa transmidiática possibilita ampliar o ciclo de vida do conteúdo por meio da utilização de múltiplas plataformas que conduzem e intensificam uma cultura participativa. O advento das novas tecnologias favorece a abordagem transmidiática, entretanto, ela não se restringe aos meios digitais. Entendemos que pensar novas formas e possibilidades de se (re) construir, contar, apresentar e adaptar uma história pode colaborar com a qualidade crítica do futuro das narrativas. Partimos da perspectiva da televisão como um bem cultural, um serviço público de acordo com a Lei Nº 4.117, de 27 de agosto de 1962 constituinte de elos de identificações e laços sociais (WOLTON, 2004), trabalhando com entretenimento, cultura e educação. Dessa forma, nossa proposta aqui não é discutir sobre a qualidade dos conteúdos da televisão brasileira na contemporaneidade, mas apontar suas potencialidades de fruição cultural, estética e de entretenimento. É sob esse enfoque que propomos estabelecer a relação da televisão com o museu. Ambos compartilham de características precípuas, como espaços de comunicação, relacionados à cultura e a educação, atuando sobre as (re) construções de identidades nacionais, regionais, locais, étnicas, geracionais, religiosas, de gênero, de classe, entre outras. Segundo Manuel Castells (2001, p.22) entende-se por identidade a força e experiência de um povo. Entretanto, não existe uma identidade em si, pois esta se constitui sempre na relação com o outro; e suas construções ocorrem dentro da esfera social e apontam o vetor de atuação dos sujeitos em suas representações. As identidades são fluidas, negociadas, reivindicadas, em processo constante de construção e afirmação. A televisão oferece uma multiplicidade de formatos e conteúdos que atuam sobre a constituição de significados sociais e culturais. Nesse sentido, selecionamos para esta reflexão uma narrativa ficcional televisiva, as telenovelas. As telenovelas brasileiras geram significativo impacto social, influenciando comportamentos, hábitos, costumes e padrões sociais, culturais e de consumo. A televisão, através de suas telenovelas, apresenta narrativas que, embora ficcionais, estão relacionadas com a realidade social, interagindo e impactando sobre as suas estruturas. Não obstante, o museu, além de salvaguardar vestígios do passado, é um espaço que apresenta narrativas de diferentes temporalidades, buscando estabelecer possíveis relações e atuar sobre a crítica social. A partir da identificação desses pontos incomuns, sem desconsiderar suas especificidades, pretendemos compreender como o espaço museológico pode ser uma possibilidade de convergência para a televisão. Para tanto, iniciaremos apresentando algumas considerações sobre os nossos objetos (televisão e museu) e, em seguimento, esclarecimentos sobre o conceito de convergência transmidiática. Posteriormente, partiremos para a elucidação dessa relação a partir do remake da novela Saramandaia, que teve seu lançamento na TV em junho de 2013, acompanhado por uma exposição no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). 2. A televisão e suas relações com o sujeito Antigas percepções sobre o estudo da televisão, advindas principalmente do pensamento da Escola de Frankfurt, indicavam um telespectador passivo, altamente influenciado pela ausência de senso crítico. A televisão era vista sob uma ótica ideológica, favorecendo a implantação de modelos culturais dominantes, resumindo-a em alienação da sociedade de massa. 2

Os Estudos Culturais, perspectiva teórico-metodológica, com origem entre as décadas de 1950/60, apresenta um olhar que não se encontra mais debruçado sobre o aspecto da submissão. Nessa vertente, o sujeito transpõe as barreiras da passividade e da manipulação para se tornar um agente de expressão e negociação. Diante de um posicionamento ativo do sujeito-receptor, compreendemos que as influências não são homogêneas, nem absolutas. Há possibilidades de resistência, transformação e ressignificação, tanto da diégese quanto das próprias estruturas sociais e culturais nas quais as narrativas ficcionais estão inseridas. A homogeneidade da mensagem não impede a heterogeneidade da recepção. Isso não anula a influência da TV, mas essa influência não é direta, nem mecânica. Isso explica também seu papel de laço social: os diferentes meios sociais recebem de maneira diferente os programas e aproveitam o que querem deles. (WOLTON, 2004, p.143). De acordo com o que apresenta Wolton (2004) não desconsideramos a influência da TV, entretanto não a percebemos como um