EFETIVIDADE PARA A GARANTIA DO DÉBITO ALIMENTAR E A POSSIBILIDADE DE PENHORA DO FGTS DO TRABALHADOR/DEVEDOR Paulo Mazzante de Paula SUMÁRIO: Introdução - 1. O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o débito alimentar e os aspectos legais - 2. A efetividade da execução alimentar, a possibilidade de penhora e a recente posição do STJ - Considerações finais - Referências. INTRODUÇÃO Uma das maiores preocupações do processo civil contemporâneo é a execução alimentícia, no sentido de efetivar a pretensão executória, possibilitando o recebimento do crédito pelo dependente ou, então, a penhora de bens para a garantia do pagamento do débito alimentar. Evidentemente que o crédito decorrente dos alimentos proporciona uma preocupação maior, pois no polo ativo da ação se encontra geralmente o menor hipossuficiente ou, ainda, o maior, que necessita dos alimentos para a conclusão do estudo universitário. A discussão envolve de um lado um direito fundiário do trabalhador, referente ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, e, de outro, o crédito alimentar do necessitado. A indagação, nesta hipótese, é o que deve prevalecer: o interesse do alimentado ou o direito do trabalhador? A discussão envolve, ainda, saber se o rol do artigo 20 da Lei nº 8.036/90 é taxativo ou, apenas, exemplificativo. Por fim, o debate analisa a proibição de penhora da conta fundiária do trabalhador (art. 2º, 2º, da Lei nº 8.036/90) e a decisão recente do Superior Tribunal de Justiça, que afirma que o rol é meramente exemplificativo. 1
1. O FUNDO DE GARANTIA POR TEMPO DE SERVIÇO, O DÉBITO ALIMENTAR E OS ASPECTOS LEGAIS A Constituição Federal estabelece como direito dos trabalhadores urbanos e rurais, dentre outros, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, conforme artigo 7º, inciso III. A Lei nº 8.036/90 dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. A definição é feita por Mauricio Godinho Delgado:( 1 ) O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço consiste em recolhimentos pecuniários mensais, em conta bancária vinculada em nome do trabalhador, conforme parâmetro de cálculo estipulado legalmente, podendo ser sacado pelo obreiro em situações tipificadas pela ordem jurídica, sem prejuízo de acréscimo percentual condicionado ao tipo de rescisão de seu contrato laborativo, formando, porém, o conjunto global e indiferenciado de depósitos um fundo social de destinação legalmente especificada. Referida conta bancária assegura uma compensação pelo trabalho e tempo de serviço do trabalhador, diante da ausência de estabilidade. O artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal assegura uma relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que ainda não foi editada e deverá prever indenização compensatória, dentre outros direitos. Complementa o artigo 10, inciso I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que, até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o artigo 7º, inciso I, da Lei Maior, fica limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no artigo 6º, caput e 1º, da antiga Lei nº 5.107/66, que instituiu o fundo de garantia. 1 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2009. p. 1165. 2
Na conta do trabalhador serão depositados, portanto, 8% incidentes sobre a remuneração mensal, nos termos do artigo 15 da Lei 8.036/90, independentemente da contribuição social, e, no caso de despedida, nas hipóteses exemplificadas, é permitida a movimentação da conta e a multa será de 40% sobre o saldo existente na referida conta, conforme artigo 18, 1º, da Lei 8.036/90. Os referidos depósitos serão corrigidos monetariamente, conforme artigo 13 da citada legislação. O inadimplemento pelo empregador acarreta a incidência da Taxa Referencial (TR) sobre a importância correspondente, juros de mora e multa (art. 22, 1º e 2º, da Lei nº 8.036/90). O fundo de garantia é regido pelo Conselho Curador Nacional, nos termos do artigo 3º da Lei nº 8.036/90, bem como operado pela Caixa Econômica Federal. Os recursos são destinados pelo Governo Federal na implementação da política habitacional, saneamento e infraestrutura urbana, conforme artigo 9º, 2º, da Lei nº 8.036/90. Há discussão sobre a natureza jurídica do fundo de garantia, sendo as principais as seguintes correntes: a) direito trabalhista; b) natureza tributária; c) natureza previdenciária; d) contribuição social. Explica Gustavo Filipe Barbosa Garcia:( 2 ) O entendimento que prevalece, inclusive na jurisprudência, é no sentido de que a contribuição do FGTS, a ser depositada pelo empregador, não possui natureza tributária, mas de contribuição social, especial, com natureza trabalhista. Vólia Bomfim Cassar( 3 ) comenta sobre a natureza múltipla ou híbrida do instituto, dependendo da ótica analisada (empregado ou empregador). 2 GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de Direito do trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 764. 3 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. Niterói: Impetus, 2008. p. 1207. 3
