Quem fica refém da atuação compulsiva?

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Transcrição:

Quem fica refém da atuação compulsiva? Cassandra P. França Izabela Dias Velludo Roman Larissa Bacelete A problemática do abuso sexual infanto-juvenil tem sido amplamente discutida nos últimos anos pelas autoridades e pela mídia. A ocorrência do fenômeno não é atual, mas somente agora o assunto tem sido colocado em evidência devido ao aumento do número de denúncias. Um levantamento elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) referente ao Disque 100 (Central Nacional de Registros de abuso e exploração sexual infanto- juvenil), realizado em 2008, aponta um aumento de 30% nas denúncias em relação ao ano anterior. À primeira vista, pode-se pensar que este crescimento se refere ao número de casos de violência, porém, um olhar mais cauteloso parece revelar que tal aumento pode dever-se apenas à facilidade da denúncia ser realizada anonimamente. Estamos, portanto, diante do desafio de preparar e fortalecer uma rede de atendimentos que dê suporte efetivo às crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual e que assim não seja apenas um levantamento estatístico. A clínica psicanalítica além de identificar e tratar dos prejuízos psíquicos que são acarretados às vítimas, tem de procurar se integrar aos profissionais de diferentes áreas, tais como direito, serviço social, medicina, entre outras, para juntos pensarem nas estratégias de enfrentamento da problemática da violência sexual. Dentro desse cenário, um dado é ainda mais alarmante: a cifra de que 75% das vítimas femininas conhece o seu agressor, e de que quase a metade destes pertence à própria família da vítima (FUKS, 2005). Como a grande maioria dos casos de violência sexual ocorre dentro da estrutura que deveria prover a segurança da criança e do adolescente, a situação é ainda mais dramática. O panorama que se apresenta então, é o de familiares que muitas vezes têm conhecimento da ocorrência da violência sexual, mas fingem nada saber. Avôs que perpetuam o ciclo do abuso tomando netos como objeto de satisfação sexual, após terem mantido por anos a fio relações incestuosas com as próprias filhas e, mães e pais que parecem não reconhecer os efeitos de um trauma devastador na vida de seus filhos. Essa realidade nos leva a questionar a força do tabu do incesto na sociedade brasileira e a cegueira de que são tomadas as pessoas

envolvidas na cena incestuosa. No entanto, a figura mais pitoresca que recentemente ilustrou essa cegueira surgiu em um país de primeiro mundo, numa família de classe média e com bom nível cultural. Trata-se de Rosemarie Fritzl, esposa do austríaco Josef Fritzl, que apesar de saber que o marido tinha sido condenado por estupro antes do casamento, nunca reparou nos estranhos fatos que circundavam a casa ao longo de cinquenta e dois anos de casamento. Por exemplo, a construção e manutenção de um cárcere no porão da casa e o aparecimento, em períodos diferentes, de três bebês em sua porta. Crianças que ela se dispôs a criar, enquanto sua própria filha, Elizabethh, permanecia prisioneira no porão de sua casa criando outros três filhos. Que estranha cegueira levaria uma mãe a não perceber esses fatos? Afinal, Elizabeth afirmou ter sido abusada pelo pai desde os onze anos de idade, sendo trancada no porão somente aos dezoito anos. Mais ainda, a não desconfiar do fato de bebês serem abandonados frequentemente em sua porta. O estudo da vida e do psiquismo de Rosemarie seria extremamente esclarecedor para o desenvolvimento das pesquisas sobre transgeracionalidade e abuso sexual, mas, para nossa frustração não apenas ela como seus outros seis filhos se negaram, inclusive, a depor contra Fritz na Justiça. Se aparentemente o caso de Josef nos remete a um quadro de psicose, parece-nos pouco provável que sua esposa desconhecesse esse seu lado patológico, contudo, o laudo dos peritos afirmou que ele sempre estave em pleno uso de suas faculdades mentais sendo, inclusive, passível de julgamento. De acordo com os laudos, o que Fritzl apresenta é falta de piedade com o sofrimento alheio e uso das pessoas em sua volta em benefício próprio. Em qualquer dicionário de psicanálise isso é descrito como evidência de estruturação perversa. Esse diagnóstico alternativo é que nos ajuda a entender a estranha cegueira Rosemarie e o fato dela ter sido ludibriada. Mas não nos cabe aqui julgar a culpabilidade ou a inocência dos personagens dessa história tão macabra. Interessa-nos mais atentar para a dinâmica dessa família marcada em seu roteiro enigmático pelo fenômeno da compulsão à repetição. Como entender o fato dele ter feito com a mãe, enquanto era jovem, o mesmo que mais tarde faria com a filha, trancafiando-as, uma no sótão e a outra no porão, sem que pudessem ver a luz do dia? Ter tido sete filhos com a esposa e sete filhos com a própria filha? Ou ainda, o fato dele ter sido maltratado na infância, e de ter tido necessidade de criar seus filhos-netos, maltratando-os assim como sua mãe fez com ele? Essas são algumas das questões que nos motivaram a escrever esse trabalho. Mas deixemos de lado esse austríaco que,