processo mecânico e linear. O autor destaca a capacidade de a televisão criar laços sociais, uma atividade compartilhada por diferentes classes sociais e faixas etárias. Quando o sujeito está assistindo televisão ele se agrega a um universo polissêmico de telespectadores que estão assistindo simultaneamente. Esse laço social é consolidado, ainda mais, em um segundo momento, quando, em outra ocasião, o diálogo entre diferentes sujeitos é pautado pela programação assistida. Atualmente, esse processo pode ocorrer de forma simultânea, a partir de conexões estabelecidas através da segunda tela. A partir dessas considerações ressaltamos dois pontos sobre a relação da televisão com o sujeito, mais relevantes para esta reflexão: a onipresença da negociação e a constituição de laços sociais. Nessa relação entre televisão e sujeito, que envolve negociação, laços sociais e influências, destacamos as telenovelas. Entendemos que essa narrativa ficcional televisiva, através de uma abordagem transmidiática, pode intensificar e qualificar essas relações. De acordo com Lopes (1997, p. 160), As telenovelas são os programas de maior audiência em toda a América Latina e sua importância cultural e política cresce continuamente porque deixam de ser apenas programas de lazer, e se tornam um espaço cultural de intervenção para a discussão e a introdução de hábitos e valores. O estudo da telenovela permite aprofundar os conhecimentos das relações entre as dimensões da cultura, da comunicação e do poder. A perspectiva apresentada no pensamento do autor acima, nos permite ir além do entendimento da novela somente como uma opção de entretenimento. Assim, propomos validar a presença dessas narrativas ficcionais em outros espaços de comunicação, como no museu, desenvolvendo e problematizando novos desdobramentos sobre as características e o contexto que compõem a sua diégese. 3. O museu e a Nova Museologia Os museus são espaços de disputas, seletivos e contraditórios, trabalhando diretamente numa relação dialética entre memória e esquecimento. Suponho que se engana quem pensa que há humanidade possível fora da tensão entre o esquecimento e a memória (CHAGAS, 2005, p.24). Tal tensão faz parte do cotidiano das instituições museológicas. Nesse sentido, nos afastamos da ideia de museu preponderante no século XIX, quando era idealizado como arcabouço do passado 3

e guardião da verdade, onde estava exposta a história oficial. O papel do museu como um local conservador elitista ou como bastião da tradição da alta cultura dá lugar ao museu como cultura de massa, como um lugar de uma mise-en-scène espetacular (grifos nossos). O museu contemporâneo não necessita restringir sua atenção tão-somente a períodos longínquos, mas abrir espaço para promover e problematizar questões que permeiam a nossa realidade social. A democratização do acesso e de conteúdos possibilita ampliar e qualificar suas ações relacionadas à fruição da cultura, da estética e do entretenimento. O museu seleciona vestígios do passado, organizando discursos para promover e veicular suas representações sobre o pretérito, o presente e o que deverá permanecer para o devir. Ele é produtor e divulgador de sentidos na sociedade, se constituindo como uma instituição política, que pode se tornar veículo de cidadania. O museu não é uma estrutura estática, é um processo dinâmico, um espaço discursivo e interpretativo em permanente relação com os atores sociais. Observamos uma ressignificação nos museus, na qual as premissas de conservação e preservação cedem espaço para a comunicação, onde o objeto museal, além de tombado e salvaguardado, deve ser explorado, relacionado e interpretado. Na medida em que percebemos o museu como produtor e produto da estrutura social, emissor de discursos e sentidos, devemos estar atentos para outros usos possíveis. Ao contrário de percepções estigmatizadas, o museu é um espaço aberto, plural e dinâmico, no qual histórias são expostas para provocar, seduzir, socializar, trocar informações e comunicar. É a partir dessa perspectiva que entendemos a pertinência de estabelecer possíveis relações com o universo da narrativa ficcional televisiva. 