As hipóteses de levantamento são aquelas previstas no artigo 20 da Lei nº 8.036/90. Exemplificando referidas figuras encontramos os seguintes casos: a) dispensa sem justa causa, rescisão indireta, força maior, culpa recíproca; b) extinção total da empresa; c) aposentadoria; d) falecimento do trabalhador; e) aquisição ou quitação parcial ou total da casa própria, cumpridos os demais requisitos; f) quando o trabalhador permanecer 3 (três) anos ininterruptos fora do regime; g) extinção normal do contrato por prazo determinado; h) suspensão total do contrato do trabalho avulso; i) neoplasia maligna; j) aplicação em quotas de Fundos Mútuos de Privatização; l) quando o trabalhador ou dependentes for portador do vírus HIV; m) doença grave e estágio terminal; n) idade superior a setenta anos; o) necessidade pessoal, urgente e decorrente de desastre natural; p) situação de emergência ou estado de calamidade pública; q) integralização de cotas. 2. A EFETIVIDADE DA EXECUÇÃO ALIMENTAR, A POSSIBILIDADE DE PENHORA E A RECENTE POSIÇÃO DO STJ O legalista exacerbado certamente defenderá que a decisão de penhora do FGTS afronta a segurança jurídica, o direito supostamente adquirido do trabalhador e que não há lei que possibilite a realização da constrição. Pelo contrário, argumentará que na lei existe uma proibição de penhora do direito fundiário do trabalhador, conforme artigo 2º, 2º, da Lei nº 8.036/90. Entretanto, por decisão do Superior Tribunal de Justiça, houve inovação no sentido de permitir referida penhora, o que certamente trará maiores benefícios à execução do débito alimentar do que malefícios ao trabalhador devedor dos alimentos. O trivial é que a execução se realize tomando-se por base o interesse do credor, que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados, nos termos do artigo 612 do Código de Processo Civil. 4
Pela decisão do Superior Tribunal de Justiça,( 4 ) surge uma nova possibilidade de penhora para a garantia da execução alimentar, motivo pelo qual considera que as figuras contidas no artigo 20 da Lei do FGTS são meramente exemplificativas e, portanto, há possibilidade da penhora do direito fundiário do trabalhador devedor dos alimentos, em favor do crédito alimentar. A ementa define: RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE EXECUÇÃO DE DÉBITO ALIMENTAR - PENHORA DE NUMERÁRIO CONSTANTE NO FUNDO DE GARANTIA POR TEMPO DE SERVIÇO (FGTS) EM NOME DO TRABALHADOR/ALIMENTANTE - COMPETÊNCIA DAS TURMAS DA SEGUNDA SEÇÃO - VERIFICAÇÃO - HIPÓTESES DE LEVANTAMENTO DO FGTS - ROL LEGAL EXEMPLIFICATIVO - PRECEDENTES - SUBSISTÊNCIA DO ALIMENTANDO - LEVANTAMENTO DO FGTS - POSSIBILIDADE - PRECEDENTES - RECURSO ESPECIAL PROVIDO. I - A questão jurídica consistente na admissão ou não de penhora de numerário constante do FGTS para quitação de débito, no caso, alimentar, por decorrer da relação jurídica originária afeta à competência desta c. Turma (obrigação alimentar), deve, de igual forma ser conhecida e julgada por qualquer dos órgãos fracionários da Segunda Seção desta a. Corte; II - Da análise das hipóteses previstas no artigo 20 da Lei nº 8.036/90, é possível aferir seu caráter exemplificativo, na medida em que não se afigura razoável compreender que o rol legal abarque todas as situações fáticas, com a mesma razão de ser, qual seja, a proteção do trabalhador e de seus dependentes em determinadas e urgentes circunstâncias da vida que demandem maior apoio financeiro; III - Irretorquível o entendimento de que a prestação dos alimentos, por envolver a própria subsistência dos dependentes do trabalhador, deve ser necessariamente atendida, ainda que, para tanto, proceda-se ao levantamento do FGTS do trabalhador; IV - Recurso Especial provido. 4 Rel. Uyeda Massami, Recurso Especial nº 1083061, 3ª Turma do STJ, julgamento em 02 de março de 2010. 5
A referida decisão tomou por base para o deferimento da pretensão a proteção dos dependentes do trabalhador e, consequentemente, a dignidade da pessoa humana. Realmente, ao que parece, trata-se de rol exemplificativo, pois não seria justo um trabalhador com depressão decorrente de dívidas não ter o direito de sacar o FGTS para pagamento de credores. Aliás, nesse sentido, já houve precedentes anteriores, conforme Mandado de Segurança nº 123.966-4/0, TJSP, impetrante Caixa Econômica Federal e impetrada Juíza de Direito da 1ª Vara da Comarca de Santa Cruz do Rio Pardo. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já tinha autorizado até mesmo a inscrição do devedor dos alimentos nos cadastros de proteção ao crédito:( 5 ) AGRAVO. Execução de alimentos. Inserção do nome do devedor nos cadastros de proteção ao crédito. Decisão recorrida que indeferiu a pretensão. Inconformismo da exequente. Acolhimento. Circunstâncias do caso concreto autorizam a medida. Se o procedimento especial autoriza medida extrema de prisão do devedor, mais justificada a possibilidade de meio excepcional menos gravoso ao devedor na busca pela satisfação do crédito, em razão da própria natureza e da urgência da pretensão perseguida. Decisão reformada. Recurso provido. Seria possível afirmar, ainda, que se trata de mera expectativa no caso da penhora do FGTS, visto que o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço somente seria movimentado naquelas hipóteses legais previstas no referido artigo 20 da Lei nº 8.036/90. Aliás, o Direito do trabalho tem por objetivo manter o contrato de emprego, prevalecendo o princípio da continuidade da relação de emprego. Pela Constituição Federal de 1967 persistiam dois regimes, ou seja, o da estabilidade e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Após a promulgação da atual Constituição Federal, publicada no dia 05 de outubro de 1988, a opção pelo 5 Agravo de Instrumento nº 1875681920108260000/SP, TJSP, rel. Viviani Nicolau, 9ª Câmara de Direito Privado. 6
fundo de garantia é automática, enquanto que pelo ordenamento constitucional atual não há estabilidade absoluta. Pelo prazer de argumentar, cediço que o salário é impenhorável, salvo para pagamento da prestação alimentícia, ou seja, existe uma contradição no caso da pensão alimentícia, visto que o salário poderá sofrer penhora, enquanto não é permitido no caso do fundo de garantia, conforme artigo 2º, 2º, da Lei nº 8.036/90. Salvante melhor juízo, se a remuneração é a retribuição mensal pela prestação de serviço e, por exceção, sofre penhora, não há motivo para tratamento diferenciado ao FGTS. Portanto, seria possível a penhora do direito, ainda que a efetivação da penhora ocorresse por ocasião da liberação do benefício em favor do empregado devedor dos alimentos. Pelo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, houve aplicação da mesma sistemática do salário ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ou seja, ambos são impenhoráveis, salvo para pagamento do débito alimentar. Note-se que a preocupação é sempre voltada para a efetivação da penhora, tanto é assim que o rol do artigo 655 do Código de Processo Civil apresenta onze incisos preferenciais para a garantia do pagamento do débito, inclusive outros direitos do devedor (inciso XI). É evidente que o Julgador deverá analisar com cautela o caso concreto. Por exemplo, eventual discussão pode surgir nos casos do trabalhador sacar o FGTS pela ocorrência de doença (neoplasia maligna, HIV, estágio terminal etc.). Nessas hipóteses, evidentemente confrontam os direitos do reclamante que pleiteia alimentos (necessidade) e a condição do devedor que está doente (possibilidade). O artigo 1.695 do Código Civil adverte sobre a possibilidade de pagamento do devedor, sem desfalque do necessário ao seu sustento, bem como o modo da fixação dos alimentos, sempre se tomando por base os recursos da pessoa obrigada ( 1º, art. 1.694). 7
Maria Helena Diniz menciona jurisprudência (RT 526/444):( 6 ) Possibilidade econômica do alimentante. O estado de necessidade do alimentando só poderá obrigar aquele que deve prestar alimentos reclamados se ele puder cumprir seu dever sem que haja desfalque do necessário ao seu próprio sustento, ou seja, será imprescindível verificar sua capacidade financeira, porque, se tiver apenas o indispensável para sua mantença não é justo que passe privações ou faça sacrifícios para atender pessoa necessitada. Portanto, na hipótese anterior, o Julgador certamente analisará o caso concreto, indeferindo o pedido de penhora caso o cuidado com a doença seja mais urgente ou necessário para salvar a vida do trabalhador e devedor dos alimentos. Aliás, o direito à prestação de alimentos é extensivo a todos os ascendentes. CONSIDERAÇÕES FINAIS A decisão do Superior Tribunal de Justiça é inovadora e proporciona avanço, diante da possibilidade de penhora de um novo direito do devedor alimentar. Aplica-se a razoabilidade ao privilegiar o direito do alimentado em receber o que lhe é devido, em detrimento do saque pelo trabalhador. É o confronto entre a dignidade da pessoa do dependente e o direito do trabalhador devedor dos alimentos. Evidentemente que, nesse caso, com raras exceções, deverá prevalecer o direito do hipossuficiente que necessita dos alimentos. 6 DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 357. 8
REFERÊNCIAS BRASIL. STJ. Recurso Especial nº 1083061. Relator: Massami Uyeda. 3ª Turma. Julgamento de 02 de março de 2010. BRASIL. TJSP. Agravo de Instrumento nº 1875681920108260000/SP. Relator: Viviani Nicolau. 9ª Câmara de Direito Privado. CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. Niterói: Impetus, 2008. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2009. DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de Direito do trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 9