morando a sessenta quilometros de Viena, poderia ter intrigado Freud, a ponto dele talvez dizer É... Fliess, acho que voltei a acreditar na minha neurótica.... Seja como for, muitas pesquisas evidenciam as reverberções traumáticas dos abusos sexuais ao longo das gerações, apontando que mulheres que sofreram abuso sexual na infância, ao se tornarem mães, tendem a escolher parceiros que são abusadores em potencial ou a exporem seus filhos justamente à proximidade com o homem que foi o seu próprio abusador (FUKS, 2005). O trabalho com crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual realizado na UFMG (Projeto CAVAS 1 ), nos levou a vários destes questionamentos, não só a respeito das conseqüências do trauma para as vítimas, mas também sobre as trilhas pulsionais que ajudam a perpetuar o abuso sexual de crianças e adolescentes. O conhecimento do histórico familiar das crianças atendidas, pressuposto fundamental para a clínica psicanalítica infantil, revelou a grande incidência de experiências sexuais traumatizantes e não elaboradas na vida pregressa dos pais. Intrigados em compreender o que impulsiona a re-edição da violência sexual, elegemos para um estudo sistemático, o conceito freudiano de compulsão à repetição e suas relações com a capacidade de simbolização e tradução no aparelho psíquico. A entrada desse conceito na história da psicanálise é datada de 1914, com o texto Recordar, repetir e elaborar. Neste texto, a compulsão à repetição é articulada ao conceito de transferência, pois o que era atuado durante a análise pelo paciente, dificultava a emergência do material inconsciente a ser recordado. Alguns anos depois da introdução dessa concepção acerca da repetição, a reflexão freudiana foi aprofundada pela observação de duas situações nas quais o sujeito não cessa de reviver episódios dolorosos: o fort da e as neuroses de guerra. Tais situações fizeram com que o pressuposto de que o aparelho psíquico funcionasse apenas sob o princípio do prazer fosse revisto. Assim, o reconhecimento da repetição como um fenômeno que ultrapassava tanto a busca pela satisfação libidinal, quanto a tentativa de dominar experiências desagradáveis, foi o que levou Freud a repensar sua concepção de aparelho psíquico. Essa reformulação teve como principal pilar a apresentação da polêmica noção de pulsão de morte e a introdução do dualismo entre a pulsão de vida e a pulsão de morte no artigo Além do princípio do prazer de 1920. 1 Projeto de pesquisa e extenão que atende crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual no Serviço de Psicologia Aplicada do Departamento de Psicologia da UFMG, coordenado pela professora Cassandra Pereira França.

De acordo com o esquema que Freud propõe na Carta 52, de 1896, o aparelho psíquico é estratificado e efetua traduções de traços de percepções e experiências que, de tempos em tempos, sofrem um re-arranjo. No entanto, podem ocorrer falhas em uma destas etapas de tradução, e assim, uma lembrança ou vivência ficaria impedida de ser simbolizada em instâncias superiores do aparelho mental. Tal ausência de transcrição, resultaria na permanência de uma excitação sexual vigorando sob as leis do período anterior. O recalque é um exemplo deste tipo de falha, na qual para evitar o desprazer que seria gerado pela lembrança de um evento de ordem sexual, a transcrição do mesmo é impedida. É importante lembrar que o que determina o fracasso da tradução psíquica é a natureza do material a ser processado. É nesse sentido que podemos dizer que os eventos sexuais são traumáticos, pois sempre acarretam um certo déficit de simbolização, visto que esta energia não é passível de inibição pelos estratos posteriores do aparelho psíquico. Considerando a força traumática do abuso sexual na infância e o fato deste ocorrer num período em que a prematuridade psíquica da criança não permite a representação dessa experiência, fica ainda mais evidente a dificuldade de ser alcançada uma representação verbal e, conseqüentemente, uma elaboração psíquica dessa vivência. Segundo Mezan (1991) tendemos a repetir em ato aqueles conteúdos que não tiveram tradução verbal. Desta forma, todo aquele material que nunca foi consciente e que também não foi ligado aos signos verbais pré-conscientes, fica impossibilitado de ser rememorado, manifestando-se somente naquilo que escapa à captação pela linguagem, isto é, num puro agir sem conceito. Baseando-nos nestes pressupostos, tendemos a relacionar a questão da re-edição do abuso através das gerações como uma compulsão à repetição, visto que é a reencenação de algo que nunca trouxe prazer e que não foi simbolizado. Assim, acreditamos que as mães que foram vítimas de abuso sexual na infância, é que se tornam, na vida adulta, reféns da compulsão à repetição: mulheres que um dia foram violentadas e que hoje assistem ao abuso de seus filhos. Prole oferecida inconscientemente como meio de uma sinistra via de acesso ao irrepresentável do trauma do abuso sexual. A temática sobre o estranho, abordada no artigo freudiano de 1919, nos fornece uma contribuição profícua sobre a transgeracionalidade nos casos de abuso sexual infantil. Para Freud, o sentimento de estranheza se destaca principalmente no fenômeno