4. A convergência da narrativa transmidiática Vamos abordar o conceito de transmídia a partir da trilha convergente da comunicação pensada por Henry Jenkins. O autor, em sua obra Cultura da Convergência, nos apresenta uma compreensão alternativa para a atualidade do processo midiático, [...] onde as velhas e as novas mídias colidem, onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis (JENKINS, 2008, p. 29). Dessa forma, a cultura da convergência coloca sob o holofote produtores e consumidores, enquanto agentes de igual importância. Entretanto, a ideia anterior à convergência tendia a perceber os consumidores como passivos, previsíveis, silenciosos e invisíveis. De acordo com Jenkins (2008), a colisão entre antigos e novos meios conduz ao nivelamento de poderes entre produtores e consumidores. Nesse sentido, os meios tradicionais não estão sendo substituídos, mas transformados pelas novas tecnologias. Por convergência, entende-se o [...] fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando. (JENKINS, 2008, p. 27). O processo da convergência se desenvolve de forma contínua e complexa, a partir da relação da tecnologia com a cultura. Esse processo atua sobre uma mudança cultural, incidindo sobre as percepções e atuações do sujeito contemporâneo. É nessa linha da convergência que surge a narrativa transmidiática, uma forma estética que traz novas exigências aos atores sociais. 4

Uma história transmidiática se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que faz de melhor. (JENKINS, 2008, p. 135). Dessa forma, a narrativa transmídia se difere da crossmidiática, cuja intenção é somente promover o conteúdo, e não expandi-lo. No transmidiático há ampliação do conteúdo em cada mídia, além disso, há autonomia de um produto sobre outro. Por exemplo, não é necessário assistir ao filme para compreender e gostar do game correspondente. Outro ponto fundamental para a constituição da narrativa transmidiática é a relação ativa com o sujeito, não admitindo qualquer forma de recepção passiva. Nessa perspectiva, a narrativa está aberta ao receptor, que de diferentes maneiras pode atuar sobre ela, organizando e reorganizando o sentido. Para desenvolver a reflexão sobre a temática, Jenkins (2008) aborda os conceitos de inteligência coletiva, de acordo com Pierre Lèvy, e de cultura participativa. O que consolida uma inteligência coletiva não é a posse do conhecimento que é relativamente estática, mas o processo social de aquisição do conhecimento que é dinâmico e participativo, continuamente testando e reafirmando os laços sociais do grupo social. (JENKINS, 2008, p. 88). O autor advoga que as questões desenvolvidas por uma inteligência coletiva são ilimitadas e interdisciplinares, pois são constituídas a partir de fragmentos dispersos e disponibilizados. Assim, com o agrupamento desses fragmentos a inteligência coletiva se constitui. Sobre a cultura participativa, Jenkins (2008) aponta que as distinções nas funções do processo criativo e midiático se misturam e constituem outro modo produtivo, circular, no qual todos se expressam e colaboram. Nesse sentido, há novas formas de consumo e circulação do conteúdo, [...] cultura em que fãs e outros consumidores são convidados a participar ativamente da criação e da circulação de novos conteúdos (JENKINS, 2008, p. 378). No entanto é preciso rigor neste caminho participativo, pois Os conteúdos televisivos transmídias resultam necessariamente da adoção de determinadas estratégias e práticas transmídias, cuja descrição é fundamental tanto para compreendermos a natureza do tipo de produção que nos interessa quanto para particularizar o fenômeno da transmidiação dentro do variado universo de manifestações da cultura participativa. Uma distinção fundamental é justamente a compreensão das estratégias e práticas transmídias como resultado de ações que emanam de uma instância produtora ou, em outros termos, como o resultado de um fazer querer de um destinador corporativo ou institucional. (FECHINE et al., p.29). 5. Saramandaia: um diálogo ente televisão e museu possíveis considerações O remake da novela Saramandaia, lançado em junho de 2013, teve a nova versão escrita por Roberto Linhares, inspirada na obra de Dias Gomes. A novela foi ao ar em 1976, período em que o Brasil vivia sob a ditadura militar. A trama foi desenvolvida a partir de influências de uma vertente literária que marcou a produção latino-americana, o realismo fantástico. A elaboração de seu texto se apresentava como uma forma de driblar a forte censura imposta pelo regime ditatorial, além de experimentar uma nova linguagem para a televisão. O texto permeado de questões antagônicas relacionadas à política, autoritarismo, coronelismo, sonhos, mudanças e liberdade buscava, sobre uma abordagem hermenêutica, problematizar a realidade do país. Já na versão atualizada, o autor trouxe a fictícia cidade de Bole-Bole para o contexto contemporâneo, no qual a corrupção política e as manifestações de jovens no espaço público ganharam destaque. 5