do duplo, o que pode ser observado na literatura entre personagens idênticos que compartilham conhecimentos, sentimentos e experiências. Nesses casos, o sujeito confunde seu próprio eu com o de outra pessoa, isto é, há uma duplicação, uma divisão e um intercâmbio do eu. Essa divisão culmina num retorno constante dos mesmos materiais, da repetição de aspectos, características, crimes e vicissitudes. É nesse sentido, na ocorrência da repetição do mesmo, que o duplo aparece como uma fonte de estranheza. O caráter de repetição, verificado ao longo das gerações nos casos de abuso sexual infantil, aponta para o que poderia ser tratado como uma confusão, ou indistinção, entre os aparelhos psíquicos das mães e de seus filhos. Para Fuks (2005) o trauma sexual na tenra idade pode fazer explodir as instâncias psíquicas ego e superego ainda em constituição, acarretando a desarticulação dos sistemas de funcionamento do sujeito e comprometendo a relação consigo mesmo e com a realidade que o cerca. Deste modo, as relações pessoais empreendidas posteriormente serão dotadas de uma dificuldade de se estabelecer limites entre o dentro e o fora, entre os estímulos externos e internos. A incapacidade de simbolização do evento traumático devido à fragilidade psíquica da criança gerou rupturas no psiquismo dessa mulher/mãe, formando verdadeiras criptas que contêm os afetos provenientes daquelas experiências traumáticas, mas carecem completamente da representação-palavra. Tais impressões, sentimentos e experiências ficam sepultados no interior do psiquismo da vítima e não sofrem a ação dos processos de elaboração subseqüentes, formando o que Freud denominou como fueros na Carta 52 e que permanecem dotados da mesma quantidade de excitação e, por isso, são fonte de desprazer constante para o ego. No entanto, tal material envia mensagens que se exprimem como atuações e somatizações, até mesmo manifestações delirantes que vão ecoar para outras gerações (FUKS, 2005). Como vimos, a repetição parece ser preponderante nos casos de violência sexual atingindo duas ou mais gerações de uma mesma família. A dificuldade e a resistência em reconhecer o sofrimento dos filhos, e até culpabilizá-los pela violência a eles infligida, parece ser a expressão da incapacidade do psiquismo materno em tolerar o horror que significa a reprise do drama que se passou em sua própria infância. O que Freud mencionou como efeito de estranheza do duplo pode ter aí o seu exemplo: o que deveria ter sido abolido da história de vida destas mulheres, acaba vindo à tona diante de seus olhos. Tal reprodução gera a sensação de impotência, já que a vítima se vê, mais

uma vez, incapaz de escapar da violência sexual, o que faz dessa re-edição, uma tentativa canhestra de elaboração psíquica da vivência de submissão radical à violência a que foram um dia submetidas. Ficamos então diante de alguns dilemas: haverá alguma maneira de se quebrar a força da transgeracionalidade? Qual será o destino daquelas crianças que já sofreram o abuso sexual? Serão elas, agora, as futuras reféns da compulsão à repetição de amanhã? Pensamos que sim, e exatamente por isso, defendemos com toda nossa convicção a importância da análise na infância que, como bem sabemos, abrirá um cenário que jogará para dentro do setting analítico toda a virulência da neurose de transferência. Então, a repetição da cena do abuso será experimentada novamente descarregando todo o excesso pulsional que ocasionou seu traumatismo. Mas, o analista estará ali para sustentar o reinvestimento dos traços mnésicos e a sua ligação à representação-palavra, permitindo, assim, que a experiência passe de irrepresentável à simbolizável. Mais ainda, estará ajudando a criança a liberar os afetos encapsulados nos núcleos traumáticos e a construir retroativamente sua própria história podendo, quem sabe, se libertar do agressor que estava internalizando. Referências Bibliográficas FREUD, S. (1950 [1892-1899]) Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. I. Rio de Janeiro: Imago. (1914) Recordar, repetir e elaborar. Standard Edition. Rio de Janeiro: Imago. (1919) O Estranho. Standard Edition. Rio de Janeiro: Imago. (1920) Além do princípio do prazer. Standard Edition. Rio de Janeiro: Imago. FUKS, L.B. (2005) Conseqüências do abuso sexual infantil. In.: Perversão. Variações clínicas em torno de uma nota só. In: FRANÇA, C.P. (2005). São Paulo: Casa do psicólogo. MEZAN, R. (1991) A transferência em Freud: apontamentos para um debate. In.: SLAVUTZKY,A. (1991) (org.). Transferências. São Paulo: Escuta.