Entretanto, para esta reflexão o que vale destacar é que a versão contemporânea da exibição da novela Saramandaia foi acompanhada de uma exposição. A narrativa ficcional ultrapassou os limites da televisão e adentrou no espaço museológico, sendo inaugurada no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). Outras novelas da Rede Globo de Televisão, lançadas nos últimos tempos, também recorreram a essa forma de comunicação, colocando a sua narrativa ficcional num formato expográfico. Tais iniciativas nos conduzem a uma postura de reflexão e atenção às possibilidades e potencialidades dessa relação. Ao recorrer ao exemplo de Saramandaia, buscamos elucidar de que forma a convergência transmidiática pode se estabelecer e quais seus possíveis retornos, tanto para a televisão, quanto para o museu. Na exposição o público teve acesso a outros conteúdos, como informações relacionadas à produção dos efeitos especiais apresentados na obra. Além disso, a mostra se apresentou de forma hipertextual e interativa, como estratégia de engajamento do público, envolvendo as pessoas como pertencentes à história. Mesmo que possamos identificar a convergência entre a televisão e o museu, através da abordagem realizada com Saramandaia, não foi possível perceber a constituição efetiva da transmídia. O caminho transmidiático vive um momento em que está sendo traçado, circundado por muitas novidades, transformações e adaptações. Entretanto, indicamos que essa possibilidade pode ser construída, na medida em que as pessoas puderem participar do desenvolvimento da trama. Para tanto, o museu, através de exposições hipermidiáticas e interativas, podem se constituir enquanto espaço provocador e provedor da cultura participativa na narrativa ficcional televisiva. Mas, para que isso ocorra deve haver interesse e disponibilidade, tanto da televisão, quanto do museu, de pensarem e desenvolverem a telenovela no Brasil para além da dimensão do entretenimento. Dessa forma, o espaço museal pode incitar e propiciar uma gama de debates relacionados à trama ficcional, sobre seu contexto histórico, sua produção estética, suas idiossincrasias. Mesmo que o museu não seja reconhecido, pelo grande público, como um espaço midiático, de comunicação, entendemos que estreitar relações com outras mídias podem transformar percepções estigmatizadas ao longo dos anos. Assim como, trazer a televisão para as suas dependências pode corroborar a formação de um público mais crítico. Nessa perspectiva a TV invade os espaços museológicos não como objeto obsoleto de contemplação, mas como possibilidade de relação e dialogo no universo em ebulição da contemporaneidade. Nossa provocação, com esta reflexão, é destacar outras possibilidades de convergência transmidiática para a realidade social contemporânea. Apresentamos o museu como um espaço de mídia-educação, cujos [...] objetivos visam a formação do usuário ativo, crítico e criativo de todas as tecnologias de comunicação e informação (BELLONI, 2005, p. 12). Nesse sentido, uma abordagem de convergência transmidiática sobre espaços híbridos (CASTELLS, 2009), onde o físico e o virtual se abrem para um diálogo comum e compartilhado. 6

Referências BELLONI, Maria Luiza. O que é Mídia-Educação. 2ª ed. Capinas, São Paulo: Autores Associados, 2005. CASTELLS, Manuel 2011 Comunicación y poder. Madrid, Alianza: 2009.. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2001. CHAGAS, Mario. Museus: Antropofagia da Memória e do Patrimônio. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Org. Chagas, Mario. nº 31 Brasilia: MinC/IPHAN, 2005. FADUL, Anamaria. Telenovela e família no Brasil. XXII Congresso Intercom. Comunicação apresentada no GT Ficção Televisiva Seriada, Rio de Janeiro, 1999. Disponível em: < http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/68715e6e8a2889bd525ffd2a52d86b05.pdf > Acesso em: 28/11/2013. FECHINE, Yvana (coord.); GOUVEIA, Diego; ALMEIDA, Cecília; COSTA, Marcela; ESTEVÃO, Flávia. Como pensar os conteúdos transmídias na teledramaturgia brasileira? Uma proposta de abordagem a partir das telenovelas da Globo. IN: LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. (ORG.) Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013. 367p. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008. LOPES, Maria Immacolada Vassalo de. Temas Contemporâneos em Comunicação. São Paulo: Edicom/Intercom, 1997. WOLTON, Dominique. Pensar a comunicação. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. 7